Greves sufocam governo britânico em dezembro. E Portugal? "Vai começando a acumular tensões que vão levar a esse tipo de situação"

16 dez 2022, 07:00
Greve

Durante a totalidade do mês de dezembro, não há um dia em que não haja greve no Reino Unido e o governo britânico já acusou sindicatos de fazerem refém a economia do país. Para os economistas ouvidos pela CNN Portugal, a origem está no eclodir das pressões geradas pelo aumento da inflação e a perda de salário real. As mesmas que têm criado impacto na carteira dos portugueses. Então, porque não se registam fenómenos como este em Portugal?

O Reino Unido está no meio de uma onda de greves que atinge, sem falta, todos os dias do mês de dezembro. Da saúde à educação, passando por serviços sociais, de transporte de encomendas, escolas e tribunais, todos os setores vão parar, pelo menos, quatro vezes este mês, com estimativas a apontarem para mais de um milhão de horas de trabalho perdidas - o número mais alto desde 1989. 

Em contraste, dados da Pordata indicam que, nos últimos cinco anos, o máximo de dias de trabalho que Portugal perdeu por causa de greves foi 56 mil, em 2019. Já o máximo histórico deste indicador remonta a 1986, com 382 mil dias de trabalho perdidos.

No centro da contestação britânica estão exigências de melhores salários e condições de trabalho, com a inflação a atingir um máximo de 41 anos e as contas da energia e alimentares a reduzirem cada vez mais a margem de manobra das famílias. Assim, como aponta Joana Silva, economista sénior no Banco Mundial, “mesmo com aumentos salariais que, no caso dos serviços no Reino Unido são em média de 5%, bastante mais altos que em Portugal, vão ter uma perda de poder de compra”.   

Para além disso, refere Ricardo Cabral, professor de economia no ISEG e investigador no Institute of Public Policy, as greves entendem-se porque “o Reino Unido tem empobrecido muito nas últimas décadas e no último ano, em particular, tendo ido mais longe nas reformas liberais e nas privatizações”.

 

Estação de Kings Cross vazia no centro de Londres, vista durante a greve ferroviária de dezembro/ Getty

Certo é que este mês de greves consecutivas é “o primeiro e mais vital desafio do Partido Conservador, que pode determinar o futuro de Rishi Sunak”, como sublinha o economista Jorge Bateira. Pressionado nas ruas, o primeiro-ministro britânico está também a lidar com a impaciência do seu partido que quer nova e rápida legislação anti greves.

No início do mês, vários ministros acusaram o Sindicato Nacional dos Trabalhadores Ferroviários, Marítimos e dos Transportes - que representa mais de 80 mil trabalhadores - de "manter o país como refém", agendando greves durante o Natal, depois de terem rejeitado uma oferta de aumentos de 9% no prazo de dois anos. Novas negociações esta terça-feira foram também infrutíferas e o próprio primeiro-ministro não parece confiante de que uma solução possa ser encontrada. “O governo fará tudo o que estiver ao seu alcance para minimizar a perturbação, mas a única forma de a impedirmos completamente é se os sindicatos cancelarem estas greves”.

Para além dos funcionários dos transportes, também trabalhadores do NHS, o serviço nacional de saúde britânico, e trabalhadores dos correios começaram esta semana novos ciclos de manifestações. A economista Joana Silva reconhece que haja uma possível concentração de esforços, mas nota que o período de dezembro, com o Natal à porta, é vantajoso em termos de exposição. “É um período em que se regista picos de atividade de consumo e, quando se pensa numa greve, quer que se cause bastante impacto e que as pessoas e o Governo vejam os efeitos e oiça os pedidos”.

Os economistas notam que o cerne da contestação britânica é idêntico ao vivido pelos portugueses. Houve uma perda real dos salários, as prestações da casa e o custo da eletricidade encareceram este ano e os indicadores de sentimento económico não são positivos, mas um mês preenchido por greves de vários setores ao mesmo tempo não é algo que se espera, pelo menos no imediato. Por um lado, explica Ricardo Cabral, “o movimento sindical é mais forte que em Portugal” e a escolha da greve como instrumento de protesto, destaca Joana Silva, difere por “motivos culturais e históricos”.

 

"O governo falhou", lê-se no cartaz de uma das milhares de grevistas da Royal Mail/ Getty

Por outro, a legislação laboral portuguesa enfraqueceu muito os sindicatos na senda da intervenção da Troika, o que, sublinha Jorge Bateira, significa uma “fragilidade enorme” do poder negocial do trabalho. “A relação de forças está toda do lado dos empregadores, as pessoas preocupam-se em salvaguardar o seu posto de trabalho e hesitam muito em reivindicar, vão para uma entrevista de emprego com o credo na boca e nem se ousa abrir muito a boca quanto ao nível de salário pretendido”, acrescenta.

Joana Silva aponta ainda outra diferença entre o caso português e o caso no Reino Unido, relacionada com a dependência que o consumidor tem do bem que encarece exponencialmente. “O Reino Unido tem a característica económica de ter um alto número de pessoas com empréstimos ao banco para pagar a casa e em Portugal o número de pessoas que são donos da sua casa é muito superior, assim um aumento da taxa de juro pode ter um efeito social diferente em Portugal e no Reino Unido”.

Mas Joana Silva e Jorge Bateira admitem uma outra hipótese. A possibilidade de Portugal registar o mesmo cenário de “exaustão social” que se vive nas ruas britânicas. “Portugal não está nesse ponto, mas vai começando a acumular tensões que, um dia, vão levar a esse tipo de situação”, realça Jorge Bateira, vincando que o “discurso das contas certas e do excesso de zelo” lançado pelo Governo “é perigoso socialmente”.

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