João Abel Manta desenhou Salazar, o 25 de Abril e o MFA mas é muito mais do que o autor de "uns bonecos que eram publicados nos jornais"

6 abr, 18:00

A exposição que agora é inaugurada em Algés mostra a grande diversidade da obra do artista que ficou conhecido sobretudo pelas ilustrações e cartoons que publicou na imprensa - antes e depois do 25 de Abril de 1974

Os desenhos do povo com o MFA, claro, os cartoons publicados na imprensa, óbvio, mas também os cartazes de filmes e colóquios, os painéis de azulejos, as tapeçarias feitas em família, os selos, as colagens, os figurinos e cenários de teatro, as ilustrações de livros, os muitos desenhos feitos por simples prazer, as pinturas quase desconhecidas - a exposição "João Abel Manta: Livre", que este sábado foi inaugurada no Palácio Anjos, em Algés, mostra uma obra extensa e prolífica de um artista que é muito mais do que o autor de "uns bonecos que eram publicados nos jornais", como ele próprio lhes chamava.

Esta é "a mais abrangente exposição" dedicada a João Abel Manta, considera o curador, Pedro Piedade Marques, o que acontece devido ao "enorme influxo de material novo", vindo do arquivo da família, incluindo bastante material inédito - desenhos, projetos, fotografias, jornais. Tudo graças à neta Mariana Manta Aires que, nos últimos dois anos, se dedicou a abrir caixas, armários e gavetas e a organizar toda a coleção espalhada pela casa da família. "Ajudou o facto de o meu avô e a minha mãe morarem ainda na mesma casa, onde tudo foi sendo guardado", conta Mariana, que leu todas as cartas, organizou recortes de jornais, e, mesmo sem formação na área, como faz questão de frisar, tem vindo a catalogar a obra do avô. "Tem sido um período de descobertas", confessa. O avô, com quem sempre falou de muitos assuntos mas raramente sobre a sua obra, e que até aqui via mais como um amigo do que como artista, foi se revelando à sua frente. A cada descoberta a neta subia as escadas até ao quarto andar onde o avô vive, fazendo-lhe perguntas, espicaçando a sua memória, procurando reunir informações.

João Abel Manta, atualmente com 96 anos, está impossibilitando de sair de casa por razões de saúde, mas acompanhou todo o processo e, conta Mariana, ficou entusiasmado com a ideia de ver a sua obra exposta. "Ele está muito orgulhoso e muito contente que finalmente se fizesse uma exposição que abrangesse todo o tipo de trabalho. Ele não fez só cartoon, ele não fez só pintura. Fez tantas outras coisas que faltava serem mostradas. E ficou tão satisfeito, tão feliz. Há quase vinte anos que sente que a obra dele foi esquecida", admite Mariana aos jornalistas durante uma visita à exposição.

“A quantidade de obra que ele fez é de tal modo esmagadora que mesmo uma exposição destas dimensões não passa de uma amostra”, afirma também o curador. O ponto de partida para a seleção e organização das peças foi a liberdade, um conceito determinante ao longo de toda a vida de Abel Manta: "Ele viveu grande parte da sua vida em ditadura e quisemos perceber como é que ele conseguiu ser livre neste contexto, explorar as suas liberdades não só gráficas, não só plásticas, mas também na sua vida", explica Pedro Piedade Marques.

Filho dos pintores Abel Manta e Clementina Carneiro de Moura, João Abel Manta nasceu em Lisboa em 1928 e formou-se em arquitetura. Crescendo num ambiente privilegiado, a sua consciência política despertou muito cedo. Entre o material inédito exposto agora em Algés encontram-se os desenhos feitos na prisão. Uma janela de grades aberta para o céu. A cela com as várias camas enfileiradas. Os outros presos, recostados, a ler. Pedro Maques chama-lhes "desenhos de melancolia e de desalento", a lápis ou a caneta, em papel de fraca qualidade, entretanto amachucados - foram feitos durante os dias sem horas que João Abel Manta passou na prisão de Caxias em 1948. Tinha 20 anos e foi detido pela PIDE, suspeito de associação ao MUD Juvenil. Apesar de não ter sido torturado e de ter saído da prisão ao fim de duas semanas, a experiência tornou-o ainda mais revoltado.

O "fantasma" de Salazar não mais o largou: "Aquela geração tinha uma enorme esperança que a ditadura acabasse após o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas, com a Guerra Fria, Salazar tornou-se um dos grandes amigos da América, e a ditadura parecia ainda mais reforçada. Esse foi um grande golpe para esta geração", explica Pedro Marques. Ao longo da sua carreira, João Abel Manta tentou analisar e fixar a fisionomia de Salazar, num exercício que o comissário considera próximo de "um exorcismo". Exemplo disso são as ilustrações de "Dinossauro Excelentíssimo", o livro de José Cardoso Pires, de 1972, mas também os muitos outros desenhos onde vemos o ditador nas várias fases da sua vida, envelhecendo, assim como o regime envelhece parecendo eternizar-se. Em 1978 publicou o livro "Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar" (1978), síntese de sofisticada ironia onde traça um quadro negro, mas preciso, daquele período da História de Portugal.

