"Luta - e prevalecerás": o que os poetas centenários acertaram sobre a Ucrânia (Opinião)

CNN , Sasha Dovzhyk
14 mai 2022, 13:00
Estátua do poeta ucraniano Taras Shevchenko, coberta com sacos para protegê-la dos bombardeamentos em Kharkiv, fotografada em março.

Estátua do poeta ucraniano Taras Shevchenko, coberta com sacos para protegê-la dos bombardeamentos em Kharkiv, fotografada em março.

Sasha Dovzhyk é curadora de projetos especiais no Instituto Ucraniano de Londres e é doutorada em Inglês e Literatura Comparada pela Birkbeck, da Universidade de Londres. Divide o seu tempo entre Londres e a Ucrânia. As opiniões expressas neste artigo são suas.

 

Para compreender realmente a resistência da Ucrânia à invasão da Rússia - desde adolescentes locais a tecer redes do exército, a avós a pegar em armas - deve olhar para as páginas dos livros de poesia da nação.

Em grande parte desconhecida fora do país, a literatura ucraniana está repleta de apelos à luta contra a subjugação imperialista. Em 2022, essas palavras encontram uma nova ressonância.

A minha geração - a primeira a crescer na Ucrânia após o colapso da União Soviética - teve de redescobrir essas mensagens, que nos foram obscurecidas por uma tradição diferente, a de censura, distorção e desvalorização do cânone nacional ucraniano pelo imperialismo russo e pela ideologia soviética.

Nasci e cresci em Zaporizhzhia, no sudeste da Ucrânia. Na cidade predominantemente falante de russo, fui para uma escola ucraniana. A literatura ucraniana estava entre as matérias escolares que eu mais odiava, coisa que para um especialista em literatura é embaraçoso confessar.

Exposição em homenagem à poeta ucraniana Lesia Ukrainka, em Kiev, em fevereiro de 2021. Versos dos seus poemas centenários inspiram hoje músicos ucranianos.

Neste país recém-independente da década de 1990, o currículo escolar estava enraizado na narrativa soviética da opressão do povo ucraniano pelas classes dominantes. E quando se é adolescente, há apenas uma dose de opressão que se pode suportar.

Por exemplo, Taras Shevchenko - ex-servo que é amplamente considerado o pai da nação - escreveu muitas vezes sobre a crucificação de sua "pobre" e "infeliz" Ucrânia pela Rússia czarista. O destino deste poeta romântico do século XIX tornou-se ele próprio um exercício martirológio ucraniano.

Por causa da sua poesia revolucionária, Shevchenko foi condenado ao exílio como soldado do exército russo. A sentença minou a sua saúde e encurtou a sua vida. O currículo escolar enfatizava essa tragédia pessoal, bem como o sofrimento da nação ucraniana tão poderosamente retratado por Shevchenko – mas não a luta da nação pela libertação, que estava no centro da sua poesia.

Avançando para o Século XX, houve o Renascimento Executado – geração de escritores e intelectuais ucranianos soviéticos que foram assassinados pelo regime nas décadas de 1920 e 1930. Esse padrão de violência anti-ucraniana continuou com o poeta dissidente ucraniano Vasyl Stus, que morreu como prisioneiro político numa prisão russa, apenas seis anos antes do colapso da União Soviética.

O foco no martírio e no sofrimento nacional era sintomático do trauma colonial e do desamparo assimilado do colonizado. A narrativa da vitimização ucraniana não deixava espaço para a ação – e foi para mim, quando criança, totalmente desempoderadora.

A maré começou a virar em 2014, durante a chamada Revolução da Dignidade – ou Revolução Maidan, em homenagem à praça no centro de Kiev, onde os cidadãos ucranianos se reuniram, viveram e lutaram durante três meses de inverno.

A revolução começou como um protesto contra a decisão do governo de realinhar o destino do país com a Rússia e rejeitar a associação com a União Europeia. O mártir nacional Shevchenko foi então retratado nas barricadas.

Citações dos seus poemas apareceram nos escudos de madeira dos manifestantes que se levantaram contra a polícia de choque armada. A frase de Shevchenko “Luta - e prevalecerás” tornou-se o lema da resistência ucraniana.

Foi também a Maidan que ensinou a minha geração de ucranianos a organizarem-se. Muitos dos ativistas que formaram unidades médicas ou de autodefesa, e geriam a logística ou cozinhas de campo na Maidan, foram diretos para a linha de frente quando a Rússia invadiu a Ucrânia em 2014.

Nos últimos oito anos, a geração Maidan combateu na guerra esquecida da Europa. Enquanto grande parte do mundo parecia preocupada com apaziguar Putin, os ucranianos estavam ocupados a defender o seu país contra o exército dele. Ao contrário do Ocidente, que a dormir caminhou para este desastre, os ucranianos estavam preparados para resistir.

