Gabriela é gestora das nove às cinco e ganhou 250 mil euros num torneio de padel na Arábia Saudita

27 fev, 23:54
Gabriela Andrade

Esta é a história de uma jovem portuguesa que foi para Arábia Saudita trabalhar como hospedeira de bordo, formou-se na área da Gestão e, em poucos meses, tornou-se na melhor jogadora de padel do país. Gestora de dia, atleta à noite, já ganhou medalhas em países como o Qatar ou Bahrain. No final do ano passado, levou para casa um prémio estratosférico.

Não é só no futebol que os portugueses se destacam na Arábia Saudita. Gabriela Andrade não foi contratada por uma quantia exorbitante para brilhar no país árabe, como Cristiano Ronaldo, Otávio ou Rúben Neves, mas foi lá que se fez a melhor jogadora do país. E no final do ano passado, ao ficar em primeiro lugar nos Saudi Games, ganhou um prémio de um milhão de reais sauditas. Qualquer coisa como... 250 mil euros.

Gabriela Andrade, de 29 anos, só começou a jogar padel aos 27. Atualmente é a melhor jogadora da modalidade da Arábia Saudita e nem sequer é profissional. Entre as 9 e 17 horas trabalha na área de gestão, numa empresa saudita, a NuCorp.

«Todos os tempos mortos que tenho são usados em prol do padel. Fisioterapia ou ginásio à hora do almoço, treinos depois do trabalho. É chegar a casa às 22h, tomar banho, comer qualquer coisa e dormir. Adoro», diz Gabriela, na pausa de almoço, desta vez, usada para falar com o Maisfutebol.

«Posso desmarcar a fisioterapia para entrevista». Agradecemos, Gabriela.

No final do ano passado, Gabriela e Samaher, a jogadora saudita com a qual faz dupla nos campos de padel, conquistaram a maior vitória das suas carreiras. Ficaram em primeiro lugar nos Saudi Games, uma espécie de Jogos Olímpicos internos, na Arábia Saudita. Ganharam 250 mil euros como prémio.

«Esquece, aqui é outra realidade, já estou habituada a lidar com esses valores. Quando comecei a jogar, jamais iria pensar que iria ganhar esse tipo de prémios, mas agora não me surpreende», atira, confirmando logo a seguir a estupefação com que ficámos ao saber que uma jogadora não profissional pode ganhar 125 mil euros por vencer um torneio de padel.

«Aqui é tudo assim, em grande.»

O padel que se joga nos países árabes ainda não está ao nível, do ponto de vista técnico e de qualidade, do que se pratica em países como Espanha ou Portugal, mas os prémios monetários são muito mais altos.

«O valor máximo dos prémios em torneios portugueses é de 10 mil euros, a distribuir pelos atletas. Estamos a falar de perto de 1600 euros para uma dupla que vença um torneio, ou seja, 800 para cada jogador ou jogadora», disse ao Maisfutebol Nuno Mateus, diretor de formação da Federação Portuguesa de Padel.

Com a vitória nos Saudi Games, em dezembro de 2023, Gabriela Andrade ganhou 125 mil euros. Para a dupla, o prémio foi de 250 mil euros. Ou seja, um valor 156 vezes superior ao que se pagaria num torneio em Portugal, sendo que nos Saudi Games, na modalidade de padel, só jogaram atletas semiprofissionais.

Para ter uma ideia, o vencedor da última edição do Estoril Open, o maior torneio profissional de ténis em Portugal, em que participam alguns dos melhores jogadores do mundo, levou para casa um cheque de 85 mil euros.

«Nos Saudi Games, não há diferenças a nível de prémios para homens e mulheres, é tudo igual. Sinto que agora há um grande apoio para as mulheres sauditas fazerem desporto. Eu sinto sempre muito apoio das pessoas, até nas redes sociais», conta Gabriela.

Natural de Coimbra, Gabriela Andrade está na Arábia Saudita desde 2018. Foi para o país árabe para trabalhar como hospedeira de bordo. «Ao mesmo tempo que trabalhava, finalizei o mestrado em gestão na Universidade Católica. Quando concluí o mestrado, já em Riade, comecei a trabalhar, como gestora de operação, num ginásio só de mulheres.»

Vale a pena referir, de resto, que atualmente ainda é assim: há ginásios só para mulheres e outros só para homens. Mas em frente.

Foi nessa altura, em 2021, que Gabriela se ‘reconciliou’ com o ténis. Não jogava há mais de 10 anos, quando, ainda em Portugal, teve de optar por um de dois desportos: ténis ou natação. Escolheu continuar a nadar, chegou a representar a seleção nacional, em 2009 e 2010, até que também abandonou a modalidade.

Voltou a praticar ténis em Ríade, como hobby, e um ano depois experimentou o padel.

