"Começámos a jogar à bola e o gelo quebrou-se". José Condessa conta como foi chegar a Rabo de Peixe antes de gravar a série

CNN Portugal , CNC
20 jun 2023, 22:00

TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA. À conversa com Manuel Luís Goucha, no programa Conta-me, da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), no sábado, José Condessa desvendou um pouco da sua relação com Bárbara Branco, os seus medos como ator e a importância de gravar "Rabo de Peixe" ou de trabalhar com Pedro Almodóvar

Manuel Luís Goucha: Já não nos vemos há quatro anos. Pelo menos, não conversamos há quatro anos. Olha, isto é um regresso a casa. 
José Condessa: É sempre.

Mas tu entendes este espaço [o Teatro Experimental de Cascais] como uma das tuas casas?
É, sem dúvida alguma, uma das minhas casas. Onde eu me sinto em casa, onde eu me sinto feliz e onde eu cresço, sempre.

Quando decidiste vir para a formação no Teatro Experimental de Cascais, portanto na escola do mestre [Carlos] Avilez, tu já estavas decidido. Este era o teu caminho. 
Era este o meu caminho. Aliás, eu por saber que queria que este fosse o meu caminho e que não fosse apenas um hobby e só uma paixão, é que eu vim ter com o mestre, o maior de todos, e acho que foi a minha mudança no ponto de vista de ver como é que é esta profissão.

E neste regresso ao passado nós encontramos aqui memórias tuas. Estão aqui alguns trabalhos teus.  

Sim, há muitos destes. São alguns das centenas de projetos que o Carlos [Avilez] já fez, na história do Teatro Experimental de Cascais. Eu fiz 13 peças aqui até agora e estão ali algumas e as outras estão ali ao fundo.

Algumas delas como aluno, outras já como ator profissional?

Sim, umas como convidado, ainda enquanto aluno, o Carlos convidou-me para começar a trabalhar na companhia e depois outras já como profissional e acaba ali, no Hamlet, que é a última até agora e esperamos que venham mais.

Há aqui uma peça que marca o início do namoro, não há?

Sim, é quando começámos mesmo a namorar. Eu e a Bárbara [Branco].  

Porque ela também sai desta escola, não é?  

Sai, sai. Nós temos uma diferença de dois anos na escola, porque a Bárbara estava a trabalhar e congelou um ano e atrasou. Então, eu comecei a trabalhar na companhia um ano mais cedo do que ela e depois ela junta-se e o Carlos confia-nos muitos dos papéis protagonistas de As You Like It, o Rupert [da peça Um rapaz chamado Rupert partiu-te o nariz com um pau?], Peter Pan, a  Lulu, depois a Bárbara também fez o Hamlet.  

A tua ligação ao mestre Carlos Avilez é tão grande que, se ele te convidar, dificilmente recusas um desafio seu, não é?

Eu não sou capaz de dizer que não ao Carlos. Mesmo que pareça mais difícil o projeto, mesmo que pareça quase sobre-humano, ele precisa de mim e eu preciso dele para crescer.  

Vamos para o palco?  

Vamos. É onde eu me sinto melhor. Por favor.

O palco, para ti, é quase o centro da tua vida?  

Sem dúvida alguma. Eu acho que tudo o que acontece, de alguma forma na minha vida, está relacionado com o palco. Mesmo que não esteja diretamente, mesmo que não seja uma peça de teatro. Todas as pessoas que se cruzam comigo, de alguma forma, ou mesmo os meus medos, as minhas inseguranças, é aqui o lugar de expurgar.

E muitas dessas memórias passam mesmo por este palco?  

Este palco é incontornável. Eu aqui sinto-me mesmo em casa e já tinha saudades de estar aqui, de poder estar realmente aqui. Há uma energia diferente no palco. Eu comecei muito cedo no palco e acho que está associada, na minha cabeça, a questão de estar em palco do aprender, do silêncio, do escuro, do barulho das pessoas a entrar, a energia, a adrenalina de entrar em palco e saber que começou, que já não podes voltar atrás, deste o salto no vazio. E está tudo ligado às memórias boas de infância que eu tenho com o meu pai, com a minha mãe, com os meus familiares e tudo à volta desta partilha, deste conhecimento, de aprender com os mais velhos, que é uma coisa que me fascina completamente. Eu cresço quanto melhor for o meu colega que está ao meu lado, ou o quanto mais generoso for, às vezes, não é a qualidade de talento, é a qualidade de saber olhar nos olhos e poder fazer uma boa contracena. E estamos aqui, a trocar bolas e acho que essa humildade liga as pessoas.  

Já como profissional, quando vens para este palco como profissional, como é que foi trabalhar com nomes que certamente admirarias como espectador?
Foi incrível.  

Estamos a recordar concretamente quem?  

O Ruy de Carvalho. Tive a oportunidade de contracenar a primeira vez, a segunda e a terceira, aqui neste palco, com personagens muito... Uma delas, no As You Like It, que éramos muito próximos. E aí estamos a falar logo de um grande nome do nosso teatro também. Foi um dos primeiros grandes exemplos de humildade. Há uma cena em que eu entrava na esquerda alta com o Ruy às cavalitas. E eu a pensar, como é que eu vou entrar com o teatro às costas, não é? Como é que se entra com o teatro às costas? O Carlos tinha esta ideia e de repente eu chego lá, está o Rui com um banquinho, eu já estou pronto. Pôs um banquinho, subiu, saltou. Com a maior simplicidade com que se deitava no chão. E aí tu tens o exemplo. Se até o Ruy de Carvalho não tem problema algum de servir o teatro, como é que alguém da minha idade, pode ter? Só temos que aprender.

Nunca passaste por uma fase de deslumbramento?
Eu acho que deslumbramento... Na vida, eu acho que não. Eu quero acreditar que não. Eu sempre contrariei muito isso.  

É ter os pés assentes na terra?  

É saber voltar ao teatro e voltar a lembrar-me do porque é que eu faço isto.

E mesmo nesta fase da tua vida gloriosa?
Não. Deslumbramento são momentos. O final de uma estreia, o momento dos aplausos. Esses são momentos que eu acho que nós não podemos ter medo de aproveitar, com a noção que entregámos tanto a um projeto ou a um espetáculo, que merecemos aquele momento.

