O anjo das pernas tortas

25 mai 2001, 17:40

«Estrela Solitária - Um brasileiro chamado Garrincha», de Ruy Castro Pode não ter sido o melhor jogador de todos os tempos - há quem garanta que sim, mas dêem-se os devidos descontos às paixões. Seja como for, ainda está para acontecer, e muito menos ser escrita, uma história de futebol mais apaixonante do que a protagonizada por Manoel dos Santos, ao longo de 49 anos de extremos, a meio caminho entre o céu e o inferno, com um rasto de «Joões» espalhados pelo chão.

Pelé, Maradona, Cruyff e Di Stéfano estão alguns furos acima na hierarquia dos imortais de chuteiras. Mas nenhum deles, nem mesmo o argentino do pé esquerdo divino e das narinas de cocaína, constitui uma personagem mais rica e apaixonante do que Manoel dos Santos, o anjo das pernas tortas.  

Em toda a história do futebol, a vida de Garrincha é por certo a que mais suscita a tentação da literatura e da poesia. Vinicius de Moraes dedicou-lhe um soneto, Carlos Drummond de Andrade umas quantas elegias sentidas, Nelson Rodrigues algumas das crónicas mais intensas da sua inesgotável produção, o italiano Andrea Schianchi um dos onze contos do livro Stadio dei Sogni («O último dia de Garrincha») e a lista está longe de esgotar-se aqui. 

«Estrela Solitária ¿ um brasileiro chamado Garrincha» resume uma vida curta, encerrada em Janeiro de 1983, com 49 anos. O álcool ¿ que segundo a autópsia já lhe destruíra parcialmente cérebro, coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino delgado e rins - terminou um paciente trabalho de destruição, cometendo ao mesmo tempo o acto misericordioso de encerrar uma agonia balizada pelas desintoxicações, um princípio de demência e uma solidão cada vez mais angustiante. Mas os episódios que marcam a existência de Garrincha justificam, uma por uma, as 520 páginas desta biografia de leitura surpreendentemente fácil, escrita em 1995 pelo jornalista brasileiro Ruy Castro. 

O trabalho é notável de investigação e rigor ¿ inclui mesmo, em apêndice, a listagem de todos os jogos do homem que entrou para a história como «A alegria do povo» cumpriu com as camisolas do Botafogo, do Corinthians, da Selecção brasileira e, nos anos de decadência, de todos os clubes que lhe oferecessem um contrato necessariamente precário. Mas a personagem ajuda, e o estilo solto da narrativa retira-lhe qualquer carga entediante: mesmo para os não-iniciados, este é um livro que conta de forma magistral uma história com muitas histórias dentro, fazendo perceber um pouco da vida no Brasil à entrada para a segunda metade do século.  

Algumas fotos ajudam imaginar o que seriam aqueles dias da rádio, com Maracanãs lotados para ver um extremo-direito que driblava equipas inteiras e pela primeira vez legitimava as gargalhadas de gozo infantil nas bancadas. «Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irónico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios» escreveu Drummond de Andrade, resumindo os anos felizes da vida do jogador. 

O doloroso resto começou logo depois da conquista do Mundial-62 do Chile, com a paixão avassaladora pela cantora Elza Soares ¿ uma história de amor grandiosa e trágica, como já não se julgava possível no século XX ¿ o acentuar dos problemas relacionados com o álcool, a progressiva perda de encanto pelo jogo, as primeiras angústias económicas e um etc. que durou quase 20 anos com a inevitabilidade das trragédias gregas.  

Mesmo sabendo como acaba a história, não conseguimos parar de ler a descrição da lenta agonia de um anjo torto, feita com um improvável misto de rigor e carinho que resulta numa biografia de referência para tudo o que está por fazer no campo do desporto. Garrinchas é que não há mais nem volta a haver. 

Título: «Estrela Solitária ¿ Um brasileiro chamado Garrincha»

Autor: Ruy Castro

Editora: Companhia das Letras (1996)

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