Entre a "vergonha” e o “terceiro mundo”. A última fronteira fechada da União Europeia fica entre Portugal e Espanha

6 out 2023, 22:00

Reportagem numa fronteira com hora marcada, que só está aberta durante 36 horas do fim-de-semana, onde um espanhol tem a chave de Portugal em casa

Entre Montalvão, no Alto Alentejo, e Cedillo, na província espanhola de Cáceres, todos dizem que é a única fronteira fechada (e privada) da União Europeia.

O fecho tem, no entanto, excepções aos fins-de-semana, durante 36 horas, para carros, motas e bicicletas, mesmo que muitos GPS nem saibam que a fronteira está aberta ao sábado e domingo. Se for feita a pé, a passagem por cima da barragem que serve de fronteira é proibida.

Todas as manhãs de sábado há um funcionário do ayuntamiento de Cedillo que sai de casa com a chave da fronteira portuguesa para abrir a ligação entre os dois países.  

A história é longa: depois de séculos sem barreiras (nem no tempo das ditaduras em Portugal e Espanha), a fronteira foi de facto fechada a meio da década de 1990, na mesma altura em que no resto da União Europeia entrava em vigor o Acordo de Schengen que terminou com os controlos fronteiriços.

“Aqui fizeram o contrário”, constata Margarida Ribeiro, presidente da Junta de Freguesia de Montalvão (no concelho de Nisa) que se lembra bem de atravessar a fronteira a pé quando era criança.

A última fronteira entre Portugal e Espanha fechada por um cadeado/ D.R



Antonio Riscado, alcaide do ayuntamiento de Cedillo, está no cargo desde 1987 e explica que a livre circulação levou a Iberdrola - a quem o Estado espanhol entregou a concessão da barragem - a temer pelo elevado número de pessoas que poderiam atravessar.  
 
“Podiam perder o controlo e foi quando decidiram fechar, de facto, a barragem”, recorda o alcaide de uma localidade espanhola com pouco mais de 400 habitantes que pela curiosa posição geográfica está encravada entre fronteiras portuguesas e mais perto de duas localidades lusas que de qualquer outra localidade espanhola.

Terras irmãs a hora e meia de distância

O fecho da barragem - com grades e câmaras de vigilância - isolou Cedillo, afastando a localidade espanhola das terras portuguesas com que tinha fortes laços de proximidade: Monte Fidalgo, do outro lado do rio Tejo, em Vila Velha de Ródão; e Montalvão, em Nisa, a seguir ao rio Sever.

Não é por acaso que Cedillo está recheada de habitantes com apelidos de origem portuguesa e a ligação com Montalvão é especialmente forte.

A fronteira, aqui, antes da decisão da Iberdrola, era apenas uma linha imaginária nos povos dos dois lados que a atravessavam sem praticamente notarem que estavam a mudar de país.

Fronteira era atravessada a pé até à década de 1990/ D.R
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Com mais de 80 anos, Isabel Gordinha, natural de Cedillo, conta que sempre falou português com os pais e avós; José Ribero acrescenta que muitos, como ele, são “meios portugueses”.

Margarida Ribeiro, a presidente da junta de Montalvão, fala em duas localidades que são uma verdadeira “família”, nomeadamente pelos frequentes laços familiares provocados por casamentos cruzados ao longo de décadas, sobretudo antes do fecho da barragem. Quase todos têm pelo menos primos do outro lado da fronteira. 

A “família” a uns 15 minutos de distância de carro passou a estar separada, de segunda a sexta-feira, por uma viagem de quase hora e meia por uma longa centena de quilómetros.

A construção da barragem afastou os dois povos, como recordam Manuel Mourato e António Belo, ambos com mais de 70 anos. Até à subida das águas do Sever com o fecho das comportas, o rio passava-se facilmente a pé.  

Schengen fechou a fronteira

Concluída na década de 1970, durante duas décadas a barragem de Cedillo nunca foi um problema. A empresa que explora a infraestrutura deixava passar, a pé, quem pretendia visitar os 'vizinhos' em Monte Fidalgo e Montalvão - ou vice-versa.

O fecho da barragem a meio da década de 1990 - provocado pelo Acordo de Schengen… - mudou tudo.
Há cada vez menos espanhóis a falar português, como explica Juan Angel (natural de Cedillo). Cortaram-se relações e os contactos passaram a estar restritos ao fim-de-semana.  