Que importância tem o aplauso?  

É um reconhecimento... O aplauso sente-se. Para mim, o aplauso é o fechar de um ciclo que amanhã se vai repetir. E quer dizer que aquelas pessoas estiveram connosco no momento. Ou seja, é mais a comunhão que existiu naquele momento, do que o terem gostado de ti no momento.  

Que amanhã se vai repetir, mas de forma diferente.  

De forma diferente. Eu não acredito que seja sempre igual, de maneira alguma.  

Até porque a energia que se troca é completamente diferente.  

Nós temos de ter essa capacidade.  

Entre o palco e a plateia?  

Claro que sim. E entre nós atores também.

O palco, então, é um local sagrado para ti?
Sempre foi.  

E este, porque foi aqui que começaste profissionalmente, este é mais protetor que outros?  

É. Sabes, também já me viu mais despido.  

Sentes-te mais seguro aqui? 

Sinto-me. Porque já me senti mais despido. Mais inseguro aqui. É muito difícil para mim não falar do Carlos. E todas as conversas vão dar ao Carlos, porque eu tenho por ele um amor enorme e uma admiração gigante. Primeiro como aluno, porque podia ser um excelente encenador e não ser um bom professor, e depois como amigo, porque a relação, temos muitos anos de diferença, muito conhecimento que ele tem, que eu ainda não tenho, mas a humildade dele, a forma como ele gosta dos atores, ensinou-me a amar o teatro.  

Para seres o ator que és e o homem que és, isto tem muito a ver com um caldeirão educacional. E portanto, tu nasceste, ou tu escolheste a família certa?
Sim, eu acho que sim. Acredito nisso.  

Os teus olhos estão agora a brilhar mais. 

Porque agora é família e o Carlos e tudo.  

E o Carlos é família, pelos vistos. É um outro pai? 

Sem dúvida alguma. Carlos Avilez, sem dúvida alguma.

Portanto, este gosto, esta paixão pelo teatro já existe na tua família há muito tempo?
Sim, eu comecei com o meu pai no Teatro Amador. O meu pai fazia teatro de revista, no antigo Teatro Luís de Camões, onde é agora o LU.CA, na Calçada da Ajuda, em Belém. E eu, todas as noites, ficava com o meu pai no teatro.  

E a tua irmã também fazia teatro amador?

A minha irmã também fazia. Mas no momento em que eu me estreei, a minha irmã já não participou nessa revista. Ou seja, participou na revista em que eu me estreei como um anjinho, que eu tinha três anos, era só uma aparição. Mas quando eu considero que fiz a...  

Ainda és um anjinho?

Acho que ainda sou um anjinho. E era maravilhoso, porque eu deixava cair a asa. Acho que era com a voz, não me quero enganar, do João Villaret, era o toca os sinos...  

Na torre da igreja, há rosmaninho e alecrim no chão.  

E uma parte em que o anjinho perdeu a asa. Foi a primeira vez que eu pisei o palco.  

O anjo desasado.  

Exatamente e tinha três anos. E depois, com cinco anos, faço o primeiro monólogo. É estranho dizer isto, porque eu não sabia ler. Então a relação, lá está, mais uma vez, relação de amor... Era o meu pai que todos os dias, entre casa,  depois de sair do teatro à noite, à meia-noite, antes de ir para casa, ia-me a dizer o texto enquanto conduzia. E eu atrás, ia ouvindo e decorei de ouvido. E aí, foi a primeira vez que eu subi a um palco, e que estive sozinho a dizer um texto para aquelas pessoas. E isso foi assim que começou. O teatro, para mim, era o meu pai. O teatro para mim era o amor. Era a minha avó fazer o guarda-roupa. Eram as noites dentro em que a minha mãe levava o chá e o café. É família.  

A família nuclear está envolvida. Tu nasceste assim?

Eu nasci assim. E eu não me lembro de querer fazer parte daquilo, porque já fazia. 

Nunca quiseste ser outra coisa?  

Só me lembro de não querer ser outra coisa. Lembro-me de já não fazer sentido pensar como eu queria ser arquiteto ou médico ou jogar futebol, que era uma paixão que eu também tinha.  

Mas aqui também se arquiteta um personagem?  

Sem dúvida alguma.  

Também se constrói.  

E aí acho que foi aqui que nasceu o medo da minha mãe, principalmente. O meu pai também. Mas a perceber como ator, a paixão. A minha mãe como nunca foi atriz, era o medo do que é que... Se é o certo ou não para o meu filho deixar este caminho.

Quando é que eles se renderam?  

A minha mãe no último dia em que era possível inscrever-me para a escola de teatro. Nós tivemos uma luta silenciosa. Isto dava uma bela curta-metragem. Em que eu vim buscar os papéis de inscrição para a escola, mas tinha que ter a assinatura dos meus pais. O meu pai assinou e ficou lá em cima da mesa da cozinha.  

Que idade é que tinhas?  

Tinha cerca de 14,15 anos. Eu punha-o em cima da mesa da cozinha. Isto tínhamos que entregar até início de junho, imaginemos. Punha na mesa da cozinha, quando chegavam, a minha mãe tinha tirado. Ao pé do microondas. Eu pegava e punha na mesa da cozinha. Ela tirava e eu punha. E estivemos nisto semanas. Até que eu pensei: a minha mãe não vai assinar. Eu não vou para a escola de teatro. 

Vocês falavam sobre isto? Argumentavam? Contra argumentavam?
Sim e eu percebia o medo dela. Porque também era o meu medo. Mas naquele momento, o medo não me impedia de eu querer seguir isto. Muitas dúvidas. Mas agora, olhando para trás, eu sei que foi o caminho certo. Até que é o momento em que chego a casa, já nem me lembrava da inscrição, e a minha mãe disse: Fui-te inscrever agora à escola de teatro. Então, ela saiu do trabalho, foi lá. Diz que foi o carro que conduziu por ela. Chegou, tinha a dona Isabel, que é uma senhora extraordinária.  Trabalha na escola e com quem eu criei uma grande ligação. Já tinha fechado a secretaria, abriu só para conseguir. E é assim que eu entro na escola de teatro e depois faço as audições para a escola de teatro.  

E quando é que tu percebes? Qual é o momento em que percebes: Não, realmente eu estava certo. Este é mesmo o meu caminho?

