Golpe, fraude eleitoral e até uma invasão do Congresso. A estratégia de Bolsonaro que passa por tentar ficar no cargo a qualquer custo

15 ago 2022, 08:00
Jair Bolsonaro, manifestação de apoio ao presidente brasileiro nas ruas do Rio de Janeiro. 13 agosto 2022. Foto: Fabio Teixeira/Anadolu Agency via Getty Images

O que significa o discurso de "fraude eleitoral" adotado pelo presidente brasileiro nos últimos meses? Poderá haver uma invasão como a que aconteceu no Capitólio dos EUA? As opiniões dividem-se em tudo menos num ponto: tudo vai depender das forças armadas

"O bolsonarismo em algum sentido é uma versão tropical do trumpismo com dois dias de delay". É assim que Creomar de Souza, CEO da consultoria de análise de risco político Dharma Politics, descreve à CNN Portugal o sentimento político vivido atualmente no núcleo do presidente brasileiro. Com o aproximar das eleições presidenciais, Jair Bolsonaro tem vindo a atacar o voto eletrónico utilizado no Brasil e há quem já tenha chamada a atenção para uma tentativa de replicar o que aconteceu nos EUA quando Donald Trump perdeu a presidência. Nem uma invasão como a que aconteceu no Capitólio é um cenário que possa ser excluído.

Diz Creomar de Souza: "é possível estabelecer a ligação entre Trump e Bolsonaro sobretudo porque Donald Trump é a grande fonte de inspiração do presidente Bolsonaro". "A cada movimento que Trump faz para desconstruir as instituições nos EUA, o bolsonarismo tenta, em algum sentido, construir uma versão brasileira desse processo."

"Inclusive, quando Trump era presidente dos EUA, por diversas vezes Bolsonaro tentou mostrar-se como um aliado fiel, uma espécie de escudeiro no hemisfério sul, um olheiro de Trump sobre a região. A derrota de Trump para Joe Biden obviamente complicou um pouco esse caminho", explica.

Mas, se Trump "questionava o voto pelo correio (em papel)", no Brasil, Bolsonaro "contesta a urna eletrónica". Uma "diferença interessante", como assinala Nelson Garrone, comentador da CNN Brasil à CNN Portugal. Assinalando que "é muito difícil saber o que se passa na cabeça do presidente", Garrone lembra ainda que "todas as suspeitas que Bolsonaro levantou até agora são falsas".

"Por uma questão de cuidado, por uma questão de tentar não ser processado eventualmente, Bolsonaro já disse várias vezes: 'não tenho provas, mas isso me soa estranho'. Então ele diz não ter provas. Não sei o que se passa na cabeça dele: ele sabe ou ele finge não saber? Ele mente? Ele acredita no que fala? Não dá para saber."

Garrone diz, no entanto, que "se acontecer a derrota, Bolsonaro já tem toda a justificativa" montada e que "os apoiantes dele já sabem e entendem que é tudo uma fraude, que há toda uma conspiração, nesse sentido".

As semelhanças entre Trump e Bolsonaro

Uma opinião partilhada por Plínio Fraga, jornalista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que considera que a contestação feita por Bolsonaro "não tem nenhum elemento científico probatório". "É muito baseada na possibilidade de criar um discurso favorável para ele para, na hipótese de derrota, atiçar seguimentos como parcelas das forças armadas, das forças policiais, para eventualmente dar um golpe que claramente se desenha assim, como Trump tentou. Bolsonaro está a tentar replicar o movimento americano no Brasil porque o cenário é ruim para ele", argumenta.

"Colocar em causa o processo democrático e o sistema eleitoral vigente" é, segundo o politólogo Bruno Gonçalves Bernardes, um dos grandes objetivos de ambos os presidentes do Brasil e dos EUA - e um dos motivos por que são comparados.

"Criar, de certa maneira, a ideia de que, se perder as eleições, tem a ver com o voto eletrónico é já antecipar alguma movimentação em torno disso e ir movimentando os seus apoiantes e votantes naturais. Basicamente, é contestar o processo eleitoral ad initio. A ideia é essa: criar logo um frisson relativamente aquele que poderá ser o resultado eleitoral e questionar o próprio processo democrático". Bruno Gonçalves Bernardes diz ainda que, em 2018, Bolsonaro "esteve bastante mais sossegado nesse aspeto, colocou foi em questão a corrupção do Partido dos Trabalhadores [partido de Lula da Silva], colocou a tónica mais na substância do que propriamente na forma."