No contexto da arte pública, João Abel Mantas fez intervenções nos pavimentos de mosaico para arruamentos na Praça dos Restauradores, em Lisboa, e na Figueira da Foz, enquanto na azulejaria concebeu, entre outros painéis, o revestimento do mural da Avenida Calouste Gulbenkian, em Lisboa, aplicado em 1980. Foi a partir de azulejos que sobraram desta obra, encontrados em casa, que a neta Mariana criou um novo painel - uma "reinterpretação minha da obra dele", explica, seguindo, no entanto, os conselhos do avô - que apresenta nesta exposição. Pedro Marques chama a atenção para o estado de degradação de alguns dos painéis de azulejos de João Abel Manta, nomeadamente dois localizados em Coimbra: no Teatro Gil Vicente (1955) e nos edifícios da Associação Académica de Coimbra (1959).

O projeto de um vitral para o Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa (que foi apresentado a concurso mas não foi escolhido)  é uma das peças mostradas pela primeira vez. E entre as obras mais curiosas aqui apresentadas estão as tapeçarias realizadas em 1969. Mariana conta que eram a bisavó e as tias-avós que cosiam os tecidos, de acordo com os desenhos do avô. "Eram um trabalho de família." Não admira por isso que as tapeçarias estejam assinadas com "JACH" - João Abel, Clementina e Hermínia.

João Abel Manta começou a publicar nos jornais em 1969, quando já era um artista conceituado e premiado e sempre se recusou a receber qualquer dinheiro pelos cartoons e ilustrações que fez para o Diário de Lisboa: "Considerava que era um investimento político, desenhava para passar uma mensagem", explica Pedro Marques. "Os cartoons, os desenhos de imprensa [que ele fez nos anos 1960 e 1970] não eram feitos para si, mas com um cariz social, para que estivessem disponíveis e o povo os pudesse apreciar”, acrescenta a neta. Foi inovador na forma como juntou desenhos e fotografias e as suas ilustrações rapidamente se tornaram inconfundíveis, quer pelo traço quer pelo modo como olhava e comentava a atualidade. Muitas vezes conseguiu "enganar" o "Exame Prévio", outras vezes foi censurado. Em 1972, um poster alusivo ao Festival da Canção, no qual reinterpretava a bandeira nacional, valeu-lhe um processo em tribunal.

A Revolução de 25 de Abril trouxe-lhe uma enorme alegria e permitiu-lhe desenhar com plena liberdade. São dessa altura, e a seguir, os seus trabalhos mais conhecidos, com caricaturas das principais figuras políticas, a celebração da Revolução e, sempre, a crítica social. Estes desenhos, alguns deles são aqui mostrados, são "a iconostase do artista", afirma Pedro Marques.

Em 1982, depois da morte do pai, João Abel Manta abandona o trabalho gráfico e decide dedicar-se apenas à pintura. "Foi também um ato de liberdade", explica o curador. "Finalmente, sentiu-se livre para fazer aquilo que sempre tinha querido fazer", agora já sem a responsabilidade da presença do pai-pintor, e sem se preocupar em agradar ao público. 

Mariana Manta Aires não esconde a alegria de poder mostrar o trabalho do avô, sobretudo aquele que é menos conhecido. A neta vai continuar a trabalhar no arquivo de João Abel Manta e espera poder inventariar tudo para, depois, perceber qual a melhor solução para este espólio. “O nosso objetivo é que as coisas estejam expostas. Se elas estão guardadas em nossa casa ou em instituições é um bocado indiferente, desde que o trabalho dele continue a ser mostrado. Isso é que é preciso que seja garantido, que é uma coisa que até agora não foi”, diz Mariana Manta Aires, lembrando que parte do acervo está depositado no Museu de Lisboa, mas “há uma questão com burocracias envolvidas”, nomeadamente com documentação relativa aos termos da cedência de obras. “Em 1992, o meu avô organizou uma exposição gráfica e cedeu ao Museu de Lisboa com a premissa de que fosse mostrado. O que aconteceu nos últimos 30 anos é que não foi mostrado ou raramente foi mostrado”, lamenta. O ideal era ter um espaço próprio para acolher o acervo, “porque é uma grande responsabilidade ter isto só em nossa casa” - até pode ser em Oeiras, mas, para já, Mariana não tem qualquer garantia. “O objetivo é que o trabalho do meu avô seja visto e admirado", conclui.

Além das obras do arquivo da família, a exposição conta com empréstimos de instituições como o Museu de Lisboa e o MNAC Museu do Chiado, assim como de colecionadores particulares de relevância, como os herdeiros de Vasco Gonçalves (a quem o artista ofereceu maquetas de cartazes, que aqui são expostas pela primeira vez) ou os designers gráficos Jorge Silva e José Brandão. 

A exposição no Palácio Anjos insere-se no programa de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 da Câmara Municipal de Oeiras e ficará patente até 20 de dezembro.

A 25 de abril, o Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta, em Gouveia (Guarda), vai igualmente inaugurar uma segunda exposição dedicada a João Abel Manta, mais virada para a “temática revolucionária, com desenhos e cartazes”, explica Mariana Manta Aires.

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