Acho que foi na primeira apresentação que fizemos na escola de teatro.

Ainda como aluno?

Ainda como aluno. A primeira peça, eu creio que foi o "Auto da Índia". 

A mãe estava na plateia?

Estava. 

O que é que ela disse? 

A minha mãe ficou fascinada. A minha mãe, é maravilhoso porque eu acho que o clique da minha mãe foi, até aí, claro, na escola. Os professores e os alunos.  E ela sempre... Tu conheces. Acolhe toda a gente de braços abertos.  

Adoro os teus pais.  

É uma mãe, para todos os meus amigos. Mas eu lembro que o momento em que a minha mãe me disse pela primeira vez. em que eu senti que ela respirou fundo e disse: "está tudo certo", foi quando eu me estreei aqui, profissionalmente. E foi uma pequena participação, mas que muita gente falou bem e muita gente queria saber quem é que era aquele ator, porque achavam que eu era finalista. Eu era do segundo ano. E acho que é nesse momento em que a minha mãe diz:  "Está tudo certo." 

E que importância é que tem essa frase dita pela tua mãe, nesse momento? 

Tem muita importância. Porque eu sabia que não era por falta de carinho. Não é por falta de confiança.  

Era medo de mãe?  

Medo de mãe e medo que eu compreendo. E quanto mais tempo passa, compreendo o rasgo de sorte que eu tive, e que não creio que seja só sorte, de tudo acontecer no momento certo e eu também estar preparado para as circunstâncias. E ter as ferramentas certas para apanhá-lo.

Tu vives vivendo os outros.
Sim. Sem dúvida alguma.  

E o que é que descobres de ti nas personagens? 

As personagens são muito um espelho dos nossos medos. Acima de tudo, mesmo as mais felizes, e há sempre quando eu olho para uma personagem. A primeira imagem é ver-me a mim próprio. Refletido nela. Ou não, ou exatamente o oposto. Mas depois tenho sempre a oportunidade de mergulhar no que ela é. E eu não acredito que um ator se deva fazer da personagem próxima, do que ela é. É exatamente o contrário do que é o teatro. O teatro é servir a personagem no que ela precisar. Não a desculpabilizar. Não perdoar os erros dela. Não tentar limar arestas que parecem mais agressivas. Acho que devemos provocar alguma coisa nos espectadores.

E vais resolvendo os teus próprios medos através dos medos das personagens?  

Sim. E muitas vezes vou abrindo feridas que eu não sabia que tinha. Às vezes eu digo... Já me aconteceu milhares de vezes, felizmente. É sinal que estou a ouvir o que estou a dizer em palco, dizer certas frases. O Hamlet então foi terrível. Dizer certas coisas que eu sinto que sou eu que estou a dizer para mim mesmo. E isto é muito...  Ao mesmo tempo é estar-me a ouvir. Como se eu não tivesse a oportunidade de interpretar aquela personagem. Se eu não tivesse a oportunidade de perceber este meu medo, esta minha insegurança, este meu desejo. Por isso, o teatro é terapêutico ao mesmo tempo. Não só para quem vê, mas para quem faz.  

Porque é que os teus olhos estão, outra vez, muito molhados?  

Não sei. Eu acho que estou num momento...  Não sei. Primeiro, porque a conversa é boa.  

De grande sensibilidade.  

Esta energia também é muito especial e traz-me muitas memórias. Eu já não estava aqui há muito tempo e, agora, voltei-me a lembrar do Hamlet e da dificuldade que foi.  

Então, representar pode implicar sofrimento. Este processo, este mergulhar, implica sofrimento?

Sem dúvida. Deve. E nós somos quase malucos nesse sentido de gostar de sofrer. A mim tem que me roer as entranhas. Tem de ser.  

Então, profissionalmente, és um sofredor? Podes ser um sofredor?

Sim, porque eu não acho que se finja. Eu acho que o ator não deve fingir. O ator deve encontrar uma verdade no que está a dizer, porque nós sentimos que é verdade. As pessoas, às vezes, dizem-me eu não sei muito bem o que é, eu gostei muito do seu trabalho, mas eu não percebo muito disto.  E eu digo... Não, você percebe tudo. Se você vive, se você fala com pessoas todos os dias... Você percebe. Você consegue perceber se eu estou a dizer a verdade ou não.

E é assim que se consegue chamar para a trama quem está ali sentado.
Sem dúvida alguma. É aí que as pessoas ficam vidradas, seja um espetáculo de duas horas, é aí que o espetáculo passa a voar, ou um espetáculo de meia hora, parece uma eternidade. É nessa energia que nós criamos com o espectador e o espectador, apesar de ser um grupo de pessoas, tem energias muito particulares. E acho que a magia, e eu estou a descobrir cada vez mais isso em palco, é conseguir saber que aquela pessoa... consiga olhar nos olhos e falar-lhe para dentro da alma. E eu se calhar digo-lhe de passagem,  porque ela não quer um confronto. E o confronto vai afastá-la. E essa magia é um jogo extraordinário. É quase como um pianista.

Quando te estreaste aqui, alguma vez te imaginaste em Cannes?
Nunca. Estava longe. Aliás, eu entrei na escola de teatro e estava a adorar aquilo tudo. E já estava com uma ideia de fazer uma companhia itinerante com o meu grupo de amigos da escola, porque achava que esse ia ser o meu sonho. Esse era o meu sonho, uma companhia itinerante, como existia antigamente e levar as coisas às costas e fazer teatro pelo país. Por ter a ligação a Nisa, por saber que muitas vezes...  

Que falta arte em muitos pontos do país.  

É, muitos pontos do país.  

E a arte salva.  

Isso sim, sem dúvida alguma. E era importante levar essas mensagens e levar novas formas de pensar, que não são novas de todo, mas que são cada vez...  Agora parecem novas, porque parece que estamos a voltar para trás. Mas que são importantes, e esse era o meu sonho, montar uma caravana e ir com um grupo de amigos. Depois comecei a trabalhar no Teatro Experimental de Cascais. A ideia de saltimbanco.

A trupe! Regressar quase às origens, não é?

Era viver do teatro, viver com um grupo de amigos todos os dias. Há coisa melhor do que isso? Comer tão bem no nosso país e levar alguma coisa de arte a quem não tem esse acesso. E depois comecei a trabalhar aqui. E as coisas começaram a ir umas atrás das outras.  