E lembra: "colocando em causa só o sistema de utilização da urna eletrónica, é colocar em causa não só o processo eleitoral como todos os anteriores e este próprio resultado eleitoral. Como as próprias sondagens têm dito, não terá grandes hipóteses".

Perder ou ganhar já não é a questão

Francisco Seixas da Costa, que foi embaixador no Brasil entre 2005 e 2009, explica em entrevista à CNN Portugal que este tipo de declarações do presidente brasileiro não são uma novidade na sua estratégia. 

"Já foi assim nas últimas eleições, quando foi eleito, curiosamente com urnas eletrónicas. Agora, põe em causa este método que utilizou para ser eleito. Já na última eleição tinha deixado a ideia de que se perdesse ia contestar as eleições. Isto não tinha a ver com a votação eletrónica, tinha a ver com a desconfiança geral relativamente ao sistema", explica, sublinhando que "as urnas eletrónicas funcionam". Durante os quatro anos em que esteve no país, nunca houve "a mais pequena dúvida num universo tão grande" sobre este este sistema de votos.

"Bolsonaro procurou captar os militares (e tentou, inclusivamente, incluir militares numa espécie de escrutínio) e tentou que tivessem dois escrutínios: um em papel e outro eletrónico", explica, dizendo que este "sistema de desqualificação tem um efeito negativo na imagem externa do Brasil".

Para além de pôr em causa o sistema eletrónico, Bolsonaro questionou também "a independência e a intervenção da justiça na eleição". "Ao longo do seu mandato, teve uma série de conflitos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e acabou por transferir esse seu mau estar para dentro do sistema eleitoral e está a tentar criar um incidente neste aspeto".

Por sua vez, Nelson Garrone lembra que "o presidente já falou que a fraude está no Tribunal Superior Eleitoral (TSE)". para além do seu "histórico de desavença com o STF desde o primeiro ano de mandato". Em março do ano em que tomou posse, Bolsonaro "já tinha investigação contra ele no STF."

Para o CEO da consultoria de análise de risco político Dharma Politics, o discurso de Bolsonaro, "mais do que uma preparação para uma possível derrota", é a preparação para "a continuidade do discurso da contestação da realidade da ordem estabelecida". Ou seja, para o presidente do Brasil "pouco importa, em termos práticos, se ele perde ou se ele vence a eleição".

"O importante é que ele consiga ser visto e percebido pelos seus apoiantes como aquele que tem uma certa infalibilidade em termos de perceção da realidade e construção de um posicionamento político. Para isso, se ele vencer, por exemplo, a narrativa vai ser: 'olha só, nós só vencemos porque a pressão decorrente da nossa militância constante fez com que as autoridades temessem a nossa força e, portanto, não poderão distorcer a realidade e alterar o sistema eleitoral'. Caso perca, é um reforço da ideia que ele efetivamente é a entidade política mais importante para contestar a ordem como ela está".

Ficar no cargo a qualquer custo

Os grandes objetivos de Bolsonaro, do ponto de vista de Plínio Fraga, são dois: criar conflito e não ir preso, caso perca as eleições. O jornalista diz mesmo que "Bolsonaro imagina que teria condições mais favoráveis para um golpe de estado se criar tensões que possibilitem, fora da constituição, o Brasil ter uma crise política nas urnas".

"Por isso já falou em prolongar mandatos alegando que o grau que o conflito pode gerar porque está preparado para a possibilidade de saída. Tem falado no adiamento de eleições, dando como justificação que ela não é segura (segue o modelo de Trump de tensão máxima) e que o clima pode gerar convulsão social. Pode ser um grande arranjo, uma forma de golpe, mas precisa de apoio popular e esse movimento vai contra as instituições", explica Fraga.

