Ary Zara é português e é o primeiro realizador trans na "short list" para o Óscar de Melhor Curta-Metragem em Imagem Real. As nomeações são conhecidas na terça-feira
Larissa, uma mulher transgénero, veste um vestido justo e pinta os olhos com sombra azul antes de sair para a noite lisboeta. Na Calçada do Combro, onde fala com algumas prostitutas, decide entrar no carro de Cláudio, um homem que gosta de ficar só ali, a observá-las. Larissa tem um sorriso contagiante e faz muitas perguntas; ele não quer conversar. Mas, aos poucos, vai cedendo. Ao longo da noite, ela tenta derrubar os preconceitos dele. Comem, bebem, dançam, trocam confidências e carinhos.
Este é "Um Caroço de Abacate", o filme português, realizado por Ary Zara, que está entre os 15 selecionados que, na terça-feira, podem vir a ser nomeados para o Óscar de Melhor Curta-Metragem em Imagem Real. Não é a primeira vez que um realizador português está nesta lista: Filipe Melo conseguiu-o no ano passado com "Lobo Solitário". Mas é a primeira vez para um realizador transgénero.
O filme tem 18 minutos e está disponível para aluguer no Vimeo por apenas 91 cêntimos. Protagonizada por Gaya de Medeiros e Ivo Canelas, "esta é uma história de amor, a história de um encontro entre duas pessoas", diz Ary Zara à CNN Portugal. O facto de Larissa ser trans traz à história matizes diferentes, mas não altera o essencial: todas as pessoas querem ser amadas. "As mulheres trans têm aparecido bastante no cinema, ao contrário dos homens trans, que são mais invisíveis. No entanto, eu senti que lhes devia uma certa reparação: elas são sempre espezinhadas e maltratadas no cinema. Eu queria mostrá-las com carinho, acolher estas identidades", explica o realizador. Se até aqui as narrativas sobre as mulheres trans têm sido controladas por pessoas cis [cis ou cisgénero - alguém que se identifica com o género atribuído à nascença], Ary Zara procurou "um olhar mais honesto, um olhar de dentro, que não fosse voyeurista".
Cláudio "é um arquétipo, um homem cis, curioso, mas oprimido em relação aos seus desejos e à sua sexualidade". Já Larissa é exatamente o oposto: "Fui beber aos clichés que existem sobre as mulheres trans e tentei contrariá-los", afirma o realizador. Quando começou a construir este filme, Ary sabia que a história de Larissa "não teria violência e iria acabar bem". "Ela tinha de estar em controlo e tinha de ter o que merece."
Para a atriz Gaya de Medeiros, este é "um filme sobre amor próprio", diz à CNN Portugal. "No fim, ao invés de ficar triste por não ter dado certo, Larissa continua a sua vida. Às vezes a gente tenta se legitimar através do amor das outras pessoas, mas ela sabe o seu lugar no mundo, vai continuar a ser generosa e a ter empatia pelos outros, e não vai deixar os seus valores se alterarem." Esse é, explica Ary Zara, o significado da expressão "caroço de abacate": o caroço é a essência. "Larissa tem o seu próprio olhar, não está dependente do olhar dos outros."
Ary e Gaya conheceram-se no Trumps e nunca mais se largaram
Ary Zara tem 37 anos e este foi o primeiro filme que realizou. Na verdade, o cinema não foi um amor à primeira à vista. Sempre ligado a atividades criativas, a sua primeira paixão foi a escrita. "Cheguei a estudar jornalismo durante um ano e odiei, percebi logo que não era por ali que iria perseguir a escrita", conta. Decidiu, então, estudar cinema na Universidade Lusófona, ao mesmo tempo que fazia dança e dava aulas de dança. Depois, aprofundou a escrita de argumento na Universidade do Texas, nos EUA. "A realização acabou por surgir por falta de confiança noutras pessoas para contarem a história como eu a queria contar", assume.
Este filme começou a tomar forma na sua cabeça em 2018. "Mas não foi fácil conseguir financiamento, então o projeto foi sendo alterado ao longo do tempo. Se eu tivesse feito este filme em 2018 teria sido completamente diferente", admite Ary Zara. Mesmo sem experiência de realização, Ary Zara conquistou a confiança da produtora Take It Easy e o projeto conseguiu um apoio de cinco mil euros do ICA-Instituto do Cinema e Audiviosual.
Uma das coisas importantes que aconteceu entretanto foi o encontro com Gaya de Medeiros, na discoteca Trumps, em Lisboa, onde ambos trabalhavam. Ele, fazendo vídeo e luz. Ela, como drag queen. "Encontravamo-nos no camarim e começámos a falar sobre identidade, sexualidade, paixões, sobre tudo. Nasceu ali uma grande amizade", recorda o realizador. Ary tinha feito a sua afirmação de género há pouco tempo, Gaya estava precisamente a iniciar o processo de transição. Mas não foi só isso que os uniu. "Não dá bem para explicar, temos uma química super forte. Somos bastante diferentes e trazemos ângulos muito diferentes, complementamo-nos. Temos crescido juntos", considera ele. "Crescemos juntos enquanto pessoas trans, fazendo perguntas, deixando para trás coisas que não faziam mais sentido. Tem sido muito bonito e recompensador", garante ela.
