Era demasiado tarde, Maayan tinha levado um tiro na cabeça e já estava morta

6 fev, 14:18
gif Hamas

Helena Ferro Gouveia abraçou pessoas desta história. São pessoas que perderam pessoas no 7 de outubro mas também pessoas que têm pessoas raptadas desde 7 de outubro. Foi há 122 dias. "Abracei-os a todos. Um por um"

122 dias

por Helena Ferro Gouveia
(nota: a imagem de abertura é de arquivo do dia do ataque, não corresponde a nenhuma das pessoas mencionadas nesta história)

 

Existem duas maneiras de contar esta história. Usando os números, os mapas, as narrativas históricas. Com os sentimentos. E não apenas dois lados mas um caleidoscópio multifacetado e em constante mutação. 
Começo com um dos maiores historiadores contemporâneos, Simon Sebag Montefiori, “em Jerusalém há muitas culturas interligadas e sobrepostas, (...) árabes ortodoxos, árabes muçulmanos, judeus sefarditas, judeus asquenazes, judeus haredis, judeus seculares, arménios ortodoxos, georgianos, sérvios, russos, coptas, protestantes, etíopes, latinos, etc. É frequente uma mesma pessoa ter diferentes identidades e pertencer a diferentes tradições, o que faz dela o equivalente humano das múltiplas camadas de pedra e poeira que formam Jerusalém”. E é de camadas que quero falar. 

Esta não é uma crónica sobre política ou história ou sobre os livros de Primo Levi, Elie Wiesel, Tadeusz Borowski, que deviam ser lidos, nem sobre a desolação de quem saiu de um gueto e atravessou a Europa num vagão de gado, das mães que viram os filhos arrancados dos braços na rampa de seleção, das que tiveram que escolher entre filhos, nem sobre quem morreu despido com um pedaço de sabão na mão. Num campo próximo de Czernowitz, a cidade de Paul Celan, um comandante das SS obrigava violinistas judeus a tocar um tango enquanto eram cavados túmulos e decorriam marchas, torturas e execuções. Um dia, o comandante disparou contra toda a orquestra. "Quem permite que a memória das vítimas seja obscurecida, mata-as pela segunda vez", escreveu Levi.

Esta é uma crónica sobre a coragem, a força que se arranca das entranhas e a esperança. 

Esta é a história de Or e Eynav Levy, do seu filho de dois anos Almog e do Michael, o irmão velho. “A única forma de continuar a viver dia após dia é contar a história deles. Deixei tudo para trás, a minha vida agora é falar com jornalistas todos os dias. Encontro-me com políticos. Encontro-me com diplomatas. Quase não durmo.” Michael veste de negro, na tshirt o rosto do irmão de 33 anos, Or, programador e um fundador de uma bem-sucedida start-up. Na mão um ursinho branco do sobrinho Almog que vive agora com os avós. Or foi raptado pelo Hamas, a mulher, “a alma gémea dele, eram inseparáveis há 14 anos”, foi assassinada no Festival Nova. “Está sempre a perguntar pelos pais. Quer ir para casa. Na verdade, não podemos mencionar as palavras "mãe" ou "pai" ao pé dele, porque ele começa a chorar. Sim, não é fácil.

Todos os que estão em Gaza são pessoas reais com esperanças e sonhos e com uma família que sente a sua falta. As pessoas tendem a esquecer-se disso e a envolver a política no assunto e têm de se lembrar que são apenas seres humanos sem qualquer relação com a política. Não se trata de Israel contra os palestinianos, não está de modo algum relacionado com a política. Or era um civil, ele e a sua mulher. Foram celebrar  o amor num festival de música e foram brutalmente atacados.

Esta é a história de Idan Shtivi e Eliyahu Shtivi. “Como mãe, sei que está vivo. Sinto-o como mãe”, diz Eliyah.  Há 122 dias que não sabe nada do filho. Não sabe se morreu em Israel, se foi levado para Gaza. Não tem nenhuma notícia. Agarra-se à vida dele e nós queremos acreditar com ela. 