Mas, nem o apoio popular é certo porque "o próprio eleitorado dele tem dúvidas". "Os salários diminuíram, a inflação aumentou, o desemprego aumentou e a politica é conservadora." Neste momento, Bolsonaro conta apenas com a "parcela da população que está ameaçada e sente que a resposta é o governo dele".

"Bolsonaro não tem projeto, o projeto dele é autoritário, não é liberal. Os bolsonaristas são conhecidos por divulgarem fake news, ofensas contra os direitos das mulheres e quando as redes sociais tentam bloquear isso, ele apela à liberdade de expressão. Os interesses dele são muito pontuais e resumem-se à sua preservação no cargo", afirma Plínio Fraga.

Preservação essa que quer manter a todo o custo, não vendo necessidade de eleições, e, por isso, deixando de apregoar a liberdade, "uma prática que é contrária ao próprio liberalismo que ele defende", assinala o jornalista. Até porque "teme ser preso e que os filhos sejam presos". 

"A grande preocupação de Bolsonaro é que, se sai da presidência, pode ser preso. Ele já disse isso, que pode ser preso e que os filhos podem ser presos. Numa entrevista, confessou que recebeu dinheiros indevidos e que isso era uma imoralidade. A dúvida é se ele tem os elementos necessários para dar o golpe. Há 30 mil militares em cargos públicos, daí a achar que é fácil. Não é".

Um assalto ao Congresso?

Invasão ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021 (John Minchillo/AP)

Mas que golpe é esse, para além do discurso “de fraude nas eleições", que Bolsonaro tem vindo, aparentemente a preparar ao longo dos últimos meses? Qual a probabilidade de acontecer? "Essa é a pergunta de um milhão de dólares para todos os analistas de risco político e analistas políticos no Brasil", responde Creomar de Souza.

O analista político afirma que existe "interesse e vontade daqueles que apoiam o presidente Bolsonaro, sobretudo entre aqueles que têm um posicionamento mais radical, de que a contestação dos eventuais resultados das eleições, em caso de derrota, possa se desdobrar numa contestação física".

No entanto, Francisco Seixas da Costa descarta a ideia de que uma invasão do Congresso, à semelhança do que aconteceu nos EUA a 6 de janeiro de 2021, possa acontecer. "Não há condições para que isso aconteça", até porque não se sabe qual vai ser a atuação das forças militares em caso de derrota de Bolsonaro, considera.

"Não há condições, embora o Bolsonaro tenha mobilizado uma série de milícias, até motorizadas, pelo país, no sentido até de criar uma espécie de coação em várias áreas. A grande incógnita que se coloca é o comportamento das forças armadas institucionais. Há duas forças armadas no Brasil. Uma são aqueles militares na reserva que estão com Bolsonaro, que levou alguns militares para o seu governo (vice-presidente, o próximo vice também), mas nunca se sabe, não há a certeza absoluta sobre se a atitude desses militares tem alguma coisa a ver com a atitude das forças armadas institucionais como o exército, a marinha e a força aérea. Resta saber se os militares estão disponíveis para ter essa reação e se, se a tivessem, seriam seguidos ou não pelas tropas".

O embaixador acredita que "os militares brasileiros não parecem dispostos a um gesto que deve ser lido como infringindo a ordem democrática e, mais do que isso, um gesto que possa levar o Brasil mais uma vez para um tempo de exceção num plano institucional".

"Os militares no Brasil foram punidos pela ditadura militar e vivem ainda sob esse espectro. Regressar a um modelo que se traduziria num isolamento completo do Brasil no plano internacional seria suicidário. Portanto, tenho muitas dúvidas de que os militares se arrisquem a fazer isso."

Já Garrone considera que, a acontecer, o ataque não seria no Congresso, "mas sim no TSE ou no STF" e que essa contestação "seria bastante antecipada", ou seja, aconteceria no dia das eleições (em outubro) e não no dia da posse do presidente (em janeiro). E corrobora a teoria de que o caos vai depender da ação dos mlitares.

"Nos EUA, estamos a ver a comissão que está a investigar a invasão no Capitólio. Mostra que os funcionários públicos impediram Trump de algo mais drástico, desde o motorista até aos funcionários da Casa Branca, e Trump não tinha o apoio dos militares. Aqui, no Brasil, a gente não sabe como é que os funcionários públicos vão agir e também não sabemos como é que os militares vão agir. Há essa incógnita que nos EUA não havia."

