"Estão a dizer-nos que é errado matar uma família inteira com uma arma mas que não há problema em bombardeá-los até à morte? Chocante"

CNN , Sana Noor Haq e Claire Calzonetti
25 out 2023, 14:05

Rainha Raina da Jordânia diz que à população de Gaza estão a ser dadas “duas opções”: “a expulsão ou o extermínio, a limpeza étnica ou o genocídio”. E acusa o mundo de estar em silêncio: "Só quero lembrar ao mundo que as mães palestinianas amam os seus filhos tanto quanto qualquer outra mãe no mundo"

Rainha Rania da Jordânia acusa Ocidente de “flagrante duplicidade de critérios” à medida que o número de mortos aumenta na Faixa de Gaza

por Sana Noor Haq e Claire Calzonetti, CNN

A rainha Rania da Jordânia acusou os líderes ocidentais de uma "flagrante duplicidade de critérios" por não condenarem a morte de civis sob bombardeamento israelita em Gaza, numa altura em que a guerra de Israel contra o Hamas ameaça desestabilizar as relações entre os líderes americanos e árabes.

Em entrevista exclusiva a Christiane Amanpour, da CNN, Rania afirmou: "As pessoas de todo o Médio Oriente, incluindo a Jordânia, estão chocadas e desiludidas com a reação do mundo a esta catástrofe que se está a desenrolar. Nas últimas semanas, assistimos a uma flagrante duplicidade de critérios no mundo".

"Quando o dia 7 de outubro aconteceu, o mundo apoiou imediata e inequivocamente Israel e o seu direito de se defender e condenou o ataque... mas o que estamos a ver nas últimas semanas é o silêncio no mundo", disse à CNN.

Israel declarou um "cerco total" a Gaza na sequência dos ataques terroristas de 7 de outubro do grupo militante palestiniano Hamas, que controla o enclave costeiro, que mataram mais de 1.400 pessoas e fizeram mais de 200 reféns, segundo as Forças de Defesa de Israel (FDI). O cerco tem resultado em incessantes ataques aéreos a Gaza, densamente habitada, e num bloqueio de fornecimentos vitais - incluindo alimentos e água - a toda a população da faixa isolada.

"É a primeira vez na história moderna que se regista um tal sofrimento humano e o mundo nem sequer apela a um cessar-fogo", acrescentou a Rainha Rania. "O silêncio é ensurdecedor e, para muitos na nossa região, torna o mundo ocidental cúmplice".

"Estão a dizer-nos que é errado matar uma família, uma família inteira, sob a mira de uma arma, mas que não há problema em bombardeá-los até à morte? Há aqui uma duplicidade de critérios gritante", disse. "É chocante para o mundo árabe".

De acordo com os últimos dados do Ministério da Saúde palestiniano em Gaza, controlado pelo Hamas, o número de mortos devido aos ataques israelitas ascende a mais de 5.000, incluindo mais de 2.000 crianças. Pelo menos 35 trabalhadores da ONU também foram mortos.

Israel afirma que está a atacar os terroristas do Hamas e acusou o grupo de se esconder atrás de infraestruturas civis.

Só quero lembrar ao mundo que as mães palestinianas amam os seus filhos tanto quanto qualquer outra mãe no mundo

As Nações Unidas e várias agências de ajuda humanitária estão a apelar urgentemente a um cessar-fogo e à livre circulação da ajuda humanitária para a população cada vez mais desesperada. Entretanto, os médicos que trabalham no enclave isolado alertam para o facto de a falta de energia ameaçar a vida dos seus pacientes mais vulneráveis, incluindo os feridos graves e os bebés prematuros que necessitam de incubadoras.

"Como mãe, temos visto mães palestinianas que têm de escrever os nomes dos seus filhos nas mãos - porque as hipóteses de serem bombardeados até à morte, de os seus corpos se transformarem em cadáveres são muito elevadas", disse Rania. "Só quero lembrar ao mundo que as mães palestinianas amam os seus filhos tanto quanto qualquer outra mãe no mundo."

