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Estudante de Doutoramento em Teologia na Universidade da Santa Cruz, Roma

Uma cadeira de rodas e um aborto que mudaram a vida de Esther

21 ago 2023, 18:25

Sexta-Feira, 04/08/2023. Parque Eduardo VII, 14h30. Esperava-se mais uma enchente para receber o Papa no dia dedicado à Via Sacra. O ambiente é de grande festa. Todos se perguntam por onde passará o Papa. Ao meu lado, junto ao Pavilhão Carlos Lopes, estão duas pessoas da Nicarágua. O Juan e a María pedem-me que reze por uma intenção especial. Fiquei a pensar: “devem estar a passar mal, uma crise, uma doença, um contratempo”. “Padre, o nosso bispo Rolando Álvarez foi condenado a 25 anos de prisão por traição e desobediência civil ao regime. Faz hoje um ano que lá entrou. Reze para que ele seja libertado”. 

Aquela notícia, naquele contexto, desarmou-me. Estávamos ali, em festa, com muitos bispos, pessoas de todo o mundo prontos para seguir o Papa. E um bispo, na Nicarágua, vivia a realidade da prisão por fidelidade aos seus princípios e valores. Pensei que aquele seria  um bom mote para começar a Via Sacra. A vida da Igreja, como a tua e a minha, é feita de alegrias e tristezas, de eventos libertadores e de outros que causam sofrimento. O Papa passa mesmo à nossa frente e tem tempo para beijar uma criança. Emocionante. Pouco depois, Francisco começa a Via Sacra, a recordação do caminho feito por Jesus até ao Calvário, em 14 momentos ou estações. “O Verbo fez-Se homem e caminhou entre nós. E fá-lo por amor”, foram as suas primeiras palavras. No centro do cenário azul está a cruz que acompanha cada Jornada Mundial da Juventude. Essa cruz que deu a volta ao mundo e nos últimos meses circulou de Bragança a Faro, passando pelos Açores e pela Madeira. “A Cruz é o sentido maior do maior amor, daquele amor com que Jesus quer abraçar a nossa vida”, rematava o Papa.

Para os que pensavam que a JMJ seria um grande festival Rock&Roll católico, a sobriedade da música interpretada pelos Ensemble 23 (um grupo de 50 jovens provenientes de 22 países, dirigidos pela maestrina portuguesa Joana Carneiro), a encenação cuidada, o ambiente de recolhimento, os textos lidos com pausa, anunciavam algo diferente. Ali, sob o céu azul de Lisboa, podia-se mesmo rezar com o Papa.

Para mim, foi um dos momentos mais marcantes desta JMJ. O Papa tinha estado nessa manhã a confessar 3 jovens no Parque do Perdão, em Belém. Toda essa sexta-feira era dedicada a um Deus que sofre por nós, que nos perdoa, que nos ama com loucura. O Papa não nos veio dizer que está tudo bem e pedir que sejamos bonzinhos. Pediu radicalidade na maneira de viver e olhar para a cruz. Concretamente, na Via Sacra recordámos três momentos em que Jesus caiu sob o peso da cruz. O comentário à primeira queda, feito pelos jovens que escreveram a Via Sacra, foi eloquente.

“Tu, sozinho. É assim que também me sinto às vezes quando espero uma mensagem que não chega ou um abraço que não aparece. (...) Olho para Ti caído no chão. Imagino-Te a levantar a cabeça e a olhar para mim. Imagino-Te a dizer: "Caio contigo para te levantar comigo. Anda, levanta-te e segue em frente. Vamos juntos.

Sim, naquele dia da JMJ tocámos as fibras mais íntimas do sofrimento humano, pela voz de jovens dos cinco continentes. Ao longo daquela tarde fomos conhecendo vários testemunhos que me surpreenderam, como o de Esther, espanhola de 34 anos. Para conhecer a sua história, temos de recuar uma década. Vivia completamente afastada da religião e de Deus. Quando terminava o seu curso de arquitectura, decidiu ir a uma festa. O que a jovem não esperava era que lhe servissem uma fatia de bolo que continha substâncias alucinógenas que a levaram a atirar-se de uma janela. Esther sofreu uma lesão na medula que só lhe permite deslocar-se numa cadeira de rodas. "Fiquei zangada com Deus. Tinha a ideia de que se fizermos coisas boas, acontecem-nos coisas boas; se fizermos coisas más, passamos um mau bocado”. 

A lesão provocou uma mudança radical e inesperada na sua vida. "Foi uma dádiva. Mudou a minha perspetiva. Tirou-me do ambiente em que estava enfiada, mudou o meu ponto de vista e vi que não estava a viver bem”. Anos depois do acidente, a jovem conheceu o seu atual marido, Nacho. “Apesar da ajuda de familiares, dos profissionais do hospital e de conhecer o Nacho, os problemas continuavam a aparecer”.  Pouco depois engravidou e decidiu fazer um aborto. “Não sabíamos amar-nos um ao outro e continuávamos a acreditar em tudo o que o mundo nos dizia.” Porém, “alguma coisa tinha morrido dentro de mim”, expressou Esther. Arrependeu-se, confessou-se depois de muitos anos e voltou à Igreja. Pouco depois ficou novamente grávida. A Isabel veio a este mundo e Esther confessa que é “alguém que amo com loucura”. Os desafios e problemas não desapareceram. A vida continuava a ser difícil. Esther e Nacho melhoraram a comunicação em casal, com a ajuda dos Centros de Orientação Familiar. E finalmente, no dia 7/5/2022, casaram-se. "Deus veio procurar-me como o bom pastor que vai à procura da ovelha perdida. A partir daí, aproximei-me d'Ele e regressei à minha fé, senti a infinita misericórdia de Deus", explicava a jovem naquele vídeo seguido pelos 800.000 jovens que se perdiam de vista desde o Parque Eduardo VII à Av. da Liberdade.

Faz-se silêncio. Há lágrimas. A Esther estava ali mesmo, sentada na cadeira de rodas, com o Nacho e a filha Isabel. Quando a sua imagem apareceu nos ecrãs gigantes ecoou um gigantesco aplauso. Olho para o Papa. Estava feliz. Esther, como Jesus, tinha caído. Caiu muito baixo. Mas soube levantar-se. 

Francisco veio-nos dizer que, quando Deus entra na nossa vida, o mal não tem a última palavra. O Papa pediu aos jovens que se questionassem por que choram de vez em quando. Depois de deixar claro que Jesus chora connosco porque nos acompanha na solidão, Francisco salientou que Ele espera preencher com a Sua proximidade a solidão, e com consolo os nossos medos obscuros.  

Pediu-nos algo exigente. “É preciso correr o risco de amar. É um risco, mas vale a pena corrê-lo", adiantou, desafiando os jovens, com o seu sofrimento, ansiedade ou solidão, a fazer caminho com Jesus. Mais ainda, ele quer que nos aproximemos com bondade daqueles que sofrem, dos que são perseguidos, para partilhar o seu sofrimento, para os ajudar a carregar a mesma cruz de Jesus. E assim alcançamos a salvação e podemos contribuir para a salvação do mundo. 

Esta foi a vida de Cristo. Esta está a ser a experiência de D. Rolando numa prisão da Nicarágua. Esta é a história de Esther. E poder ser a tua e a minha: saber encontrar em Cristo um sentido para o mistério do sofrimento. Como conclui o Papa: “Jesus morre na Cruz, para que a nossa alma possa sorrir”.


P. Jorge Oliveira
Padre do Opus Dei. Estudante de Doutoramento em Teologia na Universidade da Santa Cruz, Roma

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