Estudantes estrangeiros que fogem da Ucrânia dizem enfrentar segregação e racismo na fronteira

CNN , Stephanie Busari, Nimi Princewill, Shama Nasinde e Mohammed Tawfeeq
1 mar 2022, 17:40
Estudantes universitários, incluindo muitos nigerianos, em fuga da capital ucraniana, Kiev, arrumam as suas malas no autocarro, perto da fronteira entre a Hungria e a Ucrânia, na vila húngara de Tarpa, a 28 de fevereiro de 2022. Foto: Attila Kisbenedek/AFP/Getty

À medida que prossegue a invasão russa à Ucrânia, os estudantes estrangeiros que tentam deixar o país dizem que estão a sofrer um tratamento racista por parte das forças de segurança ucranianas e dos funcionários da fronteira.

Uma aluna africana de Medicina disse à CNN que ela e outros estrangeiros receberam ordens para sair de um autocarro público, num posto de controlo entre a Ucrânia e a fronteira da Polónia.

Disseram-lhes que se afastassem para o lado enquanto o autocarro partia apenas com cidadãos ucranianos a bordo, diz ela.

Rachel Onyegbule, uma estudante nigeriana no primeiro ano de Medicina em Lviv, ficou à sua sorte na cidade fronteiriça de Shehyni, a cerca de 640 quilómetros da capital da Ucrânia, Kiev.

Ela disse à CNN: “Chegaram mais de 10 autocarros e nós ficámos a ver toda a gente partir. Pensámos que, depois de levarem todos os ucranianos, nos fossem buscar, mas disseram-nos que tínhamos de ir a pé. Que não havia mais autocarros e que tínhamos de ir a pé.”

“Eu tinha o corpo dormente do frio e não dormíamos há uns quatro dias. Os ucranianos tiveram prioridade sobre os africanos - homens e mulheres - em todos os pontos. Não é preciso perguntarmos porquê. Nós sabemos porquê. Eu só quero ir para casa”, disse Onyegbule à CNN, por telefone no domingo, enquanto esperava na fila, na fronteira, para entrar na Polónia.

Onyegbule diz que acabou por receber o carimbo no seu documento de saída na madrugada de segunda-feira, por volta das 4h30, horário local.

Alegações de violência

Saakshi Ijantkar, estudante indiana do quarto ano de Medicina, também partilhou a sua experiência penosa com a CNN, na segunda-feira por telefone de Lviv, na zona oeste da Ucrânia.

“Temos de passar por três postos de controlo para chegar à fronteira. Muitas pessoas estão lá encurraladas. Eles não permitem a passagem dos indianos.”

A CNN não conseguiu confirmar a identidade ou a afiliação das pessoas que trabalhavam nos postos de controlo, mas Ijantkar disse que estavam todos fardados.

“Deixam passar 30 indianos por cada 500 ucranianos. Para chegar a essa fronteira, temos de caminhar uns quatro a cinco quilómetros do primeiro para o segundo posto de controlo. Os ucranianos vão de táxi ou de autocarro, mas todas as outras nacionalidades têm de ir a pé. Foram muito racistas com os indianos e com as outras nacionalidades”, disse a jovem de 22 anos de Mumbai à CNN.

Ela acrescentou que testemunhou a violência dos guardas com os estudantes que esperavam no lado ucraniano da fronteira entre Shehyni e Medika.

Os homens ucranianos com idades entre os 18 e os 60 anos já não podem sair do país, mas essa lei não abrange os homens de outras nacionalidades.
Ijantkar diz que viu homens indianos a ficarem longas horas na fila, ao lado de outros homens que também não eram ucranianos.

“Foram muito cruéis. O segundo posto de controlo foi o pior. Quando abrem o portão para atravessarmos a fronteira ucraniana, ficamos entre a Ucrânia e a Polónia, e o exército ucraniano não permite que os homens e os rapazes indianos atravessem, quando lá chegam. Só permitem a entrada das raparigas indianas. Tivemos de chorar e, literalmente, suplicar de joelhos. Depois de as raparigas indianas passarem, bateram nos rapazes. Não havia razão alguma para lhes baterem com tanta crueldade”, disse Ijantkar.

“Vi um homem egípcio parado à frente com as mãos nas barras e, por causa disso, um guarda empurrou-o com tanta força que o homem bateu na vedação que está coberta de picos, e perdeu a consciência”, disse ela.

“Tirámo-lo dali para o tentarmos reanimar. Eles não quiseram saber e estavam a bater nos estudantes. Não querem saber de nós, só se preocupam com os ucranianos”, acrescentou.

A CNN entrou em contacto com o exército ucraniano à luz destas alegações de violência, mas não teve uma resposta imediata.

Condições gélidas

Ijantkar disse que muitos dos estudantes esperaram pelo menos um dia, mas ela acabou por voltar para Lviv porque estava aterrorizada, à espera em temperaturas gélidas, sem comida, água ou cobertores.

“Vi pessoas a tremer tanto por causa do frio que desmaiavam por causa da hipotermia. Algumas tinham queimaduras do frio e bolhas. Ninguém nos ajudava e ficávamos ali de pé durante horas”, disse ela.

Andriy Demchenko, porta-voz do Serviço da Guarda Fronteiriça da Ucrânia, disse à CNN na segunda-feira que as alegações de segregação nas fronteiras são falsas e que os guardas estão a trabalhar sob uma enorme pressão, mas sempre dentro da lei.

“Desde o dia em que [o presidente russo Vladimir] Putin atacou a Ucrânia, o fluxo de pessoas que tentam deixar a Ucrânia e a zona de guerra aumentou drasticamente. Se antes, as pessoas que tentavam atravessar a fronteira de e para a União Europeia rondava as 50 000 [pessoas] por dia, agora esse número duplicou e continua a aumentar. Há uma enorme pressão nos postos de controlo e sobre os guardas fronteiriços.”