A feroz resistência da Ucrânia à invasão da Rússia surpreendeu de facto muita gente no Ocidente. O Kremlin antecipava a derrota da Ucrânia numa questão de dias, e os especialistas ocidentais concordaram amplamente. Tendo sido alvo da propaganda do Kremlin durante décadas, eles também compraram a narrativa imperialista do domínio da Rússia na região e da lamentável, mas inevitável, rendição da Ucrânia.

Rendição foi o que os ucranianos não fizeram. E não foram apenas as Forças Armadas ucranianas que reagiram. Os civis também se ofereceram para apoiar o esforço de guerra. Ao fazê-lo, mudaram a narrativa nacional ucraniana, do modo de vitimização para o de desafio.

A prontidão para combater os invasores, que testemunhei na Ucrânia durante as primeiras semanas da guerra da Rússia, foi surpreendente, por causa da sua abrangência e força, e não foi surpreendente, por causa do seu enraizamento na tradição nacional de resistência anticolonial.

Da noite para o dia, a economia do país transformou-se para apoiar o esforço de guerra. Em Lviv, uma popular cervejaria começou a encher garrafas com coquetéis Molotov em vez de cerveja. Uma biblioteca de jovens recebeu milhares de voluntários para tecer redes de camuflagem para o exército. Uma loja que vendia coletes marsupiais para transportar bebés passou a produzir coletes táticos de combate. As filas de voluntários para se alistarem nas forças de defesa, cozinhar nas cozinhas de campo ou doar sangue estenderam-se por toda a cidade.

Nessas filas, as pessoas recitavam espontaneamente versos dos clássicos ucranianos. Na porta de um abrigo antiaéreo no meu prédio estavam inscritas as famosas linhas de Shevchenko:

Oh enterra-me, e então ergue-te
E quebra as tuas correntes pesadas
E rega com o sangue do tirano
A liberdade que conquistaste

A escritora que desmantelou a minha própria perceção vitimizada da cultura ucraniana foi Lesia Ukrainka. O seu pseudónimo significa literalmente "uma mulher ucraniana" e o seu destino rima com o de sua nação.

Esta emblemática pensadora feminista e anticolonial também me foi apresentada como vítima: não da opressão czarista russa, mas da sua saúde precária, como convém a uma escritora. Ukrainka tinha tuberculose nos ossos, e a sua dor física era o ponto focal do currículo escolar.

O verso do seu poema de 1897 sobre a sua experiência com a doença, "para não chorar, eu ri", caracterizou a atitude de Ukrainka em relação à sua condição. A maioria dos ucranianos lembrar-se-á da frase do programa escolar.

O verso adquiriu no entanto um significado renovado depois do exército russo começar a bombardear cidades ucranianas. Um amigo que trabalha como fixer para jornalistas estrangeiros contou-me a história de uma mulher de Bucha cuja cama foi atingida por estilhaços enquanto ela alimentava os seus cães no quarto ao lado. "Para não chorar, eu ri ", disse a mulher.

Ukrainka insistia que o seu espírito era mais forte do que o seu corpo e a sua força de vontade poderia transcender o sofrimento físico. A heroína do seu drama poético mais famoso, "O Cântico da Floresta " (1911), sacrifica o seu corpo terreno e proclama:

Ah, por esse corpo não suspires!
Está agora infundido e brilha com fogo divino.

Hoje, a famosa frase - "por esse corpo não suspires" - é citada pelo artista de rap ucraniano Freel na sua recente canção de guerra "Blast": é estilizado como uma carta de um filho para a sua mãe a partir da linha de frente da guerra.

Para mim, o texto mais emblemático de Ukrainka no desafio à narrativa da vitimização, e que adere tanto à sua história pessoal como à do seu país, é o pequeno poema de 1911:

Quem te disse que eu seria frágil
Que ao destino obedeceria?
Quem te disse que a minha mão tremeria
Que palavra e pensamento são débeis?
Ouviste-me cantar uma aflita canção,
um pranto de lamentação, --
mas isso era só uma tempestade de primavera quente,
e não o temporal de outono.

Os ucranianos não são conhecidos por obedecerem ao destino. Em 1991, decretaram o fim do império soviético ao votarem pela sua própria saída. Em 2013, confirmaram a escolha da independência erguendo-se contra o seu corrupto governo pró-Rússia. Em 2022, eles estão mais uma vez a resistir à expansão colonial da Rússia, desta vez lutando pelo seu próprio direito de existir.

"Luta - e prevalecerás" é a lição que os ucranianos aprenderam com a sua literatura. Para o continente europeu que estão agora a proteger, a urgência de aprender as lições da resistência ucraniana é mais importante do que nunca.

 

Nota: traduções livres dos poemas ucranianos feitas pela CNN Portugal a partir de edições em inglês.

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