Até cá, não é? Como é que foi? Para já, como é que foi trabalhar com [Pedro] Almodóvar?  

Muito simples e extraordinário ao mesmo tempo.  

E como é que é trabalhar com alguém que nós admiramos há muitos anos?

É estranho.

Como é que isso aconteceu?
Começou com uma fase de casting que eu nem sabia bem para o que era. Sabia que era uma produção espanhola, mas falada em inglês. Mas não sabia...  

Sabias que era Almodóvar?  

Ao início não sabia e fiz a primeira self-tape, que agora é o que nós fazemos para chegar mais rapidamente aos sítios, e depois fiz um outro casting, já sabendo que era para o Almodóvar. E aí os nervos começaram a ficar...  De repente, há uma pessoa que tu reconheces mérito. Não há palavras para dizer o que é que ele foi, para nós portugueses também. Ou seja, ele acabava por ser, sendo espanhol, era a rutura...

Ele é um transgressor. Ele é o que rompe os cânones, não é?

Sem dúvida alguma. Ele é o primeiro não-americano a romper assim. Tirando o cinema francês e italiano, que já tinha a sua história. Era o mais próximo que estava de nós, portugueses.

Sim, o italiano e o francês, mesmo antes...  Na década de 60.  

Muito antes. Sem dúvida. Mas de repente, um espanhol, neste caso tão perto de Portugal, tem uma linguagem que nós hoje em dia dizemos que isto é muito Almodóvar. E ter a oportunidade de andar a fazer um casting...  

É uma estética.

É um génio. E, de repente, estar a fazer um casting para um génio, de repente a coisa tremeu. Mas correu muito bem e depois fiz o casting presencial. E a minha dúvida era, como é que eu o cumprimento? E não sei. Deixei-me ir, estiquei a mão e abracei. E ele abraçou também e depois, de repente, há uma simplicidade...

É a simplicidade dos grandes.  

E a mim, é o ensinamento destes últimos tempos que eu tenho tirado. É que eu já tinha essa sensação e esta é a prova que é inegável. Tu podes ser o melhor na tua profissão, e tu és um exemplo perfeito disso e não te estou dizer isto porque estás aqui. Tu sabes. Tu podes ser o melhor ou um dos melhores ou uma referência no que tu fazes e nunca perderes essa humildade e o trato com as pessoas, seja quem for. E isso, para mim, dá-me uma segurança enorme, porque um dos meus maiores medos nesta profissão, era eu pensar que um dia, ao crescer e para ser bom, que eu tinha que perder certos valores que eu acredito. E essa luta interior era uma coisa...  

Valores passados também pelos teus pais? 

Muito passados pelos meus pais. A educação vem daí, da minha família. Eu, felizmente, tenho essa estrutura familiar muito forte que é o meu pilar. E tu conheces. De tudo. De dormir três horas por noite e ter a sorte e o privilégio de ter a minha mãe a preparar-me, na altura, a lancheira para eu passar o dia todo fora de casa e dormir pouco e o meu pai e a minha mãe virem-me buscar ao teatro para eu, em vez de conduzir, poder dormir meia hora no carro. E essas pequenas coisas fazem de mim ter os pés na terra e eu não me esqueço disso.  

É amor.  

É muito amor.  

E tu és um homem cheio de amor? 

Sim. E fui muito amado.  

E és muito amado.

Eu gosto de amar.

E tens um público ainda por cima a amar-te também.  

Sim, também, também. Felizmente, tenho isso.  

Quanto tempo levou as filmagens da curta-metragem do Almodóvar?  

Ao todo foram duas semanas.  Eu estive lá apenas uma semana.

Em Espanha?
Em Espanha, em Madrid. Eles filmaram a outra semana em Almería, que é onde fazem todos aqueles universos western. Onde já filmaram Indiana Jones e tudo. E foi em Madrid, mas foi extraordinário estar a aprender, perceber como é que ele faz, como é que ele comunica. E de repente, há uma situação muito boa que aconteceu, porque eu tinha medo de... Não era medo. Era...  Eu não deixei de ser eu próprio, ou seja, eu não trabalho de forma diferente com a pessoa que tenho à minha frente. Eu entrego-me da mesma forma e com o mesmo brio.  

E deixas-te dirigir?  

Deixo-me dirigir. Eu confio. Eu tenho que confiar. É o salto de fé, porque senão há uma relação que não está a ser correta com o realizador ou o encenador, mas, de repente, eu tive uma ideia, porque eu gosto muito de pensar o texto e gosto muito de pensar também o outro lado.

E isso é um trabalho solitário?  

É. Eu trabalho muito sozinho. Muito com a página do texto. Eu conheço a personagem para além do que está escrito, se tu me pedires uma improvisação sobre a personagem, eu vou saber, porque eu sei o que é que ela faz ou não faz. Ou mesmo se me pedires uma situação...

Isso é arquitetar? 

É arquitetar. E se me pedires uma coisa que a personagem não faz... 

Há o arquiteto.  

Sim, também, se calhar. Mas se me pedires uma coisa que a personagem não faz... Imagina que eu sou uma personagem muda e me pedes para falar. Isso é extraordinário. É um obstáculo ótimo para existir uma cena. A personagem vai tentar falar, mesmo não conseguindo. E eu, de repente, ali tive uma ideia e disse, tenho uma ideia. E depois disse, não, o que é que estás a fazer?  Estás a dizer que tens uma ideia?  O que é que se está a passar? E ele diz, diz e eu, não, não. E ele não, diz, e eu, não. E depois ganhei coragem disso. E fiquei assim, a pensar, o que é que eu fiz?  E ele disse, isso é uma boa ideia. Vamos mudar isso e mudou o set para fazermos aquele plano e isso é de uma humildade e de uma generosidade que só os grandes têm e não é falta de confiança. É entender o outro e poder ouvir e dizer que não concordavam.

E depois, passadeira vermelha... Cannes, fotógrafos, flashes.  O que é que se sente?  

Eu não sei. Eu acho que foi um dia muito flutuante. Muita coisa.  

Sentiste-te a pairar?

Sim. Mas...