“Para agilizar o processo e permitir a passagem de um maior número de pessoas, o governo simplificou ao máximo os procedimentos na fronteira. Devido ao aumento das pessoas que a querem atravessar, é preciso esperar em longas filas. No entanto, posso afirmar que tudo acontece dentro da lei. Não há absolutamente qualquer separação por país, cidadania ou classe na fronteira”, disse Demchenko.

A Ucrânia atrai muitos estudantes estrangeiros que querem estudar Medicina porque tem uma reputação sólida nos cursos médicos e respetivas propinas – além de que as outras despesas são muito menores do que em programas semelhantes noutros países do Ocidente.

Outra estudante retida disse à CNN no domingo que os funcionários da fronteira do lado ucraniano mostravam-se preconceituosos em relação aos estudantes estrangeiros.

“Estão a negar os estrangeiros. São muito racistas connosco, na fronteira. Dizem-nos que os cidadãos ucranianos têm de passar primeiro e que os estrangeiros têm de ficar para trás”, disse Nneka Abigail, uma estudante de Medicina de 23 anos, da Nigéria.

“Neste momento, é muito difícil para os nigerianos e outros estrangeiros atravessarem a fronteira. As autoridades ucranianas estão a permitir que mais ucranianos entrem na Polónia. Por exemplo, podem atravessar a fronteira cerca de 200 a 300 ucranianos, e depois apenas 10 estrangeiros ou 5 poderão atravessar... e o tempo que demora é demasiado. É muito difícil... Empurram-nos, enxotam-nos, insultam-nos”, disse Abigail.

Os africanos têm partilhado as suas experiências online usando a hashtag #AfricansinUkraine. As histórias deram origem a indignação e uma série de apelos de crowdfunding foram lançados para tentar ajudar aqueles que ainda estão presos no país.

Pessoas em fuga da violência na Ucrânia, aqui na fronteira pedonal de Medyka, na região leste da Polónia, a 27 de fevereiro de 2022. Foto: WOJTEK RADWANSKI/AFP/Getty Images

Uma das pessoas que partilhou a sua história online foi Korrine Sky, uma estudante de Medicina do Zimbabwe a estudar na Ucrânia desde setembro.

Ela fugiu do país na sexta-feira, mas, com a ajuda de dois amigos de Londres, conseguiu angariar mais de 20 000 libras para ajudar os estudantes afro-caribenhos retidos.

“Esta situação em que estamos é de vida ou morte. Temos de garantir que todos os estudantes africanos cruzam a fronteira com sucesso e em segurança”, disse ela no Instagram Live a partir do lado romeno da fronteira, no domingo.

Cerca de 500 000 refugiados da Ucrânia passaram, até agora, para países europeus vizinhos, disse o Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi, nesta segunda-feira.

Os países de origem estão a fazer o suficiente para ajudar os seus cidadãos?

Algumas pessoas com quem a CNN falou dizem que não censuram as autoridades ucranianas por darem prioridade aos seus cidadãos, mas criticam os seus próprios governos por não tomarem providências para ajudá-las a sair do país.

O “governo nigeriano está a agir de forma indiferente, como sempre”, disse Onyegbule.

“Somos muitos na Ucrânia. Não nos podem deixar assim. É muito triste, mas estamos habituados ao mau governo da Nigéria. É muito triste.”

Onyegbule admitiu que havia autoridades nigerianas à espera dela e de outros, quando entraram na Polónia.

“Isso teria sido muito útil na Ucrânia. Era lá que procurávamos alguém que falasse em nosso nome.”

O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Nigéria, Geoffrey Onyeama, disse no Twitter que as autoridades ucranianas lhe garantiram que não haveria restrições aos estrangeiros que quisessem deixar a Ucrânia.

“O problema é o resultado do caos na fronteira e nos postos de controlo pelo caminho”, afirmou, acrescentando que está a “coordenar pessoalmente com as missões na Ucrânia, na Polónia, na Rússia, na Roménia e na Hungria, para garantir que tiramos os nossos cidadãos da Ucrânia e trazemos para a Nigéria aqueles que estiverem prontos para regressar, apoiando também aqueles que permanecem na Ucrânia.”

Forma-se uma coluna de fumo sobre a cidade de Vasylkiv, nos arredores de Kiev, a 27 de fevereiro de 2022, após os ataques russos noturnos terem atingido um depósito de petróleo. Foto: Dimitar Dilkoff/AFP/Getty Images

A CNN entrou em contacto com Onyeama para obter um comentário às alegações de que o governo nigeriano não fez o suficiente para ajudar os seus cidadãos a deixar a Ucrânia.

As nações africanas do Conselho de Segurança da ONU condenaram na segunda-feira a discriminação contra cidadãos africanos na fronteira ucraniana, durante uma reunião do Conselho na sede da ONU em Nova Iorque.

“Condenamos veementemente este racismo e acreditamos que é prejudicial ao espírito de solidariedade que é tão necessário, atualmente. Os maus-tratos a africanos nas fronteiras da Europa têm de parar imediatamente, quer seja em relação aos africanos que fogem da Ucrânia ou em relação àqueles que atravessam o Mediterrâneo”, disse o embaixador queniano na ONU, Martin Kimani, na segunda-feira.

Onyegbule, a estudante de Medicina do primeiro ano, disse que quis estudar na Ucrânia porque procurava uma “opção segura e barata fora da Nigéria”.

“No geral, viver na Ucrânia tem sido pacífico. É um país lindo. Às vezes, nos elétricos, as pessoas não se querem sentar ao meu lado e ficam a olhar para mim, mas no geral, os ucranianos são pessoas simpáticas”, disse ela.

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