Crónica de uma morte anunciada em Vila Franca

21 abr 2023, 11:25
Vilafranquense

A SAD presidida por Henrique Sereno vai levar a licença de competir na II Liga para a Vila das Aves, deixando o Vilafranquense sem o bem mais valioso e carregado de dívidas. A única solução que sobra passa por isso por recomeçar do zero, com um novo nome e todas as equipas na última divisão distrital. O que está a revoltar os sócios do clube: acima de tudo criticam a falta de transparência da SAD e falam de ilegalidades no processo.

A notícia de que a licença do Vilafranquense tinha sido vendida ao Desportivo das Aves apanhou o país na curva, sobretudo por ser praticamente inédita em Portugal, mas não surpreendeu verdadeiramente as pessoas de Vila Franca de Xira.

O que é certo é que já se sentia que estava a ser promovido um divórcio com a cidade.

«Sou sócio ativo e gosto de participar na vida do clube. Aprendemos desde crianças que o futebol é rua contra rua, bairro contra bairro, cidade contra cidade, país contra país. Quando tirámos um clube da cidade que lhe deu origem, estamos a subverter o futebol», refere o adepto David Inácio, que é também o líder da claque Piranhas do Tejo.

«Quando tiraram o clube daqui para o levar para Rio Maior, foi normal que se tenha perdido alguma ligação. Obviamente não gostámos de ter de sair da cidade para ir ver o clube jogar. Em vez de termos dois jogos por mês fora de casa, passámos a ter todos os jogos fora.»

Rodolfo Frutuoso foi o homem que esteve na origem da SAD do Vilafranquense em 2013 e foi também o presidente até 2021. Foi ele que, com o sócio Pedro Torrão e em parceria com a Câmara Municipal, criou a SAD e levou a equipa aos campeonatos profissionais.

Do lado de fora da história, tem acompanhado com interesse as notícias e diz que o fim que se deu à SAD não o surpreende. Mas não compreende a forma como as coisas foram feitas.

«Não fui apanhado de total surpresa. Cessei funções em 27 de março de 2021, porque ainda trabalhei ano e meio com o novo investidor, na transição da venda da SAD para o Luiz Andrade. Houve sempre uma grande vontade deste investidor de ter um estádio, que é um problema crónico, que já vem de trás. Até de antes da criação da SAD», sublinha.

«Quando formámos a SAD em 2013 sabíamos que ia haver um crescimento desportivo muito rápido, mas a nível de infraestruturas não ia haver esse salto. Por isso não me surpreende: estou fora do processo, mas vou acompanhando e entendo esta vontade do investidor de sair. Compreendo a ambição dele, não compreendo a forma como isto foi conduzido. Não compreendo sobretudo a forma como a Comissão Administrativa, através de Márcio Oliveira, levou a que isto passasse quase em silêncio na cidade e sem transparência nenhuma.»

Márcio Oliveira recusa explicações porque... não dá entrevistas

O Maisfutebol falou com Márcio Oliveira, de resto, mas o presidente da Comissão Administrativa recusou-se a fazer qualquer comentário com a justificação que não dá entrevistas. Havia várias dúvidas para esclarecer, mas as perguntas ficam sem resposta.

No fundo, é essa a grande revolta. Os sócios compreendem a ambição da SAD de procurar um clube que ofereça melhores condições à equipa, o que não acontece em Vila Franca, onde o Campo do Cevadeiro não consegue obter o licenciamento necessário da parte da Liga. Só não aceitam é que o processo não seja bom para todas as partes e feito com transparência.

«Numa Assembleia Geral ficou escrito em ata que teria de haver uma comissão de acompanhamento da venda da SAD, e isso nunca foi feito», adianta Rodolfo Frutuoso.

«Como é que a Comissão Administrativa tem poder para fechar um negócio sem a autorização dos sócios? As pessoas não sabem nada: de quanto foi o negócio, como é que foi, de que forma vai ser liquidado... Para mim é uma frustração enorme este desfecho.»

Ricardo Afeiteira Marques, economista e também ele associado do Vilafranquense, assina por baixo tudo o que foi referido ao Maisfutebol por Rodolfo Frutuoso.

«Para o último mês de dezembro foi marcada uma Assembleia Geral para aprovar a venda dos dez por cento da SAD que ainda estavam na posse do clube. Isto não fazia sentido e através de um requerimento, entregue por mim, manifestámos que era necessário realizar uma sessão de esclarecimento primeiro e conhecer os contornos da venda antes de votar», refere.

«A Comissão Administrativa marcou então outra Assembleia Geral para um mês depois, em que surgem os jogadores do plantel, toda a administração da SAD, as famílias destes, enfim, uma série de novos associados que votaram a favor da venda. Isto porque o nosso regulamento, que já é de 1980, não obriga os sócios a terem um tempo mínimo de associação para poderem votar. Desta forma, e através de dezenas de sócios fictícios, a venda foi aprovada com uma diferença de 85 votos. No entanto, ficou escrito em ata que era necessário criar uma comissão de acompanhamento e que a venda tinha de ser retificada por uma nova Assembleia-Geral depois de conhecidos os contornos do negócio.»