Vestido por Yves Saint Laurent?
Sim, aí estava tudo fácil.  Yves Saint Laurent e Cartier. Estava mais do que metade feito. Não tinha que me preocupar com... Sabia que estava bem. E ter tido essa oportunidade também extraordinária, que é uma porta que se abre com Almodóvar. Eu tenho a noção que conheci o Festival de Cannes, que foi a primeira vez que eu fui. O festival é muito bonito. Há um respeito pelo cinema extraordinário, mas lembro-me do momento em que entrámos com o grupo e digo, isto está a acontecer. Eu estou aqui. Isto, primeiro, é muito mais pequeno do que eu imaginava. Mas é muito maior no sentido... É mais pequeno, fisicamente, mas é muito maior no sentido... E, principalmente, quando eu paro à noite e penso, que é uma coisa que eu faço desde pequenino antes de dormir, às vezes estou muito cansado e não dá, mas paro e penso. Fogo, como é que foi este dia? Nestes dias importantes, que bom.  

És grato? A quê? À vida?  

Muito. Sim e há escolhas que eu fui fazendo. Mesmo quando pareciam erradas, em que toda a gente me dizia que não era esse o caminho, mesmo quando diziam não é assim. Não vai correr bem e eu tinha um feeling a dizer, acho que vai. E também não estou a fazer mal a ninguém, por isso, vou tentar. E são esses momentos em que tu dizes, confia.  

Abrem-se aqui portas com esta curta-metragem de Almodóvar? 

Eu acho que sim.

Antes, porém, em 2019, tinhas tido o grande desafio de uma novela no Brasil. O que é que te deu essa participação na novela? O que é que ganhaste?
Exatamente. Eu cresci muito. Como ator, cresci muito porque aprendi uma forma de trabalhar que, apesar de ser novela, é bastante diferente da nossa.  

E viveste sozinho?

Pois, é isso.  A nível pessoal, viver sozinho. Viver sozinho do outro lado do mundo, em que não conheces ninguém e em que não é fácil ir beber café com a família, ou com a namorada, ou com os amigos.  

Eras que tu tinhas de lavar a tua própria roupa. Não era a mãe.

Sim. Exato. Mas aí foi muito bom, sim.  

E cresceste também.  

É importante, acho que sim. E deu-me uma maturidade incrível e uma rotina. Isso foi ótimo para mim e, como ator, cresci muito. Aprendi com as pessoas.  

Como pessoa, o que é que foi mais difícil? Foi estar longe dos teus, nomeadamente da Bárbara e da família?

Sim. E eu tinha começado a namorar com a Bárbara há menos de um ano e eu vivo intensamente tudo o que sinto e a Bárbara também. E esse afastamento, era quase um rasgar diário e perceber que ela estava a trabalhar e eu estava a trabalhar, quatro horas de diferença horária não ajuda, porque quando um pode falar, o outro já está a entrar no teatro ou já está a fazer não sei o quê. Mas estar longe dessa estrutura familiar, que era o que me permitia eu focar-me completamente no meu trabalho... Daí eu dizer que é um privilégio ter essa estrutura familiar que me permitiu durante muitos anos eu não ter que pensar em mais nada, digamos assim, a não ser existir.  

E tu com esse desafio entras numa engrenagem poderosa, que é a Globo, não é? E o Projac. 

Aprendi muito. A nível técnico, porque eu sou um ator que gosta de perceber também o outro lado da câmera. Eu gosto de perceber qual é a diferença das lentes.  

Isso quer dizer que um dia vais realizar? 

Não sei. Eu sinto essa vontade de contar a história, mas é a vontade que eu sinto como ator. Tenho muitas ideias, às vezes, se calhar até demais. Mas acho que também, eu como ator, tenho a obrigação de saber com o que é que estou a trabalhar. Se eu em palco tenho essa preocupação, acho que saber uma lente também é importante para mim. Aliás, só potencia o meu trabalho. Só me facilita saber em que escala é que eu estou. Não vou exagerar no movimento. Se estiver muito fechado, sei que é muito mais fácil para mim eu poder trabalhar só com o olhar. A Globo trouxe-me muito esse conhecimento.

Em termos de popularidade, vocês da noite para o dia passam a ser famosos num país imenso como o Brasil.
Eu não imaginava que fosse assim tanto.

E lidaste bem com isso?

Eu sou tranquilo nesse sentido. Eu gosto de falar muito com as pessoas. Gosto de sentir o feedback real do que as pessoas estão a dizer.

E como é que foi trabalhar com também atores que tu admirarias?
Foi ótimo. Foi uma aprendizagem muito grande e eles acolheram-me muito bem. 

De novo, a humildade existiu aqui? Entre os grandes e a pessoa que vem de fora?

Sim. Sem dúvida. E, muitos deles, que é aos quais eu continuo a falar ao passar destes anos todos, o cuidado de perceberem que ele está aqui sozinho e saberem acolher. A Juliana foi extraordinária nisso. A mãe, a Cris, foi extraordinária nisso. Foram quase família. Foram pequenas coisas. Está tudo bem? Precisa de alguma coisa? Vamos jantar? Vamos não sei o quê. E o próprio Projac [Estúdios da Globo], que é um mundo...

É uma fábrica? Uma imensa fábrica?

Sim, é uma fábrica gigante. O primeiro dia que cheguei lá, apanhei o buggie errado e já ia para trabalhar para um estúdio. Aquilo tem tipo carrinhos de golfe. Eu apanhei um carrinho de golfe e pensei, isto não é aqui, só que aquilo é tão grande. Eu pensei, deve ser outro caminho. Perdi-me. Estava num outro sítio qualquer, mas essas pequenas coisas de logística, até às coisas mais profundas, a forma como se trabalha, o trato com as pessoas, foi extraordinário. Mas foi um clique. Aquilo estreou, no dia a seguir estava a jogar futvólei na praia, que é uma paixão que eu tenho, que é o futebol. E eu sentia as pessoas, a fotografia e não sei o quê. Eu dou-me bem com isso. Sentia-me...  Aí, foi um momento em que eu senti, ok, as pessoas gostam. E aí foi um momento em que eu gostei que as pessoas gostassem, porque para mim também era um salto de fé. Eu não sabia bem qual ia ser a reação de um ator português a fazer uma personagem mexicana, no Brasil. Ou seja, eram muitas camadas para dar certo. E aí deu certo.  

