Turbulência no Níger, EUA e Europa aos papéis, parcerias em banho-maria e a Rússia e o Irão "a rondar a carcaça". O que se passa no Sahel?

23 mar, 22:00
Níger (AP Photo/Sam Mednick, File)

Com a quebra das relações formais do Ocidente com o Níger, na sequência do golpe militar de julho, a junta no poder está investida em quatro novos parceiros estratégicos, com acordos de segurança e de fornecimento de urânio em marcha ou no horizonte. Há uma semana, os militares anunciaram o fim do acordo de segurança com os EUA, deixando implícita a expulsão dos 1.000 soldados norte-americanos estacionados no país, tal como aconteceu com França, que já retirou todas as suas tropas da ex-colónia. "Tem de haver negociações sérias por parte dos aliados ocidentais, porque isto vai afetar a Europa, que está tão próxima do Sahel quanto os outros países da África Ocidental.”

Quando no final de julho de 2023 o general Abdourahmane Tchiani liderou um golpe militar que depôs o presidente do Níger, Mohamed Bazoum, centenas de pessoas, sobretudo jovens, concentraram-se no centro de Niamei, a capital, para celebrar a tomada do poder. Alguns traziam consigo bandeiras da Rússia, empunhavam cartazes com o nome de Vladimir Putin e entoavam “Wagner, Wagner”, numa referência ao grupo privado de mercenários que apoia as forças russas em vários teatros de guerra, antes de pegarem fogo a carros e pilharem a sede do partido político de Bazoum.

Tchiani justificou o golpe com o facto de o governo não estar a ser capaz de travar a insurgência islamita no Níger e nos países vizinhos, na chamada região do Sahel, a sul do deserto do Saara. Até hoje, o líder deposto continua detido e uma série de desenvolvimentos no terreno tem aumentado os receios de uma espiral de violência na região com impacto no resto do mundo, em particular na Europa. 

O último desses desenvolvimentos teve lugar há uma semana, quando o autoproclamado líder militar nigerino anunciou o fim de um acordo com os EUA sob o qual cerca de 1.000 tropas norte-americanas estão estacionadas no país há vários anos, acusando Washington de “violar” a sua soberania. Contudo, ainda não é certo quando – ou sequer se – os soldados dos Estados Unidos vão mesmo abandonar o Níger. 

“Não há garantias, porque os EUA ainda estão à espera de clarificar o que é que isto realmente significa”, explica à CNN Olayinka Ajala, professor de Relações Internacionais da Universidade de Leeds e consultor do Ministério da Defesa do Reino Unido. “Os Estados Unidos têm uma base no Níger que lhes é muito útil, portanto estão relutantes em sair. A indicação atual é de que as negociações ainda estão em curso.”

A base em questão alberga a maioria dos soldados norte-americanos ainda no país, meses depois de as derradeiras tropas francesas terem sido expulsas pela junta militar de Tchiani. Construída há seis anos, a Base Aérea 201 dos EUA envolveu um investimento de 110 milhões de euros e tem sido usada para operações com drones contra grupos armados ativos no Sahel – como o Boko Haram e organizações filiadas à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Mas como indicava o New York Times há alguns dias, as tropas americanas estão inativas e os drones parados desde o golpe militar de julho.

“O objetivo da política norte-americana não é ajudar a lutar contra grupos armados, mas sim manter o controlo da região e contrariar a crescente influência de países como a Rússia, a China e a Turquia [...] e não há qualquer evidência pública de que as bases americanas no Níger se tenham provado úteis”, escreveu recentemente o colunista Abdoulaye Sissoko num popular site de notícias do Níger, citado pelo NYT. “O cancelamento do acordo de segurança não é propriamente uma expulsão direta da presença militar americana, como aconteceu com os franceses”, acrescenta ao mesmo jornal Hannah Rae Armstrong, analista especializada no Sahel. “É mais provável que esta seja uma tática agressiva de negociação para extrair mais benefícios da cooperação com os americanos.”

"Os EUA não querem competir com os russos no Níger"

Militares liderados pelo general Abdourahmane Tchiani tomaram o poder no Níger a 26 de julho de 2023 (ORTN via AP)

Inadvertidamente, o Níger parece ter-se tornado numa peça fulcral do puzzle geopolítico que opõe os aliados ocidentais à Rússia e ao Irão. E também por isso as autoridades norte-americanas continuam a tentar impedir uma quebra formal das relações com a junta, tendo inclusivamente esperado alguns meses para tomar o passo que outros, como França e a União Europeia (UE), deram logo após a tomada do poder pelos militares – uma condenação formal ao golpe antidemocrático, em tudo semelhante aos que, antes desse, depuseram os governos eleitos do Mali e do Burkina Faso, com as respectivas juntas militares a romperem de imediato os acordos antiterrorismo com o Ocidente.