Sócios consideram que venda de dez por cento que permitiu venda da SAD não foi legal

Ora de acordo com os associados, nada disto foi feito.

Nunca foi criada uma comissão de acompanhamento, nunca foram transmitidos os contornos do negócio e nunca houve uma nova Assembleia Geral para retificar o modelo de venda.

Os associados só souberam da concretização da venda pela imprensa e por uns documentos que lhes chegaram às mãos: documentos esses que provavam que o presidente da Comissão Administrativa renunciou ao cargo de administrador da SAD a 24 de fevereiro e que no início de março a SAD já era detida na totalidade por Rubens Takano Parreira.

«Isto tem tudo sido feito contra os sócios e há poucas explicações. Os sócios do Vilafranquense foram sabendo de tudo pela imprensa. Não houve sessões de esclarecimento, ninguém sabe o que vai ficar em Vila Franca, não sabemos de nada», refere David Inácio.

«O Vilafranquense tem dívidas há décadas e não me importava de alienar o futebol, se ficássemos sem dívidas. Mas vamos ficar sem o futebol e na mesma com as dívidas.»

Nesta altura os associados não sabem qual o valor da venda dos dez por cento da SAD que pertenciam ao clube, mas sabem que não será suficiente para pagar o mais de um milhão de euros de dívidas que enfrenta. Pelo que o Vilafranquense se tornou ingovernável.

«Acompanhei todo este processo todo com muita tristeza.  Sou sócio há 52 anos, fui atleta do clube durante 15 anos, fui vereador no anterior executivo da Câmara e gosto imenso do União. O nome do União Desportiva Vilafranquense tem sido arrastado para a lama e isso é que não é nada bonito», confidencia o associado Mário Calado.

«O clube hoje em dia não pode ter uma conta corrente, não pode receber apoios da Câmara porque fica tudo para os credores, está há anos a ser gerido por uma comissão administrativa e nada disto faz sentido. Isto incomoda qualquer pessoa. O clube faz falta aos jovens. O próprio presidente da Câmara já veio falar na perspetiva de na próxima época o clube surgir com outra face, como um novo clube e aí poder ser apoiado. Vamos ter começar do zero.»

Uma cidade que adora futebol e se enche de mágoa por estes dias

Ora por isso o cenário nesta altura é negro.

O Vilafranquense perdeu a grande mais-valia que ainda detinha, e que era a licença de inscrição na II Liga, que foi passado para o Desportivo da Aves. Por isso vai ter de acabar e recomeçar do zero, com todas as esquipas (incluindo da formação) na última divisão distrital.

«Neste momento, os jogos da equipa principal não me dizem absolutamente nada. Estou desmotivado para esta história toda», considera Mário Calado.

«Deixei de acompanhar a equipa no início de época, pela forma como eles tratam os adeptos e por não haver comunicação», adianta David Inácio, líder das Piranhas do Tejo.

«Para mim haveria sempre soluções se as pessoas trabalhassem para isso, mas a SAD tomou uma decisão unilateralmente, uma decisão que já me parecia tomada há muito tempo. Agora vai embora para a Vila das Aves e nós nem sabemos se vamos ter futebol na próxima época.»

Na última reunião da Câmara um vereador da oposição pediu até que o executivo de Vila Franca de Xira impeça desde já a SAD de utilizar o Campo do Cevadeiro para treinar, como faz agora, obrigando a equipa a sair de imediato da cidade.

O presidente Fernando Paulo Ferreira não se quis comprometer com essa atitude, afirmando que é preciso confirmar que é legal primeiro, adiantando que vai em breve receber o presidente da Comissão Administrativa em audiência para começar a trabalhar no futuro, e num novo clube apoiado pela autarquia. O primeiro passo passará pela reformulação, prometida há tantos anos, do Campo do Cevadeiro.

Mas a verdade é que, enquanto isso vai acontecendo, Vila Franca de Xira enche-se de mágoa.

Filipe Coelho foi treinador da equipa principal durante alguns anos, agora está a trabalhar na Coreia do Sul com Paulo Bento, mas não se esquece da paixão da cidade pelo futebol: uma paixão que já se notava de uma maneira bem vincada quando a equipa estava nos Distritais.

«As pessoas da terra gostam muito de futebol. O futebol foi sempre crescendo e queimando etapas, o que era um motivo de orgulho para as pessoas da terra, que sempre apoiaram muito o Vilafranquense. Para a equipa era muito importante jogar no Cevadeiro. Sentíamos um apoio das bancadas que era fundamental», sublinha Filipe Coelho.

«O Vilafranquense tem um carisma especial e o futebol faz falta aos vilafranquenses. Eles vivem o futebol de forma muito particular e ímpar. Quando penso em Vila Franca de Xira, não consigo imaginar a cidade sem futebol ou os miúdos sem um clube para jogar.»

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