Continuas a jogar à bola?

Continuo. Brinco muitas vezes, durante a semana. E, aliás, nos últimos meses, até há pouco, joguei em Nisa futsal. Porque... Eu estava parado, em termos de profissão, não estava com nenhum projeto. E disse, sim, bora. Estou aqui a pensar demais. Já estava demais nas minhas preocupações e do que é que vai ser agora e o que é que vem a seguir. Será que vai acontecer? Será que não vai?  

As inquietações de um ator.

E depois olhei mais uma vez, voltar à base e disse: os meus amigos de infância estão-me a chamar para ir jogar.

Esta experiência da novela não acabou bem?

Não, de todo.

E dizias há pouco que isso magoou-te muito. Magoou-te o que as pessoas disseram? O facto de as pessoas não terem entendido?  

Sim.

Mas não entenderam porquê? Porque não tiveste tribuna para explicar?  

É, ou seja, eu acho que o que me magoou mais foi sentir-me, de repente, tão pequeninho que não tinha voz. Era uma situação que não valia a pena explicar, mas que, para mim, foi horrível. E eu demorei muitos anos a curar e não quero dizer que esteja curado completamente dessa dor, porque tudo o que faço na minha vida...

Tu deixas a novela porque tens um compromisso, não é? E há uma pandemia que rebenta em 2020?

Deixo a novela, porque é uma pandemia mundial.

É o que te faz parar?

A novela ia, imaginemos, até junho. Nós parámos em março, quando aparece a pandemia. E o contrato ia até junho. E eu tinha trabalho aqui em agosto.  

Com o Carlos Avilez, se não me engano. 

Começámos o Hamlet. 

Aliás, falámos disso antes de ires para o Brasil.

Foi o projeto da minha vida, até agora. E eu posso dizê-lo, com a maior franqueza, pode não ser uma coisa de milhões, mas...  

O Hamlet é uma espécie de Everest.

Foi, foi. É um cume. E a questão é o que é que fazes depois do Hamlet.  

Há mais cumes.  

Há muitos, mas tens que saber descer a montanha para voltar a subir. E, nesse momento, o que eu me senti era...  Eu senti-me injustiçado, porque eu não fiz nada de mal e a única coisa que eu faço é ter... É ter dado a minha palavra e a minha palavra...  O meu pai sempre me disse que é a coisa mais... Não só, especial, como é óbvio. Bonita. Mas valiosa. Ainda dói.

Ainda dói.

Dói. Dói-me muito, porque... Porque eu simplesmente não tive culpa está a perceber? Eu só queria estar ali. Eu fui feliz ali. Eu queria muito terminar aquele projeto, como podem imaginar, e depois partiu-se do pressuposto que fui eu que não quis voltar. E dizer-se publicamente que era isso, que eu não quis voltar, mesmo até num país em que é o meu país, em que...  Ou seja... Podiam-me ligar a perguntar o que é que aconteceu. Sabes? É o primeiro confronto que eu tenho com a dimensão pública. 

Nunca tinhas tido um confronto deste género aqui no teu país?
É o primeiro e é logo gigante, no sentido que é um salto muito importante profissional e que me magoa pessoalmente.

Portanto, tu ainda não tinhas, e não sei se ainda tens, estrutura para aguentar este tipo de comentários maldosos, nefastos...?

Agora já tenho. Eu acho que agora relativizo muito. Eu acho que foi uma queda muito grande, eu estive mesmo muito em baixo, ao ponto de...  

Como é que te salvaste?  

Trabalhando. E a primeira coisa que eu faço depois a seguir, que estou a ensaiar com o Carlos, começo uma novela para a qual também já estava falado que eu ia fazer. E eu dei por mim, os primeiros dias, com medo do que eu estava a ser. Medo, não de estar a ser reativo... Eu não confiava em mim. Eu não confiava no ator que eu era e se acho...  

Tu puseste-te em causa?

Eu pus-me em causa, completamente.   

Depois de todas as provas dadas?

Depois de tudo o que aconteceu, eu só de pensar que num sítio onde eu fui muito feliz, onde as pessoas gostavam de mim, todos acreditam que eu não quis voltar, a mim rasgava-me o coração, porque não é verdade. Não é, e ninguém me está a deixar falar e a minha questão era...  Eu, de repente, estou em cena e estou com dúvidas.  

Mas tu quiseste falar na altura?

Sim, eu falei. Eu depois até falei publicamente, através das redes sociais e entrevistas e tudo, só que era mais fácil justificar um dos protagonistas como não querer vir, do que dizer...Tu de repente és muito pequenino. De repente, és tão pequenino que é mais fácil dizer que ele não quis vir, do que justificar o tão simples como ele não pode. E na altura ninguém estava a contar com uma pandemia mundial. Ninguém conta com isto. Hoje em dia, já vem em contrato que se acontecer alguma coisa tu não podes.  

E isso que te aconteceu preparou-te para o quê?  

Preparou-me para tudo o que veio depois. E foi difícil esse início que eu estou a dizer, porque eu duvidava de mim e eu nunca tinha tido isso como ator. Eu como ator, se há coisa que eu reconheço que tenho como ferramenta, não é só confiança, é o instinto. Eu como ator, sou um ator de instinto. Por mais que a coisa esteja marcada, eu sei onde é que eu me posso...  Lá está, todos os dias é diferente. Eu sei que posso ir daqui a aqui, seja uma questão de luz, de marcação, seja uma questão de câmara e eu vou explorar todo esse espectro. Não vou ficar só na marcação que me disseste. E de repente, eu ali estava a duvidar de todas as palavras que eu dizia, estava a pensar que não sabia o texto e eu decoro o texto com uma facilidade que eu olho duas vezes e está na minha cabeça. E isso mexeu-me como ator e foi muito difícil voltar. Eu lembro-me perfeitamente do momento em que eu começo a duvidar de mim e começam os ensaios do Hamlet, que é só o maior desafio que eu ia ter, e eu pensei, pá, eu não estou preparado para isto. E eu lembro-me perfeitamente do momento em que eu disse: está tudo bem.

E foi aqui?