«Comecei porque o padel até tinha mais visibilidade na Arábia Saudita do que o ténis. Ao início, não gostei muito do padel porque tinha os ‘vícios’ do ténis, mas depois comecei a habituar-me.»

Aconteceu tudo muito rápido. Dois meses depois de ter experimentado o padel, a portuguesa já estava a ganhar torneios nos países árabes: Qatar, Bahrain, Arábia Saudita.

«Foi só no ano passado que isto começou a ficar mais sério, comecei a ter patrocínios e o apoio de um clube em Riade. Mas também cresci muito rapidamente porque aqui o nível desportivo das mulheres é mais baixo do que em Portugal. Grande parte das mulheres só começaram a fazer desporto há poucos anos, antes não podiam fazer nada, só os homens. Só as mulheres que estudaram noutros países, como os Estados Unidos ou o Reino Unido, e depois voltaram à Arábia Saudita, é que tinham alguma noção do desporto. As mulheres que viveram sempre cá no país só começaram mais tarde a praticar», revela.

É o caso de Samaher, de 30 anos, que faz dupla com Gabriela no padel. Samaher é uma das melhores jogadoras da Arábia Saudita. «Ao início, notava que ela não percebia coisas básicas do desporto e, por isso, tivemos várias conversas. Ela dizia-me: ‘tens de perceber que só comecei há pouco tempo a fazer desporto, não tenho a mesma mentalidade que tu, tens de me explicar certas coisas’. Ou seja, ela não tinha mentalidade desportiva que eu tinha, sentia-se nervosa muito vezes, apreensiva, perdia a confiança. Só começou a fazer desporto mais a sério em idade adulta.»,

Para poder participar em torneios na Arábia Saudita, a portuguesa tem de fazer dupla com uma saudita. Aliás, nos Saudi Games, os tais Jogos Olímpicos do país, Gabriela foi a única estrangeira a jogar no quadro principal.

Num país criticado em todo o mundo pela repressão dos direitos humanos, em particular dos direitos das mulheres, quisemos saber como é que uma mulher estrangeira, solteira, e a destacar-se no desporto - atividade historicamente ligada aos homens - se sente. Gabriela está maravilhada.

«Eu digo sempre isto: só posso falar da minha experiência. E, como mulher, tenho-me sentido sempre muito respeitada. Quando cheguei aqui, em 2018, era um pouco diferente.  Na rua, ainda me pediam para pôr um lenço, para tapar o cabelo, e eu sentia muito esse impacto de pedirem para me cobrir. Não podia de dia usar a Abaya [traje típico] com cores, só em preto. Então, nos primeiros tempos, andava sempre de preto», conta.

«Uns meses depois, as coisas começaram a mudar, passei a vestir-me 'só' de forma mais conservadora, tapar joelhos, ombros. A partir daí, com o passar dos anos, passei a vestir-me de forma normal, como se andasse em Portugal. Só nos dias de celebrações é que uso os trajes típicos, por uma questão de respeito pela cultura.»

No padel, Gabriela não joga de saia, também por respeito, ou seja, procura tapar os joelhos e os ombros. No entanto, os clubes de padel na Arábia Saudita, ao contrário dos ginásios, são mistos. E para se deslocar para casa, para o escritório ou para jogar padel, usa o próprio carro, ao contrário do que acontecia quando chegou a Ríade.

«Quando as mulheres foram autorizadas a conduzir, tirei a carta e comecei a andar no meu carro. A partir daí, o trânsito tornou-se quase insuportável», lembra.

«As pessoas ficam espantadas por estar aqui sozinha, ou seja, sem um marido, mas eu vivo muito bem com isso. Alias, tenho várias amigas sauditas que têm a minha idade e são solteiras. Ríade tornou-se uma cidade mais aberta, as pessoas são fantásticas comigo, não tenho nada de mal a apontar, fiz um bom grupo de amigos, por isso não penso, de todo, em voltar a Portugal ou à Europa», garante Gabriela, que está há seis anos a viver sozinha em Riade.

Em pouco mais de um ano e meio a jogar padel, Gabriela Andrade já conquistou nove medalhas em torneios em vários países árabes, mas não se vê, a curto prazo, a tornar-se profissional.

«Financeiramente, ganho mais na minha área de trabalho do que no padel, apesar dos elevados prémios dos torneios. Não ganhamos 250 mil euros em todos os torneios. O nosso clube em Riade não nos ajuda com todas as viagens, nem com os hotéis, às vezes temos de avançar com o nosso dinheiro para poder participar nas competições», conclui Gabriela, já depois do fim do dia de trabalho na empresa, a caminho do treino do dia. 

Dentro de 10 dias, a Gabriela volta a participar num torneio, em que o prémio total é de 95 mil euros.

 

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