Jenni Hermoso riu-se do beijo que Rubiales lhe deu mas isso não quer dizer que o beijo está certo: "Não vejam o que aconteceu no autocarro a uma luz tão básica"

30 ago 2023, 15:29

 

 

 

 

 

 

Foi posto a circular um vídeo em que as jogadoras da seleção de Espanha e a própria Jenni Hermoso riem-se do beijo de Rubiales - e esse vídeo está a ser usado para supostamente provar que não houve mal nenhum no beijo. Psicólogos ouvidos pela CNN Portugal explicam o que há de mal em pensar isso

O ambiente é de festa dentro do autocarro da seleção espanhola e, em imagens recentemente divulgadas, Jenni Hermoso surge sorridente a comentar um vídeo onde comparam o momento do beijo de Rubiales com o beijo de Iker Casillas e Sara Carbonero na final do Mundial de Futebol de 2010. "Madre mia", diz a jogadora, de sorriso na cara. Nas redes sociais, foram vários os utilizadores que usaram o novo vídeo para concluir que, afinal, não houve "nem assédio nem agressão" por parte de Rubiales à jogadora. 

Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, afirma que é possível que, num primeiro momento, a vítima de uma agressão se consiga rir do que aconteceu, até porque "a tendência das pessoas é diminuírem o impacto daquilo que aconteceu". "Chama-se 'processo de simplificação', que é um mecanismo de defesa normal e natural para lidar com as circunstâncias das coisas. Se eu conseguir reduzir o impacto daquilo, estou-me a sentir protegido em relação ao mal-estar que me provoca", afirma.

No caso de Jenni Hermoso, quando esta vê a fotografia do beijo está rodeada de colegas que brincam com o assunto e é "como se aquilo não tivesse tido importância nenhuma" - o que faz com que a "simplificação" seja passível de acontecer. "E quanto menos violenta for, mais fácil é nós conseguirmos, no fundo, fazer essa simplificação", acrescenta Miguel Ricou.

Também Rute Batista, psicóloga clínica, lembra que este caso não é de fácil análise, principalmente porque não se está na posse de todos os dados e porque "todos os vídeos que já vieram à baila" até agora "sugerem que o beijo não é um movimento normal". "Houve um beijo e obviamente que Jenni fica um bocadinho atordoada, sem saber muito bem o que é que está a acontecer. Claro que não há aquele impacto, aquele impulso de empurrar, de dar um 'chega para lá'. Se dentro de um panorama normal muitas vezes a vítima já fica sem saber o que está a acontecer, quanto mais no meio de uma situação tão grande, de um ambiente tão eufórico como esse. E obviamente que ao estarem no autocarro, de gozarem com o vídeo, a brincarem umas com as outras, ela fica ali um bocadinho indefesa, vai brincando também com a situação, sem saber muito bem o impacto que será que aquilo teve".

A psicóloga diz que, numa análise ao vídeo, Jenni Hermoso "está um bocadinho aflita e mesmo quando pega no telefone e diz aquilo, o 'madre mia', ela ri-se mas não é assim um rir-se tão satisfatório".

Não foi só Jenni que se riu e depois condenou

Tal como Jenni se riu, também as colegas de equipa o fizeram. E, no meio dos festejos, ainda entoaram gritos de "beijo, beijo" e até de "presidente" quando Rubiales entrou no autocarro. As mesmas colegas que, depois do presidente da RFEF ter repetido várias vezes que não se demitia, assinaram uma carta a dizer que renunciavam à seleção até liderança da federação mudar.

"É quase como se fosse a pedra ainda não polida. É brincar, é gozar, é um ambiente muito divertido e depois, de repente, há aqui uma alteração. Porque, de repente, podem ter percebido que aquilo teve impacto na colega? Ela estava a brincar mas não pareceu assim muito confortável. As colegas estão a brincar com a situação e ela pensa que não está a ter apoio nenhum e cala-se. E, de repente dizem às colegas 'olha, aconteceu isto e isto, mas eu não estava nada à espera, o homem passou-se'. E elas dizem 'mas espera lá, isto não pode ser assim'. E ela pode sentir que está aqui com um apoio diferente, já pode assumir as coisas de outra forma. É o que acontece com a vítima. Quando a vítima tem um suporte acaba por assumir as coisas de outra forma", explica a psicóloga, lembrando que este tema não pode ser "visto a uma luz tão básica", uma vez que se trata de uma questão de abuso.

Também Miguel Ricou sublinha precisamente isso, para não se ser básico na análise porque que nos casos de abuso as vítimas passam por vários processos complexos. "Numa situação como esta, onde o que supostamente há aqui é uma situação de abuso mas numa circunstância rápida e num momento positivo [conquista do Mundial], a tendência é para a pessoa simplificar a circunstância e, nesse sentido, brincar com ela até como uma forma de simplificar a circunstância. O que não significa, evidentemente, e não estou a reportar o caso, o que não significa que a pessoa depois não possa, depois de refletir, e parece que o processo todo também foi esse, depois de refletir, depois de pensar, depois de, de alguma forma, passar aquele momento, ter sentido que houve ali uma situação de abuso", afirma.

Ou seja, pode uma vítima de um abuso destes brincar com a situação e depois fazer queixa da mesma? A resposta simples é "sim". "É um momento em que há tanta coisa a acontecer, tanta que de repente nem dão conta de nada e de repente levam com um beijo e siga. Só quando tudo acalma - depois da festa, do autocarro -, quando vai para casa e se apercebe é que pensa 'calma lá'", explica Rute Batista, lembrando que a "existe muitas vezes o medo" de serem penalizadas profissionalmente "se disserem alguma coisa".

Por sua vez, Miguel Ricou considera que a reação da jogadora no autocarro não significa que "deixou de ter havido uma situação de abuso", assim como "não se pode discutir se aquilo é uma situação de abuso ou não". "Quando as pessoas olham para este vídeo, o que é que dizem? Que ela, afinal, não ficou perturbada com o que aconteceu. E é natural que não tenha até na altura ficado perturbada, aquilo aconteceu, que tenha ficado surpreendida, e não ter refletido - e simplificou. É normal as pessoas terem a tendência de olhar para as coisas da melhor maneira e não da pior maneira. E depois essa reflexão acontece posteriormente e a pessoa sente então que foi objeto de uma situação que não era normal nem adequada."

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