O mundo do desporto tem rejeitado Putin. E então?

CNN , Por Amy Woodyatt
15 mar 2022, 10:00
O mundo do desporto tem rejeitado o Presidente russo

À medida que a Rússia continua a sua invasão da Ucrânia, a realidade sombria da guerra passou a estar em grande evidência, com mais de dois milhões de ucranianos a fugir do país e centenas de pessoas mortas, de acordo com a ONU

A Rússia já está a pagar um preço elevado pela sua agressão. Países de todo o mundo estão a impor-lhe sanções e o rublo russo caiu ainda mais em relação ao dólar, atingindo níveis recordes.

Várias organizações desportivas internacionais e órgãos governamentais também reagiram à invasão, manifestando-se contra a Rússia e os seus atletas, com sanções de severidade variável. E o Presidente russo Vladimir Putin foi destituído de vários títulos desportivos honorários.

Designadamente, os atletas russos e bielorrussos foram proibidos de competir nos Jogos Paralímpicos de Inverno de 2022, em Pequim, após vários atletas e equipas de outros países terem ameaçado não competir nos Jogos, de acordo com o Comité Paralímpico Internacional (IPC). E o Comité Olímpico Internacional (IOC) recomendou a proibição de atletas russos e bielorrussos em competições internacionais.

"A situação é terrível, claro. É uma atitude vergonhosa do Comité Paralímpico Internacional", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, aos repórteres após a decisão.

O COI também anunciou que tinha retirado a Ordem Olímpica - o maior prémio do movimento olímpico - a Putin.

"O COI foi visto como tendo uma relação próxima com a Rússia", disse Michael Payne, ex-diretor de marketing do COI, à CNN.

"O COI emitiu um conjunto de sanções à Rússia que, a meu ver, são provavelmente as sanções mais severas que já emitiu... desde o início dos anos 60, quando baniu a África do Sul devido ao regime do Apartheid", disse ele.

Enquanto isso, as entidades máximas do futebol mundial, a FIFA, e europeu, a UEFA, suspenderam todas as equipas internacionais e clubes da Rússia das suas competições "até indicação em contrário".

Vladimir Putin chuta uma bola de futebol, durante um evento na Praça Vermelha, a 28 de junho de 2018, em Moscovo

"Vladimir Putin é um apaixonado pelo desporto e utiliza-o para projetar a importância da Rússia no cenário mundial, devolvendo aos Russos o sentimento de orgulho pelo seu sucesso."

Payne acrescentou que o impacto mais imediato das sanções poderia ser desafiar a narrativa do Kremlin sobre o conflito, com o cidadão russo comum a perguntar-se porque não aconteciam eventos que eles deveriam organizar.

A UEFA anunciou no mês passado que a final da Liga dos Campeões deste ano já não terá lugar no Estádio de São Petersburgo, patrocinado pela empresa estatal russa Gazprom, e será agora transferido para o Stade de France, em Paris, para ser disputado na data original de 28 de maio.

"Não pode haver mal-entendidos: nem o controlo dos média russos pode explicar o que está a acontecer no mundo do desporto para eles terem sido banidos de repente", disse Payne.

A Rússia está a cobrir a invasão da Ucrânia de forma muito diferente da CNN e de outros meios de comunicação ocidentais. Uma nova lei proíbe os média que operam na Rússia de usar as palavras "guerra", "ataque" ou "invasão" para descrever a decisão de Putin de lançar as suas forças militares contra a Ucrânia. Em vez disso, devem usar a expressão orwelliana do Kremlin: "operação militar especial".

O acesso dos Russos às redes sociais, como Facebook e Twitter, também foi severamente restringido.

"As sanções podem fazer com que o cidadão russo comum pergunte porque não pode ver os atletas russos a competir? E isso leva-o a perguntar: 'O que se passa?'" disse Payne.

"Será que Putin se importará por ter de devolver a sua ordem de ouro olímpica ou quer saber o que o resto do mundo pensa sobre ele? Provavelmente não.

"Será que ele vai importar-se com o que os Russos perguntam: 'Mas o que se passa afinal?' Com certeza."

O desporto como instrumento nacionalista

Lukas Aubin, investigador no Instituto Francês para Assuntos Internacionais e Estratégicos (IRIS) e especialista em geopolítica da Rússia e desporto, disse à CNN Sport que Putin cuida meticulosamente da sua imagem, para que os observadores saibam das suas proezas desportivas, a nível nacional e internacional.

"Quando Putin chegou ao poder, em 2000, uma das suas primeiras decisões foi convidar o seu ex-instrutor de judo [para o Kremlin]", disse ele.

O Presidente russo também foi fotografado a nadar no gelo, a pescar e a montar a cavalo em tronco nu.

Putin participa num jogo de hóquei, na arena de gelo Bolshoy, a 10 de maio de 2017 em Sochi, na Rússia

"Hoje, o Presidente Putin usa o desporto como um elemento do seu poder. E não só como parte da sua personalidade, porque ele também criou um grande sistema desportivo. Ele usa oligarcas, políticos, ex-atletas, para criar uma máquina. É um grande sistema, onde as pessoas são conduzidas por Putin nas direções que precisam, para criar uma bela imagem da Rússia, no mundo do desporto", acrescentou.

Isso funcionou em grande parte, disse Aubin.

"Funcionou porque, em 2014, vimos as Olimpíadas de Sochi. Quatro anos depois, vimos o Mundial de Futebol. É realmente muito difícil dizer quantos eventos desportivos internacionais a Rússia [tem] recebido nos últimos 10 anos. Foram realmente muitos. No início, era um enorme elemento de 'soft power'," acrescentou Aubin.