Idan, 28 anos, é estudante do segundo ano de politica de sustentabilidade. Uma semana antes do ataque do Hamas adoptou um cão e estava a fazer planos para se mudar para um novo apartamento com a sua namorada, Stav. Idan era fotógrafo voluntário em Re'im. Pouco depois das 07:00 de 7.10 ligou à namorada dizendo o que se estava a passar. O carro que conduzia foi descoberto, crivado de balas e de sangue. Os dois amigos que o acompanhavam morreram. O paradeiro de Idan é desconhecido. Nenhum refém em Gaza o viu. “Sei que está vivo. Sei.”

Esta é a história do sargento Tomer Yaakov Ahimas, 20 anos. Tomer morreu em combate contra o Hamas no dia do massacre. O corpo foi levado para Gaza, onde é mantido refém. “A minha história”, diz o irmão mais velho de Tomer, “é diferente de outras que ouvimos aqui. Nós queremos o corpo de volta para o poder sepultar”. Na tradição judaica, o funeral é muito importante. 

Esta é a história de Tsachi Idan e de Maayan Idan. Acordaram às 6:29 com sirenes contínuas a avisar da chegada de mísseis, numa manhã de Shabbat, a 7 de outubro, no Kibutz Nahal-Oz, perto da fronteira de Gaza.
 
Tsachi e a família Idan correram para a Mamad (sala de abrigo), ouvindo explosões pelo caminho. Sabiam que algo estava terrivelmente errado. A certa altura, as mensagens de texto do sistema de segurança do kibutz avisaram que os terroristas do Hamas tinham entrado. 

Tsachi tentou colocar uma cadeira para bloquear a porta da sala.Sentou-se na cadeira e esperou. O mais silencioso possível, na escuridão total, tentando acalmar os filhos. De repente ouviram vidros a estilhaçarem-se lá fora e várias pessoas a caminharem. Gali, a mãe, abraca Yael, a filha de 12 anos. Maayan, a filha mais velha, de 18 anos, estava debaixo da cama. Shahar, um dos  filhos, debaixo de outra cama. "Abram a porta" e "não vamos disparar". Tsachi lutou para manter a porta fechada. "Abram a porta" e "não vamos disparar". A porta abriu-se ligeiramente, Maayan saltou para ajudar o pai. Um tiro. Gali continua a cobrir Yael. Tsachi gritou: "Quem é que levou um tiro?". Tsachi gritou: "Maayan, não!". Os homens estavam agora à entrada da porta. Acenderam a luz e gritaram: "Calma, calma", enquanto apontavam as armas.
 Tsachi chorava, implorando: "Ela está a morrer".

Era demasiado tarde, Maayan tinha levado um tiro na cabeça e já estava morta. Os terroristas levaram-nos para fora da sala de segurança, para a sala de estar e deitaram-nos no chão. Pegaram no telemóvel de Gali e pediram-me o código de acesso. Entraram na sua  conta do Facebook e transmitiram em direto. As imagens foram retiradas entretanto da internet. São imagens dolorosas de ver. A casa está cheia de balões, de parabéns e... de sangue. Maayan tinha acabado de fazer 18 anos. As crianças saltam de susto com as rajadas de armas automáticas e choram nos braços dos pais, que se deitam sobre elas em vários momentos para as proteger. O corpo sem vida de Maayan jaz a poucos metros de distância. Yael pergunta: “A minha irmã? A minha irmã? Podemos trazer a minha irmã de volta?”. "Porque mataram a minha irmã?" Eles responderam: "Não te preocupes. A tua irmã está com Alá".

Por fim, Tsachi é obrigado a levantar-se. As mãos amarradas atrás das costas com uma corda. As mãos ensanguentadas. As crianças gritam para não levarem o pai, para não o matarem. E depois é levado embora. As últimas palavras de Gali ao marido também estão gravadas na sua mente. Disse-lhe: “Amo-te, vou cuidar dos nossos filhos, espero por ti, não sejas herói”. 
 
Maayan, a filha mais velha, “era perfeita". Tinha acabado de passar no exame de condução e tinha o seu primeiro namorado sério. Adorava ler e pediu livros para o seu aniversário apenas quatro dias antes de ser morta. Terá para sempre 18 anos. A dor é tanta, tanta, mas contá-la é preciso para os trazer de volta. 

Esta é a história deles, das suas famílias. São camponeses (deixei essa história por contar), são mães, pais, irmãos. Não são políticos. Abracei-os a todos. Um por um. Ofereceram-me uma placa igual à que que trazem ao peito: “Bring them Home. Now!”.

Passaram 122 dias.

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