opinião
Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses

A armadilha da comunicação

10 out 2023, 22:02

É comum ouvirmos amiúde, quando há problemas cujas causas não nos são claras ou das quais não temos consciência, que se tratará de um problema de comunicação. No conto “O Rei vai nu”, de Hans Christian Anderson, dois alfaiates chegam a um reino e oferecem ao rei um traje que, afirmam, é invisível para aqueles que são incompetentes ou estúpidos. O rei, querendo parecer sábio e competente, finge ver as roupas e desfila nu pelas ruas do reino. Os súbditos, também não querendo parecer estúpidos, aplaudem o rei até que uma criança grita: "O rei vai nu!"

À primeira vista, para alguns, pode parecer que o problema é de comunicação: ninguém é capaz de dizer ao rei a verdade. No entanto, o problema real é um ambiente onde as pessoas têm medo de falar abertamente, o que é mais um problema de cultura organizacional do que de comunicação per se. Neste contexto, o problema não é, necessariamente, que as pessoas não saibam como comunicar, mas sim que o contexto não permite uma comunicação honesta e aberta.

Todavia, não sei se será essa a razão para que as organizações tentem, não raras vezes, resolver muita coisa através de estratégias de comunicação. Seja quanto à sustentabilidade, à crise climática ou à saúde mental, muitas são as proclamações e também algumas acções mais “superficiais”.  Tariq Fancy, antigo director financeiro da BlackRock , escreveu num artigo na The Economist, há cerca de dois anos, que “os incentivos das empresas a curto prazo nem sempre vão ao encontro do interesse público a longo prazo. O dilúvio de compromissos não vinculativos assumidos por empresas geralmente tem origem nos respectivos departamentos de comunicação, não nas equipas de operações. Embora os mercados tenham um papel a desempenhar, não podem trabalhar sozinhos.

Em resultado, pouco esforço de ESG afeta deveras as decisões reais de alocação de capital, um pré-requisito para que as promessas das empresas tenham algumas hipóteses de reduzir as emissões no mundo real.”  Tomei conhecimento do artigo através da leitura do livro “Mega-ameaças”, do economista Nouriel Roubini e que, já agora, recomendo. O excerto é utilizado como forma de sublinhar o alerta para a perda de tempo na operacionalização de acções concretas que resolvam  o grande desafio que todos enfrentamos das alterações climáticas. 

Se nalguns casos se trata de uma acção premeditada e calculada do tipo “green washing” noutros, provavelmente a maioria, não é mais do mais um efeito de enviesamento cognitivo – o viés de acção - tendência em acreditar que fazer algo é melhor do que não fazer nada, mesmo quando a ação é ineficaz ou até prejudicial. Isso pode explicar por que as empresas frequentemente optam por soluções de "penso rápido” como workshops de bem-estar ou compromissos não vinculativos de sustentabilidade, em vez de abordar problemas estruturais, de estratégia organizacional, da cultura e das lideranças.

Outro viés útil para entender o comportamento das pessoas e em consequência das organizações é o viés de desconto hiperbólico, onde as pessoas tendem a valorizar recompensas imediatas em detrimento de benefícios de longo prazo. Isso poderia ajudar a entender por que as empresas frequentemente se focam em ganhos de curto prazo, como ações de relações públicas, em vez de investir em mudanças substanciais que teriam um impacto de longo prazo.

O mesmo poderia dizer-se sobre muitas iniciativas que são desenvolvidas por empresas e organizações em geral com o objectivo de responder a necessidades reais das pessoas nos seus locais de trabalho. Depois de um despertar para a dimensão psicológica no trabalho e para o impacto na saúde mental, muitas organizações escolheram a fuga para a frente da comunicação interna para resolver problemas de cultura ou pagar consultas de psicologia aos trabalhadores para resolver problemas de lideranças tóxicas. Já alguém deve ter cunhado o termo “mental washing”, mas pedindo desculpa antecipada pela apropriação do mesmo alerto para os riscos desta prática, nomeadamente a do adiamento e perda de tempo que poderia ser utilizado para a resolução da situação. 

Certamente que, na verdade, muitas vezes não é intencional e sim fruto da falta de literacia. Outras vezes é mais “conscience washing”. O certo é que na verdade poucos perceberam que as pessoas já não querem o mesmo do trabalho e já não estão dispostas a fazer o mesmo no trabalho e a aceitar tudo o que aceitavam no seu trabalho. Por outro lado, os recursos são mesmo limitadores e nem tudo é possível de imediato. Todavia, muitos esperaram muito tempo sem que nada mudasse, outros aguentaram muito tempo o que não era humanamente possível aguentar tanto, poucos questionámos certas práticas e perante o que nos diz a psicologia sobre organização do trabalho há décadas, desvalorizámos, baseados nas nossas crenças e nos casos que nos rodeiam que o contradiziam. A chatice é que a realidade mais tarde ou mais cedo bate à porta para nos pedir contas.

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