As fotografias de Eduardo Gageiro contam a história deste país. "Com paisagens tão bonitas que temos, porque é que só fotografa gente humilde?"

3 fev, 18:00

Trabalhou em jornais, foi preso pela Pide, esteve ao lado de Salgueiro Maia no 25 de Abril e acompanhou presidentes da República em viagens pelo mundo. Exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro tem 170 imagens, desde os anos 50 até 2023. Para ver, até maio, na Cordoaria Nacional, em Lisboa

Eduardo Gageiro passeia por entre as imagens a preto e branco contando as suas histórias. Aqui estão o bailarino Nureyev, o cineasta Orson Wells, a atriz Gina Lollobrigida "quando veio a uma dessas festas dos ricos". Salazar, de costas, a olhar o rio, um homem sozinho à frente de um país. Mário Soares, acabado de chegar a Portugal, a seguir à Revolução. "Às vezes falham-me as datas, mas lembro-me de tudo o que aconteceu nas fotografias que tirei", assegura. Tem 88 anos e caminha devagar pelas salas enormes da Cordoaria Nacional. Os seus olhos já viram muito e nós, que sorte, com as fotografias que tirou, é como se víssemos um pouco também através deles. Aqui quando levou a Amália, no seu próprio carro, para uma reportagem em Alfama. Nesta outra, pediu a Amália, já a noite ia avançada, que agarrasse a guitarra como se abraçasse alguém de gostasse muito. Às vezes as histórias sobrepõem-se, interrompem-se. "É uma longa história. Isso leva muito tempo a contar", desculpa-se.

São 170 as fotografias na exposição "Factum" que pode ser visitada até 5 de maio. A exposição surgiu por iniciativa da Câmara de Lisboa, através da Egeac. A equipa de Sara Matos, diretora das galerias municipais, trabalhou diretamente com Eduardo Gageiro na seleção das imagens. Foram feitas novas digitalizações, tratamentos de imagem, ampliações e impressões de todas as fotografias selecionadas, a partir dos seus negativos originais, sempre sob as orientações do autor. 

E há também um livro, editado por Eduardo Gageiro, que tem 260 fotografias e o título "Caminhos da Esperança": "Já há uns anos que queria fazer um livro sobre Portugal, sobre o realismo português", conta. "Comecei a juntar fotografias, fotografias, fotografias. Eram milhares. E então comecei a tentar dar uma ordem às coisas e contar uma história. Porque um livro, ensinou-me o meu grande amigo José Cardoso Pires, mesmo que seja um livro de fotografia, tem que contar uma história, assim como um romance", explica. Neste caso, a história é a de Portugal, sob o olhar de Eduardo Gageiro, desde os anos de 1950 até 2023 - as imagens mais recentes, quer no livro quer na exposição, são da manifestação de 25 de Abril do ano passado.

O 25 de Abril de 1974 continua a ser a data de referência para o fotógrafo. Não só porque conseguiu fotografar de perto as movimentações dos militares, fazendo algumas das fotografias mais famosas desse dia, mas porque, para ele, há um antes e um depois. O antes é marcado pela ditadura, pela censura, pela pobreza do país, pelas dificuldades em conseguir ser fotojornalista. Nas manifestações, com a Rollex ao pescoço, tentava passar despercebido. Tirava três ou quatro fotos e mudava de rolo, porque já sabia que seria interpelado pela polícia e que lhe iriam confiscar o rolo que tivesse na máquina. Em 1965, foi preso. Sem motivo nenhum a não ser as fotografias que tirava e que enviava para órgãos de comunicação no estrangeiro. "Com paisagens tão bonitas que temos, porque é que só fotografa gente humilde e não fotograva paisagens?", perguntou-lhe o Pide. As suas fotografias, de trabalhadores de vários ofícios e regiões, davam má imagem de Portugal. Gageiro ficou dois meses numa cela em Caxias, sem ter por onde se mexer, sem livros para ler nem papel para escrever. "Por causa de fotografar as pessoas do meu país", lamenta.

25 de Abril no Largo do Carmo, em Lisboa (Foto de Eduardo Gageiro/DR)

No dia da Revolução, chegou ainda de madrugada ao Terreiro do Paço e fez amizade com Salgueiro Maia, seguindo com ele para o Largo do Carmo, e assistiu a tudo: a chegada dos tanques, negociações tensas, ameaças de morte, ameaças de fogo, rendições. "Não tenho espírito de herói, mas naquele dia eu estava tão revoltado. Estava revoltado com este país. Então, não estava com medo. Só pensava: hoje é que vai ser. E eu estou aqui para o que for." Fotografou a alegria dos militares a fazerem com os dedos o "V" de vitória e do povo que saiu à rua para celebrar.

Vemos o país a mudar numa única fotografia: aquela em que o retrato de Salazar é retirado da parede da sede da Pide/DGS.

Há aqui fotografias famosas, como a da mulher da Nazaré, de semblante triste, retrato de um Portugal cinzento, que foi capa d'O Século Ilustrado, ou ainda aquela expressão de Eusébio, eufórico, a festejar uma vitória, ou a foto de Sophia de Mello Breyner a escrever junto à janela de casa. Mas também há fotografias pouco conhecidas e até inusitadas. Sophia a dançar com os filhos na sala. António Champalimaud com umas luvas de boxe, em pose de lutador. Jorge Sampaio como se dirigisse uma orquestra. Ramalho Eanes a praticar windsurf. Paula Rego, muito jovem, na sua primeira exposição na Sociedade de Belas Artes. Maria João Pires segurando uma galinha. Carlos Paredes a ensaiar sob o olhar atento de Chico Buarque. Miguel Torga de meias. José Cardoso Pires de roupão.

Eduardo Gageiro explica que para fazer a maioria destes retratos o mais importante é a relação que se estabelece com a pessoa fotografada: "Tem de haver confiança e à-vontade. Estas pessoas só permitiram que eu as fotografasse desta forma porque me conheciam", diz. Mesmo em reportagem essa relação é importante, explica. E depois é conseguir captar o momento certo. Isso é algo que não se ensina. A capacidade de clicar no exato momento em que há um esgar, um gesto, aquele olhar. "Não tiro muitas fotografias, só as necessárias", garante. 

Traz sempre consigo uma máquina fotográfica, ainda hoje, nunca se sabe: uma Canon pequena, digital, que lhe cabe no bolso do casaco, cabe-lhe na palma de uma mão, levezinha porque as costas já não aguentam com o peso do material de antigamente. Esse é o primeiro conselho que dá aos fotojornalistas que estão agora a começar: estejam sempre prontos para fotografar. E depois: "E gostem daquilo que fotografam. Amem aquilo que fotografam", diz. "Tudo tem um sentido. Diz-se que o jornalista tem que ser imparcial. Eu acho que não. Eu não sou imparcial. Não estou ligado a nenhum partido, mas analiso a situação, procuro onde está a verdade, tomo um partido." Afinal, o que é um fotógrafo sem o seu ponto de vista?

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