Foi. Eu estava no primeiro ensaio de palco. Chego mais cedo que toda a gente, entro por ali, venho até aqui ao centro do palco e olho para ali para a cadeira do Carlos, está o Carlos sentado. E daí ele ia, então rapaz? E, nesse momento, eu percebi que estava tudo certo. Eu fiz a escolha certa, ou seja, eu não voltei para o Brasil porque não podia, mas eu estou no sítio certo. Este senhor esperou por mim dois anos, deixou-me viajar e fazer os meus mundos e esperou por  mim para fazer este projeto. Eu estou onde eu preciso de estar, neste momento e eu lembro-me que a partir daí ganhei outra confiança. E fomos começando durante alguns meses a ganhar essa confiança.

Foi no palco que te curaste.

E o meu Hamlet foi um Hamlet muito amargurado. O Hamlet é sempre muito, porque é o ator, mas é muito amargurado. Não é um príncipe. Eu não acho que o Hamlet seja um herói e este meu Hamlet também foi o reflexo do que eu estava a ser nesse momento. Essas inseguranças, essas incertezas, um lado muito, quase autista, de ter o seu próprio mundo, mas a sua forma de pensar.  

É um lado sombrio também.  

Muito sombrio. E eu curei-me aqui. Se bem que é uma coisa que vai demorar, mas já tenho confiança no meu trabalho.

E chegamos a Rabo de Peixe. Sete episódios que eu vi em dois dias. Parabéns a ti e a todos.

Muito obrigado.

Que projeto maravilhoso. Extraordinário. Um projeto, claro, que é ficção, mas que parte da realidade. Isto aconteceu em Rabo de Peixe, uma freguesia de pescadores, muito marginalizada, estigmatizada, na ilha de São Miguel.

Infelizmente, aconteceu em 2001. Isto parte de um ponto...  A ideia do Augusto [de Fraga], o realizador da série, que nasceu em Vila Franca, em São Miguel. E a história, a ideia dele é... Aconteceu, um barco vem com uma tonelada de cocaína, vira e vai dar a Rabo de Peixe. O que é que aconteceu ao resto da droga que não foi apanhada? E a questão dele era, o que é que aconteceu? E é premissa para toda a história que é escrita. E é muito crua essa realidade. 

Como é que foi entrar nesse universo?  

Foi extraordinário. Foi um dos projetos que me mudou também como pessoa. Eu, quando soube que ia fazer a personagem, fui sozinho para Rabo de Peixe. Eu nunca tinha ido aos Açores, ou seja, eu comecei a conhecer a ilha, neste caso não conheço os Açores, conheço a ilha de São Miguel, a partir de Rabo de Peixe. Eu comecei a conhecer tudo a partir do dia que eu cheguei lá pela primeira vez. Pousei as coisas em casa e comecei a descer a rua e encontro dois miúdos, que é o Ivan e o Dani, que são dois miúdos extraordinários que eu trouxe quase como irmãos mais novos, que ainda há pouco tempo estive lá e foi maravilhoso voltar a reencontrá-los. E fiz questão que eles estivessem agora na estreia a ver o primeiro episódio, porque eles foram maravilhosos. Sem saber, foram com a sua inocência e deram-me a conhecer, começámos a jogar à bola, como tudo se constrói. O gelo quebrou-se aí e depois apresentaram-me todos aqueles que iam ser as pessoas importantes para a construção da minha personagem. O Miguel. que me levou a pescar no barco para eu perceber como é que era a pesca. O Carlitos. que me deu a conhecer toda a logística de como é que se faz o remendo das redes, preparar o isco, tudo por eles.

Porque é assim que se constrói uma personagem para que ela seja verdadeira, autêntica?

E há coisas que podem não se perceber, ou seja, o espectador pode não saber, mas eu sei. E ajudam. Por exemplo, a minha personagem está sempre a molhar os lábios, porque isto é um hábito que, quando estás no mar, estás sempre com os lábios com o sal e o sal greta, e mais vale tirares o sal e ficar molhado e frio, do que o contrário. E a minha personagem tem muito isto.

Um pequeno pormenor.

É um pequeno pormenor. Agora, se formos ver, há muitas vezes que eu faço isso na série. Felizmente, está lá. As mãos, eu lembro-me da primeira noite que fui para o mar puxar, é que é uma pesca que não é de todo fácil, é ingrata. E puxar as redes com o sal, com o frio, a cortar as mãos, a arder. Isso traz-me sensações. E traz-me, acima de tudo, respeito por aquelas pessoas. Eu jantei, eu dormi em casa daquelas pessoas. Nas primeiras semanas que eu estive lá, depois na série não.

Mas tudo isso é importante para a construção do Eduardo.
Sem dúvida, tudo aquilo. E os medos. Já pensaste? Uma pessoa que vive numa ilha tem medos que nós não temos. Se nós aqui tivermos uma ameaça de, imagina, de um tsunami. Acho que nós podemos fugir.

Eles não têm por onde escapar. O horizonte é o mar.

Eles não têm por onde fugir. O horizonte é sempre o mar. Eles estão presos.

Quanto muito, antevêm a dobra do horizonte que é a América e eles querem muito esse sonho. 

O Eduardo quer esse sonho e consegue, no final. Vamos ver...

O Eduardo partiu para a América. É um dos teus objetivos, José Condessa?
É um dos.

Tu já viste a série toda? O produto? É notável.  

Já. É extraordinário. Eu babo-me, porque foi uma coisa muito pequena.  

Eu já me tinha babado com o Glória, agora então...

Eu acho que estamos a crescer.

E isto é bom em qualquer parte do mundoE todos os atores são fantásticos. A luz, a realização. Que orgulho.

E é bom para nós, portugueses. É um orgulho nosso. E eu tenho sentido as pessoas que vou encontrando na rua que fazem questão, não é questão de tirar uma fotografia para conhecerem, é fazer questão de dizer que bom que aquilo é, que orgulho que isto seja português e isto é um novo passo.  

Já tiveste o retorno dos de Rabo de Peixe? 

Já. No primeiro dia, antes de estrear, fomos fazer a première [estreia] a Rabo de Peixe. Estávamos nervosos, como é óbvio. Porque, de repente, estamos a devolver aquilo que nos deram e espero que gostem, espero que se identifiquem. E o nosso medo era que de alguma forma sentissem outra vez um estigma.

Porque ali não há trabalho caricatural. 