Ninguém por aqui conhece outra situação idêntica em Portugal, Espanha ou qualquer outro país da União Europeia, um espaço de circulação livre e sem fronteiras, ainda por cima entre duas localidades tão próximas - física e emocionalmente.

“É como se estivéssemos quase na mesma povoação e tivéssemos uma barreira que só nos permite passar aos sábados e domingos”, diz a presidente da junta de Montalvão, Margarida Ribeiro.  

“Vergonha” ou “terceiro mundo”?

As críticas são muitas em Montalvão e Cedillo contra a Iberdrola. A autarca Margarida Ribeiro, por exemplo, defende que a situação “parece quase irreal”, sendo “uma vergonha termos uma fronteira fechada e privada”.

A presidente da Câmara Municipal de Nisa, Idalina Trindade, falava, em 2021, durante uma visita à barragem, numa situação “terceiro mundista”, “quase como se fosse um privilégio passar entre fronteiras”.

Grande parte da população acredita que com algum esforço seria possível encontrar uma solução para ter a fronteira sempre aberta por cima da barragem.

Autarquias portuguesas não recebem nada pela barragem/ D.R

 

Um problema de segurança

Antonio Riscado, o alcaide de Cedillo, admite que ao longo dos anos foi moderando as suas críticas à Iberdrola pois foi percebendo as questões de segurança, acrescentando que é natural que a empresa “não queira perder o controlo sobre a sua propriedade”.

Questionada pela TVI, a Iberdrola responde com os referidos problemas de segurança, como as gruas que se movimentam no topo da barragem para abrir as comportas: "A passagem livre e permanente não permitiria assegurar as condições mínimas de segurança para os trabalhadores, nem para a população que aí fosse circular".

Além disso, segundo a empresa de energia, “as modificações estruturais da barragem não parecem viáveis".
Antonio Riscado recorre à história e sublinha que a barragem foi planeada no tempo das ditaduras de Franco e Salazar que queriam "Portugal e Espanha de costas voltadas”.

O objetivo nunca foi que a barragem fosse atravessada a pé ou de carro, daí já ser bom, para o alcaide de Cedillo, que se possa passar durante os fins-de-semana.

Fundos europeus para Portugal pagam ponte

A solução definitiva está a caminho e será paga com 9 milhões de euros vindos da parte portuguesa do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) da União Europeia, depois de, na última década, Espanha ter deixado cair um projeto para fazer uma ponte e ter falhado uma proposta para fazer obras que permitiriam usar a barragem como fronteira, de forma permanente.

O promotor da futura ponte internacional Montalvão-Cedillo é a Câmara Municipal de Nisa, num projeto totalmente financiado pelo dinheiro europeu, mas ao longo de vários meses a autarquia não respondeu aos pedidos de entrevista. A única resposta enviada pela presidente da autarquia, Idalina Trindade - há cerca de quatro meses - indicava que "os procedimentos para construção da ponte internacional estão em marcha no cumprimento de todas as metas”, mas “não corresponde à estratégia de comunicação da autarquia abordagens soltas na comunicação social".

Ambiente suspende avaliação da ponte

Os prazos previstos na assinatura do contrato com o Governo indicavam que a primeira avaliação ambiental do projeto estaria concluída há cerca de um ano.

A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) revela ao Exclusivo da TVI que o processo de avaliação ambiental fundamental para avançar com o projeto “encontra-se neste momento suspenso".

“Após a apreciação técnica da documentação submetida, considerou-se não estarem reunidas as condições para ser declarada a conformidade do Estudo de Impacte Ambiental, afigurando-se indispensável a apresentação de um conjunto de elementos adicionais”, detalha a APA.

As metas iniciais anunciadas pela autarquia de Nisa e pelo Governo prevêem que a futura ponte esteja pronta durante 2025.  

A ponte internacional tem de ser feita dentro dos prazos definidos por Bruxelas para gastar o dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), sob pena de se perder o investimento.

Antonio Riscado, o alcaide de Cedillo, admite que sem este plano europeu, nascido para combater os impactos económicos da covid-19, nunca existiria dinheiro para fazer, finalmente, a ponte que irá acabar com a última fronteira fechada da União Europeia.
 

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