Frustração crescente com o Ocidente

Os líderes árabes têm manifestado a sua frustração com a aparente falta de vontade dos EUA em tentar travar o cerco de Israel; a Jordânia, o Egipto e a Autoridade Palestiniana desistiram de uma cimeira planeada na Jordânia com o Presidente dos EUA, Joe Biden, na semana passada.

Washington, um aliado próximo de Israel, tem-se mantido firme no seu apoio à retaliação contra Gaza por parte do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, e tem refutado os apelos a um cessar-fogo.

"Não estamos a falar de um cessar-fogo neste momento", disse John Kirby, coordenador de comunicações estratégicas do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, à CNN, na segunda-feira.

"De facto, não acreditamos que este seja o momento para um cessar-fogo. Israel tem o direito de se defender. Ainda têm trabalho a fazer para perseguir os líderes do Hamas, vamos continuar a apoiá-los ou a dar-lhes mais assistência em termos de segurança".

No Conselho de Segurança da ONU, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken reconheceu a catástrofe humanitária em Gaza e disse que deveriam ser consideradas "pausas humanitárias", mas evitou a expressão "cessar-fogo".

No entanto, na semana passada, os EUA vetaram uma proposta do Conselho de Segurança para uma pausa humanitária no derramamento de sangue, criticando o projeto de resolução por não mencionar o direito de auto-defesa de Israel. O Reino Unido também se recusou a subscrever a resolução.

Um cessar-fogo russo anterior também falhou.

Israel está a cometer "crimes contra a humanidade" na sua atual campanha, afirmaram nove peritos independentes que trabalham com a ONU numa declaração conjunta, na quinta-feira. O bloqueio "indizivelmente cruel" a Gaza, associado a "transferências forçadas de população", viola o direito internacional e o direito penal, acrescentam os peritos.

O antigo negociador israelita de reféns, Gershon Baskin, advertiu entretanto que a crise deveria ser um "alerta" tanto para israelitas como para palestinianos e apelou a uma mudança de liderança de ambos os lados.

Baskin, cidadão israelita, desempenhou um papel fundamental na libertação do soldado israelita Gilad Shalit, que foi capturado e preso pelo Hamas entre 2006 e 2011. Baskin é o autor do livro "The Negotiator: Freeing Gilad Schalit from Hamas" [à letra, "O Negociador: Libertar Gilad Schalit do Hamas"] e está agora em contacto com os líderes israelitas e do Hamas, a título não oficial.

"Não deveria ser surpresa para ninguém que tenhamos chegado a uma situação tão horrível", disse ele a Amanpour numa outra entrevista na terça-feira. "Tem de ser uma chamada de atenção para Israel: não se pode manter outro povo ocupado durante 56 anos e esperar ter paz. Não se pode fechar dois milhões de pessoas numa prisão a céu aberto e esperar que haja tranquilidade".

"E para os palestinianos, deve ser uma chamada de atenção para o facto de que, se apoiam líderes fanáticos radicais e se recusam a reconhecer que as outras pessoas que vivem na vossa terra têm os mesmos direitos que vocês, então vão sofrer isto", acrescentou, falando a partir de Jerusalém.

"Estes são os acontecimentos mais traumáticos para Israel e para a Palestina desde 1948".

Crise crescente e receios de deslocação

Os receios de que o conflito possa alastrar aos países vizinhos do Médio Oriente são cada vez maiores, uma vez que Israel insta os civis da parte norte de Gaza a deslocarem-se para sul antes de uma operação terrestre prevista.

Obrigar os civis de Gaza a deslocarem-se equivale "ao crime de guerra de transferência forçada", afirmou o Conselho Norueguês para os Refugiados.

Os líderes jordanos e egípcios têm manifestado a sua preocupação com a possibilidade de milhões de palestinianos poderem vir a ser expulsos de Gaza e da Cisjordânia ocupada para o Egipto e a Jordânia, respetivamente, afirmando que tal medida poderia mergulhar a região numa guerra.