Também Creomar de Souza diz que "há uma série de outras variáveis que são muito importantes" para entender o que podia levar a um cenário semelhante ao que aconteceu em Washington, sendo que "um elemento muito importante é o papel que as forças armadas decidam assumir depois dos resultados [eleitorais]".

"De maneira muito efetiva, as forças, sobretudo o exército brasileiro, têm uma capacidade de contenção de eventuais problemas e riscos. Agora, não podemos descartar a ação de figuras que, isoladamente, possam ter algum tipo de ação ou iniciativa."

Por sua vez, Plínio Fraga lembra que "no ano passado já houve tentativas de invasão do Supremo Tribunal" e que, ao contrário do que Garrone afirma, a data da posse do presidente, "é a data perfeita" para um "novo Capitólio", que no Brasil significaria uma invasão ao edifício do Congresso Nacional, em Brasília.

"É o dia perfeito para tentar uma invasão. Mas é tão previsível que podem ser tomadas uma série de medidas para o prevenir. Se o Congresso abraçar essa tentativa, é um pouco suicida. Diria que as posições se vão desenhar nos próximos 60 dias. Se o desenho continuar como está, ele vai tentar melar o jogo. Se o exército não quiser participar, ele quer mobilizar as polícias estaduais, como é o caso da polícia militar de Brasilia, distrito federal com governador bolsonarista."

O que se segue?

Plínio Fraga diz que antes de chegar ao conflito, Bolsonaro vai tentar tudo para adiar as eleições, mesmo sendo o presidente com a pior avaliação do governo. "Nunca um presidente chegou a uma reeleição com uma taxa de rejeição (mais de 50%) tão grande".

Há muito em jogo para Bolsonaro, para a sua base, para os militares e para os bolsonaristas. E é por isso que o presidente brasileiro quer mostrar que, perante as eleições que não acha seguras, não considera que o "voto é uma necessidade".

"A defesa dele da liberdade é muito do seu próprio modo, de alta intervenção do estado na economia. A grande base Bolsonarista vive de negócios exteriores (cereais, soja, milho). Qualquer tipo de sanção que venha do exterior vai afetá-lo. Vai ao bolso da base conservadora. Por mais que ele tenha a simpatia das forças armadas, ele não tem a base económica. Grande parte da base dele se assusta com as sanções. Ou seja, base social ele tem, agenda moralista também, forças militares também, mas falta a base económica (bancos, economistas)". 

E se a base social e moralista de Bolsonaro for afetada, também os militares em cargos políticos serão afetados. Plínio Fraga explica que "a tendência é para tirar os militares do poder".

"Esse cenário é muito ruim. Nunca se achincalhou tanto um general no Brasil como quando o Bolsonaro escolheu um general para ministro da Saúde. Os generais que cercam Bolsonaro, nunca foram tão questionados. Está provado porque é que Bolsonaro não conseguiu construir apoio. Só no Brasil está caindo a avaliação das Forças Armadas que caíram no conto de Bolsonaro de aumento de salários e cargos bons."

Perante este cenário, os conflitos adensam-se e a desconfiança aumenta. "Ele quebrou o Brasil. Se ele conseguir ficar em cima do turno, é uma porta aberta para a confusão e tumulto, para se manter no poder. Se não se mantiver, pode ser preso e os filhos também. Perdendo Bolsonaro e ganhando um novo governo, leva à prisão dele".

Mas, desengane-se quem pensa que Bolsonaro fica por aqui, até porque, recorde-se, o presidente brasileiro tem trilhado um caminho em algo semelhante ao do antigo presidente dos EUA. 

"Perdendo, Bolsonaro vai repetir o mesmo caminho de Trump e vai candidatar-se para 2026. E não nos podemos esquecer que ele tem filhos já na política, há uma dinastia de Bolsonaros. É um problema que vai durar 30 anos. Não é um problema que se resolva com a derrota. Esse problema foi criado por uma parcela conservadora de empresários que trocaram um presidente liberal pelo autoritário". 

Brasil

Mais Brasil

Patrocinados