Da ordem de extradição às lágrimas de um golaço ao Benfica

19 out 2015, 10:19
Vianense-Benfica (Lusa)

O longo caminho de Coulibaly meteu uma ordem para deixar Portugal em quinze dias. O médio do Vianense ficou, no entanto, e vai ficar: tem a vida toda pela frente

Medo, desconfiança, silêncio.
 
Não é fácil arrancar uma palavra a Mohamed Coulibaly. As lágrimas do golo ao Benfica, do golaço, aliás, dizem tudo, pelo que o médio do Vianense prefere fechar-se sobre ele.
 
Tem uma história que vale a pena contar, uma história de sofrimento e angústia, mas repete que são coisas pessoais. Quem o conhece, diz que se cala por receio e prudência. A vida, no caso dele mais dura e cruel do que o normal, ensinou-o a ser desconfiado.
 
Veio para Portugal com 17 anos, como tantos outros jovens africanos: trazido por um empresário sem ficha na FIFA ou na Federação. Um empresário que no fundo não o é e que só trabalha como tal ao abrigo da conivência de clubes das divisões amadoras.
 
As pessoas preferem não revelar o nome: boa parte delas já foi ameaçada se o fizesse.
 
Enfim, em frente.
 
Há dois anos Coulibaly estava num beco sem saída. Durante três anos tinha vivido ilegal em Portugal, a jogar em clubes das divisões inferiores. Foi precisamente num deles, no Vilaverdense, que foi apanhado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.


 
Levado para o SEF de Braga, recebeu ordem de extradição, tinha quinze dias para abandonar o país. Foi nessa altura que um amigo ligou a outro agente: César Boaventura.
 
«Não sabia como ele era. Só me disseram que era um miúdo muito humilde, bom jogador, que precisava de ajuda e que tinha sido chamado naquele dia ao SEF de Braga, depois de ter sido apanhado numa operação durante jogo», conta César Boaventura.
 
«O miúdo dizia-me que queria ficar, que queria jogar, escondi-o em Mirandela e tratei do contrato com o clube. Ele estava no Vilaverdense e não lhe faziam os descontos, nada.»
 
Mas como é possível inscrever um jogador ilegal?
 
«É possível. Agora é mais rigoroso, mas há duas ou três épocas era mais fácil. Este ano ficaram muitos africanos de fora porque não conseguiram inscrever-se», acrescenta.
 
«O Coulibaly estava completamente abandonado, sem dinheiro, com ordem para sair do país em quinze dias. Veio para Portugal com 17 anos, trazido por um empresário que trouxe vários jogadores africanos, como o Bouba e o Diaby, e depois os abandonou.»
 
Os dois também trabalharam com César Boaventura.
 


«Trazem os miúdos para cá e depois não têm capacidade de os sustentar. Esperam conseguir recuperar o investimento ao fim de um ano e isso é quase impossível. Os clubes dos escalões inferiores não têm dinheiro, os jogadores não têm família em Portugal, é muito complicado», adianta.
 
«O Diaby, que agora está no Pedras Salgadas, por exemplo, ganhava 80 euros por mês. O Valenciano tinha acordo com um restaurante, que tratava do almoço e do jantar, e dormia num apartamento, num colchão que estava no chão. Mas depois o clube atrasava-se nos pagamentos e era uma situação terrível.»
 
No entanto, e enquanto duram os campeonatos nacionais, as condições de vários destes jogadores nem é a pior. Na generalidade dos casos os clubes oferecem dormida e têm acordos com restaurantes para garantir o essencial da alimentação.
 
As maiores dificuldades são no fim dos campeonatos, quando terminam os contratos com os clubes. Em vários casos os jogadores deixam de ter casa, onde comer e dinheiro.
 
Era o caso de Coulibaly.
 
«Ele queria jogar futebol, queria ajudar a família e não podia, não recebia nada, andava triste, mal nutrido, enfim.»
 
Foi então que em Mirandela tudo mudou.
 
O costa-marfinense esteve dois meses num apartamento e com o início do campeonato fez um contrato de trabalho, com um salário apresentável e, mais importante, os descontos todos direitinhos.


 
«A partir daí tornou-se mais fácil pedirmos o visto de permanência em Portugal. Entretanto saiu a legalização dele. Este verão, quando terminou o contrato com o Mirandela, ficou em minha casa. Depois fez um novo contrato no Vianense e está com a vida estabilizada.»
 
Na última sexta-feira, num daqueles remates do fundo da alma, fez um grande golo ao Benfica e tornou-se conhecido de todos o país. Depois de ver a bola entrar na baliza de Júlio César, correu como um desalmado e deixou as lágrimas cair pelo rosto.
 
«Chorei porque foi um milagre», garante Coulibaly.
 
«Passei por muitas dificuldades na minha vida e atingir o sonho de marcar num jogo daqueles foi um milagre. Lutei muito para fazer aquele golo, mas mais importante nunca desisti. Nunca aceitei que fosse impossível para mim jogar futebol em Portugal.»
 
Do passado, lá está, não quer falar. Não quer recordar que passou fome, que não teve onde dormir, que não encontrou a quem recorrer. Admite apenas que «foi muito duro», reconhece que César Boaventura foi fundamental e garante que reza «todos os dias para agradecer a Deus» o que fez por ele.
 
«Foi Deus que marcou aquele golo. Ele sempre esteve ao meu lado e percebeu a importância para mim de marcar num jogo com o Benfica. Empurrou o meu pé para aquele golo e para realizar o meu sonho.»
 
Agora, admite, tudo pode acontecer.
 
«Os meus sonhos são tornar-me um grande jogador e jogar num grande clube. Quero chegar a um grande clube, em Portugal ou na Europa, quero continuar a progredir, quero poder trabalhar, quero ser melhor e chegar à seleção nacional.»
 
Quer no fundo continuar a fazer golaços que lhe soltem as lágrimas.

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