Até aqui, percebeu?

9 mai 2022, 13:59

A antecipação das celebrações do dia da Vitória em Moscovo continha várias coisas apetitosas. A principal, no entanto, era o que poderia constar do discurso de Vladimir Putin. Cada vez mais sensíveis à comunicação, e com o fascínio que sempre exercem os maus, fez-se um retrato a priori que, para dizer a verdade, já quase dispensava o que o líder da Federação Russa entendesse por bem proclamar. Comparações e similitudes com Adolf Hitler e com as suas várias campanhas de agressão, análise da dimensão cénica da cerimónia, há ou não há força aérea a sobrevoar a Praça Vermelha, etc.

Quase demos por certo que ia haver uma declaração formal de guerra à Ucrânia. Pois, mas não houve. E a possibilidade de uma qualquer forma de mobilização geral? Nada de nada. Antecipava-se um sinal, um que fosse, sobre as opções fundamentais da Rússia para o continuar do conflito, para futuras ou presentes anexações territoriais? Não houve nada disso.

No discurso, e no mais essencial, Vladimir Putin repristinou o que disse no momento da invasão e manteve o fio condutor. Trata-se de combater, não apenas a Ucrânia, mas também quem a apoia, deixando-se clara a hostilidade contra a NATO, os Estados Unidos e o Ocidente em geral.

O confronto, reiterou o líder russo, era uma inevitabilidade, algo que iria necessariamente acontecer, ainda que não se soubesse exatamente quando.

Eis o que declarou: “Tudo indicava que seria inevitável um confronto com os neonazis, Banderistas, com os quais contavam os Estados Unidos e os seus parceiros mais recentes”. E continuou dizendo que “o perigo aumentava a cada dia. A Rússia repeliu esta agressão de uma forma preemptiva. Esta era a única decisão correta, e foi uma decisão atempada. A decisão de uma nação independente, soberana e poderosa”.

É interessante ver como, ao arrepio dos factos, a liderança russa continua – na aparência, de modo imperturbável – a justificar a invasão de 24 de fevereiro. E não é menos interessante como continuamos a assistir, aqui e ali, a exposições as mais “objetivas” em que, sempre condenando a invasão, se encontram logo três ou quatro razões que não “justificam” a agressão (isso nunca, nem pensar) mas nos permitem “compreendê-la”, “entender” as suas razões. E, por isso, como é claro, “justificá-la”.

O diabo costuma estar nos detalhes, aqui está nos “enquadramentos”, nas “contextualizações”.

Isto faz-se de uma forma relativamente simples. Os factos concretos principais não se contestam, contornam-se e passa-se logo adiante: anexação da Crimeia, ocupação parcial do Donbass a partir de 2014, invasão em larga escala em 2022. Sim, claro, ninguém discute.

Mas logo se lança a dúvida. Sim, a anexação da Crimeia é criticável. Mas os acontecimentos anteriores, não se esqueça o que aconteceu antes, a ingerência estrangeira contra um líder eleito democraticamente. Ou, é verdade que a Rússia entrou com as suas forças na Ucrânia, mas.... Vem sempre o mas. Mas isto, mas aquilo.

Aquele que assiste a esta profusão de adversativas, já confuso, está há muito perdido no meio de um meandro de factos e factozinhos que desempenham a mesma função no discurso que as bombas de fósforo branco num teatro de operações: primeiro, um brilho muito intenso, depois, uma cortina de fumo que já não permite ver um palmo à frente do nariz.

É importante que existam os mas, digo-o com o à-vontade de saber que a realidade, qualquer realidade, nunca é absoluta; tem sempre matizes. Porém, como neste caso, é possível (e mais do que possível, é dever de consciência) evitar algumas técnicas habituais de desconversa.

A primeira consiste em, apresentado um ramalhete de factos composto para facilitar a nossa tese, estabelecer uma relação quase afetiva com o agressor. A Putin, coitado, não lhe restava outra alternativa. Fez mal, mas o que fez tem de se compreender, sentia-se “objetivamente” ameaçado (é muito importante que se invoque, com frequência, a “objetividade”, “sem subjetividade” e equivalentes). Reagiu com a força, perante aquela “perceção” de ameaça? Reagiu, mas a Ucrânia também provocou.

E o direito, nisto tudo? E a proibição da ameaça ou uso da força, como norma-alicerce do sistema internacional? Isso é uma questão para os políticos e para os juristas, agora impõe-se apenas uma análise serena e qualificada sobre o que está a acontecer (é outra lei de bronze: políticos e juristas não são capazes de análises serenas e “objetivas”, quanto mais qualificadas).

Logo a seguir? Logo a seguir, mais uma bateria de mas, poréns, contudos e não obstantes.

A Ucrânia estava a adotar uma “postura” mais agressiva, e até, imagine-se o topete, tinha dado a entender que pretendia recuperar o território que lhe foi confiscado em 2014; e ainda abusou mais da sua sorte, legislou sobre o assunto. Um absurdo, realmente, esta gente não tem noção das conveniências. Depois, lá está. Depois, lá no fundo, não se pode queixar.

A segunda linha de razões, uma espécie de batalhão de razões reservistas, costuma ser aquilo que aconteceu depois de o então Presidente Yanukovitch ter sido derrubado, em 2014. Tudo, afinal, serve para neutralizar, para amaciar o desvalor das ações da Federação Russa.

Apenas um exemplo, entre tantos.

A 2 de maio de 2014, em plena “revolução” ucraniana, aconteceu um episódio tremendo de violência e de crueldade. Foi ele o incêndio na Casa dos Sindicatos, em Odessa, em que morreram queimadas vivas várias dezenas de pessoas tidas como “anti-Maidán”. O Conselho da Europa constituiu um Painel Internacional Independente, que no seu relatório não considerou que se pudesse dar como provada uma relação de causa e efeito entre aquelas mortes e uma vontade deliberada dos manifestantes que encurralaram aquelas pessoas no edifício. Deu como provada, isso sim, a negligência e omissão dos bombeiros, que tardaram vergonhosos 45 minutos para responderem. Mas, admitamos, este é um crime horrendo imputável àqueles que apoiavam o novo poder – dê-se isso de barato.

Será que este facto “justifica”, sob qualquer perspetiva, os acontecimentos posteriores de 2014, a anexação da Crimeia e a ocupação de parte do Donbass? Justifica, oito anos depois, o que teve início a 24 de fevereiro de 2022? Como é óbvio, não.

É difícil ser-se gelidamente imparcial nestes assuntos, e desconfio sempre dos que anunciam a sua “objetividade” sem mácula. No entanto, há limites que, uma vez ultrapassados, nos desqualificam. Se procurarmos “explicar” ou “compreender”, ou “dar o devido contexto” a atos de anexação e conquista territorial com recurso à força militar, desqualificamo-nos.

Se procurarmos “contextualizar” um ato de agressão em que o agressor, antes de invadir outro Estado soberano e independente, mente de forma reiterada e com particular descaramento, estamos a desqualificar-nos.

Esta é quase uma regra de decência e de higiene, uma espécie de contrato mínimo.

É como dizia um excelente amigo numa ocasião em que, já um pouco desesperado, desistiu de conseguir explicar coisas básicas a um aluno mais avesso ao estudo: “António casou com Berta. Até aqui, percebeu?” Ou, aplicando ao nosso caso: A Rússia invadiu a Ucrânia. Até aqui, percebeu?

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