Fotografias de satélite espião revelam centenas de fortes romanos há muito desaparecidos - e põem em causa uma teoria com décadas

CNN , Mindy Weisberger*
27 out 2023, 09:00
De acordo com um novo estudo, os investigadores descobriram grandes fortalezas romanas utilizando imagens de satélite espião dos EUA não classificadas, obtidas durante a Guerra Fria. (CORONA/Courtesy Jesse Casana/Antiquity Publications Ltd)

Com base nas imagens de satélite, o elevado número de fortes e a sua distribuição generalizada sugerem que podem não ter sido erguidos para manter os inimigos afastados

Fotografias tornadas públicas captadas por satélites espiões dos Estados Unidos, lançados durante a Guerra Fria, revelaram um tesouro arqueológico: centenas de fortalezas da era romana, até agora desconhecidas, no que é atualmente o Iraque e a Síria.

Muitas dessas estruturas há muito perdidas podem ter desaparecido para sempre nesta altura, destruídas ou danificadas nas últimas décadas devido à expansão agrícola, ao desenvolvimento urbano e à guerra. No entanto, a descoberta da existência dos fortes põe em causa uma hipótese popular estabelecida na década de 1930 sobre o papel dessas fortificações ao longo da fronteira oriental do antigo Império Romano, segundo uma investigação publicada na revista Antiquity.

Com base nas imagens de satélite, o elevado número de fortes e a sua distribuição generalizada sugerem que podem não ter sido erguidos para manter os inimigos afastados, como sugeria a teoria de décadas. Em vez disso, as estruturas foram provavelmente construídas para garantir a passagem segura de caravanas e viajantes ao longo de rotas com muito tráfego não militar. De acordo com os autores do estudo, estes fortes eram postos avançados e refúgios, e não barreiras hostis.

As imagens de alta resolução analisadas no novo estudo foram obtidas durante sobrevoos por vários satélites pertencentes a dois programas militares dos EUA: o Projeto Corona (1960 a 1972) e o Hexagon (1971 a 1986). As imagens do Corona foram tornadas públicas em 1995 e as do Hexagon foram divulgadas em 2011.

As imagens do Hexagon e do Corona têm um valor inestimável para os arqueólogos porque preservam instantâneos de paisagens que, entretanto, sofreram perturbações significativas, disse o principal autor do estudo, Jesse Casana, arqueólogo e professor do departamento de antropologia do Dartmouth College, em New Hampshire, nos Estados Unidos.

"A agricultura e a urbanização destruíram muitos sítios e elementos arqueológicos a um nível chocante", afirmou Casana à CNN. "Estas imagens antigas permitem-nos ver coisas que muitas vezes estão obscurecidas ou que já não existem atualmente."

Fotografias de satélite de espionagem vs estudo de Poidebard

As imagens de satélite são especialmente úteis para pesquisas na parte norte do Crescente Fértil no Médio Oriente - desde a costa oriental do Mediterrâneo até ao oeste do Irão - devido à importância arqueológica da área e à elevada visibilidade do solo nas fotografias, acrescentou Casana.

A equipa de investigação analisou as imagens em busca de sinais de fortes romanos, que têm uma forma quadrada característica e paredes que medem normalmente entre 50 e 80 metros de comprimento. Os cientistas começaram a sua pesquisa utilizando mapas de referência de um levantamento aéreo da região efetuado nas décadas de 1920 e 1930 pelo arqueólogo francês e missionário jesuíta Antoine Poidebard. Esse estudo foi um dos primeiros a fotografar sítios arqueológicos a partir do ar e, em 1934, Poidebard relatou ter encontrado 116 fortes romanos.

A sample of Father Antoine Poidebard's 1934 aerial photographs, clockwise from top left: Fort at Qreiye, Roman fort and medievalcaravanserai at Birke, fort at Tell Zenbil and castellum at Tell Brak.
Amostra das fotografias aéreas de 1934 do missionário jesuíta e arqueólogo Antoine Poidebard (no sentido dos ponteiros do relógio a partir do canto superior esquerdo): Forte em Qreiye, forte romano e caravançarai medieval em Birke, forte em Tell Zenbil e em Tell Brak. (Padre Antoine Poidebard/Cortesia Jesse Casana/Antiquity Publications Ltd)

Foi um feito sem precedentes. Mas quase um século depois, mapear os fortes de Poidebard em fotos de satélite foi um desafio. Como o seu mapa não era em grande escala, continha numerosos erros espaciais, apontou Casana. Poidebard também não forneceu nomes ou números para a maioria dos fortes que encontrou, identificando-os em vez disso pela sua proximidade a características geológicas.

Segundo Poidebard, esses fortes estavam alinhados de norte a sul ao longo do que foi outrora a fronteira mais oriental do Império Romano. Esta disposição, segundo ele, tinha certamente como objetivo proteger contra invasores vindos de leste.

Mas o estudo de Poidebard forneceu apenas uma visão parcial das antigas infraestruturas de Roma, segundo os investigadores. O que ele não viu - e o que as fotografias de satélite revelaram - foi que a linha norte-sul de 116 fortes era, na verdade, apenas uma pequena parte de um conjunto que se estendia de leste a oeste e que continha 396 estruturas fortificadas.

Os fortes estendiam-se por cerca de 300.000 quilómetros quadrados, "estendendo-se de Mossul, no rio Tigre, Iraque, através da província de Ninawa, pelos vales de Khabur e Balikh, continuando até às planícies semi-áridas a oeste do rio Eufrates, que conduzem à Síria ocidental e ao Mediterrâneo", segundo o estudo.

Oásis de segurança para a Roma antiga

Quando os arqueólogos fizeram um segundo levantamento de um subconjunto de imagens, encontraram mais 106 estruturas semelhantes a fortes, o que indica que novas investigações irão revelar muitos mais fortes romanos. Com base nas escavações de outros sítios romanos na região, os cientistas estimaram que os fortes foram construídos entre os séculos II e VI.

Embora a fila de fortes de Poidebard ao longo da frente oriental do Império Romano parecesse uma fortificação militar, estas novas provas sugerem que os fortes tinham um objetivo diferente. Em vez de constituírem uma muralha intransponível numa fronteira violenta, proporcionavam oásis de segurança e ordem ao longo de estradas romanas bem percorridas.

Nesse mundo, as fronteiras "eram locais de intercâmbio cultural dinâmico e de circulação de bens e ideias", e não barreiras, sublinhou Casana. E talvez essa perspetiva tenha uma lição para a era moderna, acrescentou.

"Historicamente, como arqueólogo, posso dizer que houve muitas tentativas por parte dos Estados antigos de construir muros para atravessar as fronteiras e foi um fracasso universal", considerou Casana. "Se há alguma forma de a arqueologia contribuir para o discurso moderno, espero que seja a de que construir muros gigantes para manter as pessoas afastadas é um mau plano."

*Mindy Weisberger é uma escritora científica e produtora de media cujo trabalho foi publicado na Live Science, Scientific American e na revista How It Works

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