Vera Tolz, professora de estudos russos na Universidade de Manchester, disse à CNN Sport que Putin usou o nacionalismo russo "de forma instrumental e muito sistemática", como uma forma de legitimar o seu regime desde que chegou ao poder.

"O nacionalismo - e o tipo de unificação nacional com a promoção de determinadas versões da história, da organização, da criação de novos feriados nacionais e, claro, do desporto - tem sido absolutamente fundamental para a sua estratégia de legitimação", explicou ela, acrescentando que estas táticas remontam ao período soviético, onde o desporto foi usado "muito intensamente como uma ferramenta para intensificar a lealdade do povo ao regime".

"Mesmo o facto de o Kremlin, na Rússia, ter ido ao ponto de usar doping para ganhar mais medalhas, de certa forma mostra que participar em competições e vencer foi fundamental para a estratégia de Mobilização Popular de Putin", acrescentou Tolz.

Em 2019, a Agência Mundial Antidoping (WADA) concordou por unanimidade em banir a Rússia de grandes competições desportivas internacionais - principalmente as Olimpíadas e o Mundial de Futebol - durante quatro anos, por não ter infringido as regras.

A proibição foi posteriormente reduzida pelo Tribunal Arbitral do Desporto (CAS), em 2020.

A punição da WADA refere-se a inconsistências nos dados recuperados pela WADA, em janeiro de 2019, do laboratório de Moscovo, referidos no Relatório McLaren de 2016, que descobriu uma ampla e sofisticada rede de doping desportivo patrocinada pelo Estado.

"Sempre que deixamos a Rússia participar num evento desportivo internacional, é como se concordássemos em nadar com tubarões devoradores de pessoas. Eles vão enganar os nossos atletas, não vão sentir-se mal quanto a isso, vão mentir sobre isso. Se forem apanhados, vão culpar-nos por os terem denunciado", disse à CNN Jim Walden, o advogado americano de Grigory Rodchenkov, que foi fundamental para expor o encobrimento inicial da Rússia.

Antes das Olimpíadas de Tóquio, Putin falou da sua frustração com a "politização do desporto" e que os "direitos e interesses dos nossos atletas devem ser protegidos de qualquer arbitrariedade".

A Agência Antidoping Russa (RUSADA) foi inicialmente considerada não conforme após a publicação do Relatório McLaren, em 2016.

Putin assiste à Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022, a 4 de fevereiro

O relatório solicitado pela WADA concluiu que o Estado russo conspirou com atletas e autoridades desportivas, para realizar um programa de doping sem precedentes na sua escala e ambição.

"Putin usa muito o seu controlo sobre o desporto para tentar ganhar o máximo possível. Também organiza o conteúdo para a população russa para poder obter o máximo de popularidade, o que se traduz em poder máximo para fazer o que quer a nível internacional - essencialmente colocando a Rússia contra o resto do mundo, pelo menos o resto do mundo ocidental", acrescentou Walden.

Ao avançarmos para 2022, outro escândalo de doping, envolvendo a patinadora russa Kamila Valieva, ofuscou os Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim.

Valieva, de 15 anos, uma revelação dos Jogos Olímpicos, que obteve a maior pontuação na modalidade por equipas em patinagem artística, foi autorizada a competir, apesar de acusar positivo a um medicamento cardíaco proibido chamado trimetazidina, que costuma ser usado para tratar problemas de angina de peito. O teste foi feito antes dos Jogos Olímpicos de Inverno, mas só foi conhecido durante os Jogos, e ainda não é certo se a medalha lhe será retirada.

"A Rússia, não só se concentra de forma míope em vencer a qualquer custo, como parece que vale tudo, certo? Homicídio, suborno, tráfico de droga, qualquer tipo de criminalidade que lhes dê uma vantagem. Eles acreditam que não só o farão, como os outros são fracos por seguirem as regras", disse Walden.

"Então aliam a criminalidade à obstrução e combinam isso no desporto. E é assim que ganham consistentemente. E foi assim que o Governo russo usou o desporto para sustentar a sua própria popularidade, para que tivesse mais margem de manobra para se envolver em problemas no exterior ", acrescentou.

O rasto do dinheiro

O grande atleta olímpico, Edwin Moses, que se opôs ao boicote dos Estados Unidos aos Jogos de Moscovo, em 1980, chegou ao ponto de exigir que a Rússia fosse banida dos Jogos Olímpicos de 2024.

"O boicote em 1980 foi político. Isso é simplesmente horrível", disse Moses, que é presidente da Laureus Sport for Good Foundation, num comunicado de imprensa, na semana passada.

"Não tem muito que ver com política, mas com a humanidade, a guerra, os combates, as crianças e pessoas inocentes que são mortas. Rockets, mísseis, blindados... Vemos isso em direto na TV. Todos estão a par do que se passa."

"Fui a favor da proibição dos russos por causa do que aconteceu em Sochi, em 2014, por realmente corromper a integridade dos Jogos Olímpicos, através do doping. Estive no comité executivo da Agência Mundial de Antidoping, e achei as sanções demasiado leves.

"O que estão a fazer ao mundo inteiro, com esta situação na Ucrânia, é exatamente a mesma coisa que fizeram ao desporto, na minha opinião. A Rússia deveria ser banida em Paris [Jogos Olímpicos de 2024]."

Moses diz que conheceu Putin há alguns anos.

"Uma vez sentei-me ao lado dele [numa] mesa. Dois lugares à minha esquerda, e o tradutor estava no meio. E falei com ele durante toda a noite. Sei como ele falava sobre desporto, como se fosse o Santo Graal, e como o desporto era importante, e como era bom. Como os melhores de cada país, independentemente das suas filosofias, podiam competir juntos. E quem tiver de ganhar, ganha... Agora percebo que era apenas propaganda."

Ben Morse e Ben Church da CNN contribuíram para este artigo.

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