Não há, nenhum. E eles adoraram. Adoraram e foi a melhor coisa que podiam dizer porque... Eu não acho que foi tipo... Ok, boa. Eles que, pelo menos, receberam-nos tão bem, gostaram.  E se eles gostaram, ok, pode correr muito bem em termos de público ou não, mas eles sentiam, diziam que de repente agora vão olhar com orgulho para Rabo de Peixe. E eu dizia-lhes isso e eles ficavam fascinados. As pessoas fora do país não sabem o que é que é Rabo de Peixe. E vão saber que Rabo de Peixe é aquela série muito bonita da Netflix. Não vão saber o resto.  

O que é que a Bárbara achou da série? 

Ela gostou muito. Ela sentiu-se muito orgulhosa. E vimos a série juntos, que foi muito bonito. Eu quis esperar por ela e tinha essa reticência de começar a ver, porque a sensação de que está a acabar... Quando eu acabar de ver o último episódio, que ainda não terminei, porque eu sinto que é fechar de um ciclo. E isso tem o seu peso. Mas a Bárbara sempre foi, este tempo todo...

De que é feito este vosso amor? Ainda por cima, uma união entre pessoas com a mesma função.  

Sim, é verdade. Muitas vezes parece impossível, com a vida que nós temos, que aconteça.

Não há rivalidades? 

Não. Há muita entreajuda. Tudo o que vejo que eu consigo fazer, tudo aquilo que eu alcanço, tem um trabalho enorme da Bárbara. Nem que seja por estar presente. É a minha primeira confidente, óbvio, mas é a primeira pessoa a julgar o meu trabalho e vice-versa. E eu confio na opinião da Bárbara a 100%. Ou seja, é alguém que sei que se... Ao contrário daquilo que eu dizia, que às vezes me dizem, não faças isso, não faças aquilo. Eu digo, eu acho que devo fazer. A Bárbara é aquela pessoa que diz, olha, eu acho que isto é bom e eu digo, ya, bora experimentar. E eu faço. E nós crescemos juntos. Já sabes disso. E crescemos aqui, neste palco, muitos anos juntos, e depois crescemos fora deste palco. 

Como atores e como pessoas. 

E já são muitos anos que eu estou com ela. E isso é muito bonito.

De que é feito este amor?

Acima de tudo, de confiança. E não é confiança só de relação. É de partilha, de confiança. De partilhar a vida. Em todos os seus sentidos. E nós estamos a partilhar um momento que é importantíssimo para nós, que é o crescimento, em que há muitos medos, há muitas inseguranças. Profissionais e pessoais, e a questão de estarmos ou não a aproveitar realmente a idade que temos, porque com a profissão e com a exigência dos trabalhos que nós abraçamos, temos noção que perdemos a vida. Perdemos muita vida, ganhamos outra, mas perdemos momentos.

Porque há outra vida?

Porque há outra coisa que poderíamos estar a viver, que é normal, e que nós tentamos agora cada vez mais aprender.

Mas esta é tão plena, não é?

Esta é tão plena. Mas mesmo momentos a dois, sabe? Momentos de namoro, de estar. Sem ser sempre só o casal. E nós temos feito esse afastar um bocadinho do lado que trabalhávamos juntos, durante muito tempo. Temos afastado esse momento de sermos o casal, em que chegaram até a relativizar o nosso trabalho, por sermos casal. Aconteceu com o "Crime do padre Amaro".

Parabéns. Também vi.  

Obrigado. Porque foi um projeto em que...  Sabes, são namorados, é fácil. E isso é horrível. É horrível, porque nós sabemos o que é que nos doeu. Aliás, é mais difícil ainda por sermos namorados. Tens de construir uma relação do zero. Aquele olhar tem de ser o primeiro olhar. E não o olhar de alguém que namora há cinco anos.

Tens de te afastar da ideia de casal. 

Aqueles não somos nós. As pessoas acham que estão a ver aí a nossa intimidade, não estão... E depois tem cenas difíceis que as pessoas não lembram. A cena mais difícil de fazer com a Bárbara, de sempre, foi no Crime do padre Amaro, que é a cena da violação. Os demónios que aquilo traz. Nós tivemos que saber, com muita força, falávamos antes sobre isso, o que é que íamos fazer depois e cumpri-lo. De obrigar-nos a falar do assunto, relativizar, perceber que estamos aqui. Aquilo não éramos nós. Aqueles sentimentos não podem entrar na nossa relação. E isso não é fácil, porque tu vives. Nós não estamos a brincar ao faz de conta, por isso é que aquilo é tão duro.  

Falas muito de medos. Quais são os teus maiores medos?  

O meu maior medo é olhar para trás e pensar que não valeu a pena. É aproximar-me do fim e pensar, foi isto que eu fiz com a vida? Até agora, eu acredito que estou no caminho certo, mas tenho esse medo. Tenho o medo de não poder voltar atrás e de ser tarde demais para alguma coisa. Percebes? Mas eu tenho muito tempo, se tudo correr bem, para fazer muitas outras coisas e decidir a minha vida.

Nomeadamente, ter filhos?

Sim, claro.  

Que pai é que queres ser?  

Como o meu pai foi para mim. Os meus pais foram extraordinários comigo, de tudo. De ter a paciência em todos os momentos... Eu aprendi a ler em casa, porque eles tiveram paciência para o fazer. Há muitas coisas que eu trago, de relação humana, que eu tenho medo de não conseguir passar aos meus filhos. Ou seja, o olhar que eu tenho com a questão da história, da vida, do reconhecimento dos mais velhos, o respeito pela tradição... Não a tradição em si, mas a tradição de um costume no teatro. O respeito pelo sagrado, que não é religioso. É o sagrado de perceber que isto é sagrado para ti, e eu tenho essa empatia para contigo. Compreendo o teu mundo. Deve-se à educação. Eu gostava de poder um dia passar isso.

Tu estás com quantos anos? 

25.

Tu és das pessoas mais extraordinárias que eu conheço. É um privilégio saber que gostas de mim.

Eu gosto muito de ti.  

Eu sei. E eu adoro-te.  

E é maravilhoso. Mas é mesmo. Eu gosto mesmo muito de ti. Tu és extraordinário.

Com 25 anos apenas. Parabéns, José Condessa.

Obrigado. Muito obrigado.

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