Reductio ad Putinum (e a apologia da discordância)

9 mar 2022, 15:58

Na altura professor na Universidade de Chicago, foi Léo Strauss quem, em 1951, deu à luz num artigo o “reductio ad hitlerum”, depois também referido como “argumento ad hitlerum”. Inventou criticamente, é claro, tendo retomado a referência na obra “Natural Right and History”, dada à estampa dois anos depois. Neste livro, e quanto a esta questão, importa principalmente o capítulo II, Direito natural e a distinção entre factos e valores.

A construção é quase simplória. Consiste, numa qualquer discussão ou troca de ideias, em disparar para atingir o oponente com uma alegada similitude daquilo que defende com aquilo que defendeu o ditador Adolfo.

Não é nada de sofisticado, bem pelo contrário. Por exemplo, Gandhi era vegetariano, Hitler também. Logo, Gandhi era parecido com Hitler. Hitler gostava de cães. Eu também. Logo, tenho algo em que me identifico com Hitler. Algum de nós bebe água? Hitler bebia. Por isso, temos afinidades suspeitas com Hitler que é preciso denunciar ou, quando menos, investigar.

Nestes dias muito tensos e de decisões difíceis, foi surgindo de forma gradual uma nova variante deste vírus argumentativo. De “ad Hitlerum” passou a “ad Putinum”: e andam por aí os dois. Qualquer opinião em que possa transparecer mesmo ao de leve uma divergência, e lá vem a desqualificação dos que a exprimam, “putinistas” ou outra coisa ainda mais virulenta e ácida. Ainda se esta fosse a cereja no topo bolo (nem assim, mas pronto), depois de uma contra-argumentação lógica, fundamentada, calibrada, e poder-se-ia deixar passar. Só que, normalmente, é de Putin para baixo e chega.

Mais dia menos dia, vai ser denunciada uma quinta coluna. A construção é tal e qual, pois quem não pensar exatamente como nós, e parecer não estar em cada momento a sofrer, anda a roçar a traição a um desígnio coletivo imperativo: é amigo de Putin.

Os cidadãos, para que isto faça um sentido mínimo, são tratados como uns tontinhos incapazes de pensarem de forma esclarecida, manipuláveis e influenciáveis. Coitadinhos deles, é preciso protegê-los das pessoas más, daquela gente que discorda e rompe a nova união nacional (salvo seja, cruzes canhoto).

Desta vez, foram alguns colocados no pelourinho da “opinião pública”, mortificados por várias esferográficas zelosas da virtude da opinião. Creio não conhecer nenhum dos destinatários de tais atenções.

Isso é, aliás, algo que nada interessa. Numa democracia, se não houver diferenças, morre a democracia (por favor, evite-se, por piedade e nem que seja uma só vez, a distinção imediata entre democracia liberal e iliberal). Se discordarmos, discordamos e argumentamos, não atacamos “ad hominem” ou com recurso à tal “reductio ad Putinum” ou a outra “reductio” qualquer.

Estivesse a “reductio ad Putinum” circunscrita como ferramenta a um ou dois utilizadores, e não viria mal ao mundo, por rasteira que fosse a interpelação.

Hoje, no entanto, o efeito é amplificado quase ao infinito por seguidores e fiéis, transformando o debate de ideias numa batalha campal em que não se fazem prisioneiros. Por mim, quem quer que seja pode dizer o que muito bem entender, como entender, quando entender.

Não é isto nem semelhante, nem similar, nem comparável e muito menos identificável, claro, à construção da tese da “democracia intolerante”, surgida há bastantes anos, em parte como resposta ao trauma das eleições argelinas de 1988, em que se apresentou a votos, e ganhou, um partido (a FIS) que tinha como projeto fundamental acabar com a democracia.

Aqui, é muito mais banal e elementar. Trata-se de definir, de uma vez por todas, se temos a capacidade de conviver com a diferença, com a divergência, com as análises não unânimes, com a exposição de pontos de vista e saberes em que não nos revemos (ou que não alcançamos).

No caso do conflito na Ucrânia, diga-se em abono da verdade, está a fazer-se o pleno. Um dos lados pratica com convicção fervorosa a “reductio ad Hitlerum” e, com não menos messiânica convicção, responde o outro com a “reductio ad Putinum”:

“- Vossa Excelência, com esse tipo de argumentos, esquece os neo-nazis ao lado de Zelensky! É igual a eles! É um nazi!

- Desculpe, Vossa Excelência é um putinista, um ser humano desprezível que deixa que sejam assassinados os ucranianos!”

Grandes debates, grandes trocas de ideias, em que qualquer notícia menos conveniente é deixada de lado ou imputada a um troll do “adversário” ou até “inimigo”.

Apenas um exemplo.

Contam os jornais que o senhor Mário Machado quer ir (ele e mais 19) combater ao lado das forças ucranianas contra o invasor russo. Um dos campos, fechado na sua trincheira, vai responder “e daí?”; enquanto o outro, na sua trincheira fechado, vai disparar “estão a ver?”.

Um dos riscos graves neste conflito, que o diferencia de vários outros a decorrerem com um balanço de violência bem mais aberrante e violações de direitos humanos sem nome (Síria, Iémen), assenta, precisamente, na natureza do opositor e na possibilidade de irradiação do conflito armado. Pela imprevisibilidade agressiva de Putin, pelo tipo de escalada de ameaças (Portugal, como saberão, é qualificado como Estado “hostil”), pelo comportamento-padrão e, no que realmente deve chamar-se ao palco, pelo arsenal nuclear russo e a possibilidade de um confronto generalizado, com as consequências daí advenientes. A concretização da tal “possibilidade”, por pequena que fosse a “probabilidade”, é de tal forma dantesca que nem será necessário, admito, grande desenvolvimento.

Por estas razões, a nossa contenção, a circunscrição do nosso perímetro direto ao alcance do artigo 5 do Tratado NATO, etc.; e, ao mesmo tempo, mesmo com custos próprios que podem vir a ser brutais, não deixar de enfrentar o opositor e o que está a fazer na Ucrânia, devastando-a. É o equilíbrio possível, sendo também um equilíbrio que nunca tínhamos antes conseguido.

É nestas alturas que, quando ouço alguns, adeptos com certeza do poker manhoso, a desenvolverem teses muito interessantes e críticas sobre esta nossa contenção de sensatez, e afirmam que Putin nunca poderá recorrer ao seu arsenal nuclear, que estamos a ser vítimas do seu bluff, etc., vem-me sempre à memória uma banda desenhada de Andy Riley, “O livro dos coelhinhos suicidas” (“The Book of Bunny Suicides”), que, vinheta após vinheta, tira após tira, página após página, nos mostra coelhitos a suicidarem-se das formas mais tresloucadas e cómicas. Deste livro, conheço a versão em espanhol. É, de longe, a mais deliciosa, porque nos fala de “conejitos suicidas” – expressão que supera todas as de outras línguas. Era bom que, nem que fosse para desanuviar, lêssemos de vez em quando uma daquelas páginas. Para “conejitos suicidas”, chegam e sobram os da banda desenhada.

Para quem quiser, de Andy Riley, “El libro de los conejitos suicidas”, aqui.

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