Qual é o limite para cobiçar o treinador do vizinho?

10 out 2016, 23:55
Rui Amorim (Santa Clara/Facebook oficial)

Santa Clara foi vítima das primeiras «chicotadas» na I Liga e neste início de época já perdeu dois treinadores, tal como aconteceu no ano passado. Em Espanha, um técnico só pode trabalhar numa equipa por época. Em Portugal, não há limite. Regulamentar faz falta?

Quando no último fim-de-semana o técnico Rui Amorim apareceu de malas de viagem e com a família no Aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, para aproveitar a paragem competitiva e vir passar uns dias a casa, o presidente do Santa Clara não se livrou de ouvir uma piada que nos últimos tempos se tornou recorrente na ilha de São Miguel: «Cuidado, presidente, que ele já não volta…»

Rui Melo Cordeiro conta bem-humorado o episódio, mas o arranque da época não está a ser fácil para quem quer manter inabaladas as fundações do projeto desportivo do clube açoriano.

Em duas semanas, o Santa Clara perdeu os dois treinadores principais na sequência das primeiras «chicotadas psicológicas» na I Liga.

Daniel Ramos saiu para o Marítimo, que o escolheu para substituir PC Gusmão, pagando a respetiva cláusula de rescisão de 60 mil euros, e Quim Machado durou alguns dias como substituto. Orientou dois jogos antes de alegar a doença de um familiar para pedir a rescisão de contrato com os micaelenses, que não receberam qualquer contrapartida, e em seguida assinou contrato com o Belenenses, que rescindiu na semana passada com o espanhol Julio Velázquez.

Quim Machado orientou dois jogos o Santa Clara antes de assinar pelo Belenenses

A terceira «chicotada» na I Liga aconteceu ontem, com Erwin Sánchez a abandonar o comando técnico do Boavista. Porém, desta vez, o Santa Clara não deve voltar a ficar sem treinador. Aliás, Rui Amorim chega do Salgueiros, do Campeonato de Portugal, que acaba como prejudicado em última instância pela mais recente saída no emblema dos Açores.

Como a «dança de treinadores» prejudica os mais pequenos

Recorde-se que já na época passada, o Santa Clara havia sido vítima da atenção dos clubes da I Liga a um clube que é uma espécie de «trampolim», nas palavras do próprio presidente: Filipe Gouveia saiu logo no início da época para a Académica e no final da temporada Carlos Pinto rumou a Paços de Ferreira.

A recorrência destes casos motivou o desagrado público de Rui Melo Cordeiro, que defende a adoção de medidas por parte dos clubes para regulamentar a «dança de treinadores» em prejuízo dos mais pequenos.

Rui Melo Cordeiro na apresentação da equipa do Santa Clara com Daniel Ramos

«Este assunto nunca foi falado no seio da Liga, segundo julgo saber, mas penso que há abertura por parte dos clubes para debater e se houver acordo deliberar sobre isto. No futebol não podemos ter tabus e temos de discutir todos os problemas», afirma ao Maisfutebol o presidente do Santa Clara, que faz parte da direção da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) desde julho deste ano.

Rui Cordeiro defende algum tipo de restrição de modo a proteger os clubes mais pequenos do assédio dos do escalão principal. «Se um treinador quer sair, o que podemos fazer? Os clubes nem sequer falam entre si. Dizem ao treinador para informar a sua entidade patronal sobre a sua vontade de sair. Não temos a capacidade financeira para fazer frente aos clubes da I Liga. Mas deveria haver alguma forma de regulamentar este tipo de situação de modo a criar alguma estabilidade. Fazer coincidir a possibilidade de contratar treinadores aos outros clubes com o período da janela de transferências, por exemplo», afirma.

Associação Nacional de Treinadores rejeita modelo espanhol

Absolutamente restritivo é o cenário em Espanha, onde o artigo 187.º do regulamento desportivo da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) impede que o mesmo técnico assuma o comando técnico de duas equipas do país na mesma temporada.

O mais recente prejudicado com essa restrição foi Marcelino Toral, que por ter feito a pré-temporada no Villarreal não pôde suceder a Pako Ayestarán no comando técnico do Valência.

José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), esclarece ao Maisfutebol por que rejeita um modelo à espanhola, revelando que alterações ao sistema atual já foram discutidas e recusadas várias vezes em assembleias gerais do organismo que dirige.

Marcelino Toral foi vítima da legislação restritiva que existe em Espanha

«Espanha tem um modelo diferente. Para começar, lá, os treinadores deles não têm uma associação profissional como aqui, mas sim um colégio que os representa e que está totalmente dependente da RFEF, que até nomeia o presidente do colégio. O modelo deles tem a vantagem de a própria RFEF salvaguardar o vencimento total do treinador até estar impedido de treinar outro clube. No entanto, tem uma enorme desvantagem de coartar os direitos laborais do treinador. Não nos sentimos mal com o nosso modelo e por isso recusámos a alteração para um modelo mais limitativo em termos direitos laborais», defende o dirigente associativo.

José Pereira vai até mais longe ao afirmar que considera que o impedimento de um treinador poder trabalhar na mesma época desportiva em mais do que um clube é «inconstitucional».

«O direito ao trabalho é inalienável. Ninguém pode proibir um trabalhador de desempenhar as suas funções desde que esteja devidamente certificado. Isso vai contra a Constituição», argumenta o presidente da ANTF.

Mas então e os jogadores, que apenas podem representar um máximo de dois clubes por cada época desportiva?

José Pereira contrapõe: «Essa é uma lei desportiva, que emana da FIFA para as federações nacionais. É uma lei que não se pode aplicar aos treinadores em Portugal, porque eles são defendidos por uma associação profissional e estão protegidos por leis laborais.»

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