Bailarina e coreógrafa, Gaya de Medeiros, que tem agora 33 anos, tinha chegado há pouco tempo a Lisboa, vinda do Brasil. "Há cinco anos, o Brasil estava numa fase muito complicada, Jair Bolsonaro foi eleito, estava a ficar um ambiente muito hostil para a comunidade LGBT, sentia-me muito insegura", conta. Além disso, sentiu que precisava de "mudar de vida". "Tinha um lugar estável numa companhia de dança há já alguns anos, não tinha de sair, mas senti que precisava de sair." Em Portugal, começou a trabalhar como drag queen no Trumps enquanto procurava outras oportunidades na dança.
Ary Zara escreveu o argumento a pensar na interpretação de Gaya: "A personagem não é inspirada nela, mas a maneira de falar, sim, o tom, o humor, os trejeitos de Larissa são os de Gaya", explica o realizador. Ela nunca tinha trabalhado como atriz. "Ele apareceu com o argumento para mim e não tinha como recusar", conta Gaya.
A rodagem durou quatro noites, em Lisboa. "Inspirei-me naquilo que gosto de ver no teatro e no cinema, prefiro performances mais naturalistas, sem uma técnica exagerada. E a parceria com o Ivo foi fundamental. O entendimento entre nós surgiu na hora, a ligação era real", garante Gaya de Medeiros. A tal ponto que às vezes se esquecia que tinha uma câmara apontada. No final, descobriu que podia acrescentar às suas paixões mais esta: a representação.
Ao aceitar o papel de Larissa, Gaya fez uma contra-proposta a Ary: fazerem um espetáculo de dança juntos: "O Atlas da Boca", que estreou no Festival Alkantara em novembro de 2021. Depois disso, Gaya de Medeiros entrou no espetáculo "Tudo Sobre a Minha Mãe", que esteve em cena no Teatro São Luiz, e já teve convites para representar noutros filmes e até telenovelas. "Não consegui aceitar porque já tinha outros compromissos com espetáculos de dança", lamenta. Para Ary Zara a primeira experiência como realizador também não poderia ter corrido melhor. Neste momento, não só já está a preparar a sua próxima curta-metragem, onde vai novamente contar com Gaya de Medeiros, como está a escrever a sua primeira longa-metragem.
O apoio de Elliot Page e o caminho para os Óscares
"Um Caroço de Abacate" começou a sua caminhada para o sucesso no Festival IndieLisboa, em 2022, onde ganhou três prémios. Depois, foi distinguido em festivais norte-americanos, canadianos, mexicanos ou indianos. Mas foi em França, no prestigiado Festival de Clermont-Ferrand, que a curta-metragem obteve o maior reconhecimento até à data, ao triunfar nas categorias “queer” e “voto do público.
Já depois de ser anunciada a short list para os Óscares, o ator canadiano Elliot Page juntou-se ao projeto como produtor-executivo. Page viu o filme no festival Outfest, em Los Angeles, e enviou uma mensagem a Ary Zara dizendo-lhe tudo o que tinha gostado. "Eu nem queria acreditar, até pensei que pudesse ser uma conta falsa", conta o realizador. Os dois continuaram a trocar mensagens e, quando foi preciso pensar na campanha para os Óscares e procurar pessoas influentes em Hollywood que se pudessem associar, Ary lembrou-se de Elliot. Na semana passada, Elliot Page esteve em Lisboa para, finalmente, conhecer Ary Zara. "Foi incrível", conta. "O Elliot é uma pessoa super carinhosa, é honesto, acessível. Passeámos por Lisboa, fomos a Sintra e falámos muito, falámos sobre tudo."
A concorrência na categoria de Melhor Curta-Metragem é pesada. Entre os pré-nomeados encontram-se os filmes "Estranha Forma de Vida", de Pedro Almodóvar, protagonizado por Ethan Hawke e Pedro Pascal (e também com o português José Condessa). Outros dos títulos na lista são "The Wonderful World of Henry Sugar", adaptação de Roald Dahl realizada por Wes Anderson para a Netflix, "O Depois", de David Oyelowo (também na Netflix), "Good Boy", realizado por Tom Stuart e protagonizado por Ben Whishaw, e "The Shepherd", realizado por Iain Softley e com a participação de Jon Travolta (está na Disney+).
Ary Zara ainda não acredita que tudo isto lhe está a acontecer. "Tem sido surreal", diz. Nervoso por causa das nomeações para os Óscares? "Nem por isso. Obviamente, queremos sempre o melhor, mas já tem sido tudo ótimo. Fizemos tudo o que podia ser feito." Na terça-feira, Ary vai estar em Itália, a preparar a próxima curta-metragem. "Tenho tanto trabalho, nem dá para ficar ansioso."