O rei Abdullah da Jordânia avisou na semana passada que a deslocação de palestinianos para a Jordânia e o Egipto seria uma "linha vermelha" e disse que nem a Jordânia nem o Egipto aceitariam refugiados de Gaza. O rei Abdullah afirmou que qualquer sugestão de que os dois países aceitem refugiados de Gaza é um plano "dos suspeitos do costume para tentar criar questões de facto no terreno", sugerindo que os refugiados podem não ser autorizados a regressar às suas casas.

Questionada por Amanpour sobre a posição do seu marido, a Rainha Rania afirmou que a população de Gaza tem "duas opções".

"Essencialmente, é-lhes dada a escolher entre a expulsão ou o extermínio, entre a limpeza étnica e o genocídio. E a nenhum povo deveria ser dado, [deveria] ter de enfrentar, esse tipo de escolha. O povo da Palestina não deve, [o povo] de Gaza não deve, ser forçado a deslocar-se novamente", afirmou.

Mais de metade da população de Gaza é constituída por refugiados cujos antepassados fugiram ou foram expulsos das suas casas no atual Israel por grupos judeus armados durante a guerra israelo-árabe de 1948, a que os palestinianos chamam Nakba ou "a catástrofe". Israel nunca lhes permitiu regressar às suas casas e muitos vivem na pobreza desde então.

A rainha também sublinhou que o conflito no Médio Oriente não começou a 7 de outubro, quando o Hamas atacou Israel, destacando a história da ocupação israelita e a deslocação dos palestinianos.

A solução de dois Estados para estabelecer uma Palestina "livre, soberana e independente" é o único caminho para a paz na região, diz Rania

"A maioria das estações de televisão está a cobrir a história sob o título 'Israel em guerra'. Mas para muitos palestinianos do outro lado do muro de separação, do outro lado do arame farpado, a guerra nunca se foi embora", disse.

"Esta é uma história com 75 anos, uma história de morte e deslocação esmagadoras para o povo palestiniano. É a história de uma ocupação sob o regime do apartheid, que ocupa terras, derruba casas, confisca terras, faz incursões militares, ataques noturnos".

Manifestantes pró-Palestina cantam palavras de ordem junto à Embaixada de Israel em Amã, na sexta-feira. Khalil Mazraawi/AFP/Getty Images

Mesmo antes da guerra com o Hamas, as tensões entre palestinianos e israelitas na Cisjordânia ocupada eram elevadas. Na sequência de uma vaga de ataques palestinianos contra israelitas no ano passado, Israel lançou incursões e raides regulares na Cisjordânia ocupada, tendo como alvo o que disse serem redutos de militantes. A violência daí resultante provocou um número recorde de mortos, tanto palestinianos como israelitas, números que não se registavam há pelo menos uma década.

Desde que Israel assumiu o controlo e ocupou a Cisjordânia em 1967, na sequência da Guerra dos Seis Dias, a Jordânia, grandes extensões do território, que os residentes esperam que venha a fazer parte de um futuro Estado palestiniano, foram ocupadas por civis israelitas, muitas vezes sob proteção militar.

A maior parte do mundo considera estes colonatos ilegais à luz do direito internacional.

Nos últimos dias, manifestantes em algumas partes do mundo árabe inundaram as ruas para mostrar o seu apoio aos palestinianos sob o cerco e os bombardeamentos israelitas. Na sexta-feira, cerca de 6000 manifestantes marcharam em Amã em apoio aos palestinianos.

A solução de dois Estados para estabelecer uma Palestina "livre, soberana e independente" é o único caminho para a paz na região, disse Rania à CNN.

"Nunca poderá haver uma resolução a não ser à volta de uma mesa de negociações... só há um caminho para isso, que é um Estado palestiniano livre, soberano e independente, vivendo lado a lado, em paz e segurança, com o Estado de Israel".

 

Alaa Elassar, DJ Judd, James Frater, Tim Lister, Lauren Kent e Amy Cassidy da CNN contribuíram para esta reportagem.

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