“Os EUA estão numa posição difícil”, ressalta Ajala. “Especialmente agora que o Níger assinou um acordo de segurança com a Rússia, os EUA não querem competir com os russos no Níger. Mas também é muito difícil manter uma parceria com o Níger, que [a junta] está a questionar na base do que obtém e não obtém.”

Washington apenas classificou o golpe de Tchiani como tal em outubro, três meses depois da deposição de Bazoum, e apenas no contexto desta aproximação russa e de um alegado acordo secreto da junta militar nigerina para fornecer urânio ao Irão – sétimo maior produtor do mundo, o Níger é responsável por 5% do urânio usado a nível global e é o principal fornecedor deste metal radioativo à UE. 

No mesmo mês, recorda o especialista, “os EUA retiraram parte do seu financiamento ao Níger e passaram a limitar a partilha de informações secretas na base do acordo de segurança”. Semanas depois, “em dezembro, uma delegação russa visitou Niamei e, depois disso, uma delegação do Níger visitou a Rússia”.

Com esta quebra nas relações formais dos países do Sahel com o Ocidente, “há agora quatro parceiros em que o Níger está a apostar – Rússia, China, Irão e Turquia”, indica Ajala. “Há a alegação do urânio, no contexto da visita do primeiro-ministro [nigerino] a Moscovo, ao Irão e à Turquia, onde se encontrou com Erdogan. Mas não sabemos se há realmente um acordo, ainda não foi confirmado.” 

Por causa das sanções ao Irão, “os EUA podem suspeitar que o encontro em Teerão teve a ver com isso, mas esse encontro também pode ter estado relacionado com a obtenção de drones para combater a insurgência, uma questão de maior importância para o Níger. Dado que os EUA suspenderam o financiamento e pararam de partilhar informações secretas, o Níger está à procura de novos parceiros e não podemos condená-lo por isso. O problema agora é que os EUA não querem dar fundos nem partilhar informações, mas querem manter a parceria.”

Neste contexto, o foco dos aliados ocidentais deve ser manter vivo o diálogo com o Níger. “Se os EUA querem mesmo manter esta aliança estratégica, devem garantir que é benéfica para os dois lados e abandonar a atitude condescendente”, diz o consultor de defesa britânico. “Os EUA têm de deixar de dar ordens e iniciar um diálogo [com a junta]. A insegurança está a aumentar a cada dia.”

Fim do acordo para controlar migrações

Crianças do Níger fotografadas na Argélia (Anis Belghoul/AP)

A estratégia do Ocidente para a região do Sahel está morta – “e a Rússia está a rondar a sua carcaça”. É desta forma que Will Brown, especialista em geopolítica africana do European Council on Foreign Relations (ECFR), analisa as recentes movimentações no Níger e no resto da África Ocidental, onde se situam alguns dos países mais pobres do mundo. 

Neste momento, também o Mali e o Burkina Faso estão a aproximar-se da Rússia, quer no que toca ao combate à insurgência, quer no que toca à partilha de minerais essenciais para propósitos civis e militares, como desenvolver energia nuclear e produzir drones e outro armamento – nomeadamente o urânio, cujos depósitos foram descobertos no norte do Níger em 1957, três dias depois de o país se ter tornado independente de França. O exemplo do Mali é crasso: com o grupo Wagner ali instalado, os militares malianos apoiados pelos mercenários russos armados com Kalashnikovs têm sido incapazes de controlar o caos na região.

Da parte dos europeus, a estratégia de proximidade ao Níger tem sido baseada no combate aos diferentes grupos terroristas instalados no Sahel e na tentativa de impedir a Rússia de isolar o país, mas acima de tudo num acordo para travar as partidas de requerentes de asilo da Líbia para a UE. “Mas desde o golpe, a resposta europeia tem sido contraproducente”, indica Brown, sustentado por Olayinka Ajala.

“Imediatamente a seguir ao golpe, a relação de segurança com o Níger foi suspensa por França e pela UE sob o argumento de que o país deixou de ser democrático e a Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) chegou a ameaçar com uma intervenção militar.” Em resposta, o Níger congelou a controversa lei 36-2015, implementada no âmbito de uma parceria estratégica com os europeus que, até então, criminalizava o transporte de migrantes de Agadèz para a Líbia e para a Argélia.

Sob este acordo, a UE estabeleceu um Fundo para África no valor de 5 mil milhões de euros, atribuindo mais de mil milhões ao Níger entre 2014 e 2020. Ao longo dos últimos oito anos, o acordo permitiu controlar a chegada de migrantes africanos à UE – o número passou de cerca de 300 mil por ano em 2016 para cerca de 60 mil em meados de julho, precisamente quando Bazoum foi deposto no Níger. 

UE bate em retirada, Itália dá um passo em frente

Giorgia Meloni, primeira-ministra de Itália, com o homólogo nigerino, Ouhoumoudou Mahamadou, numa conferência internacional sobre migrações organizada por Roma uma semana antes do golpe militar no Níger (Gregorio Borgia/AP)

Sobretudo desde que Niamei suspendeu o acordo em novembro, dados compilados pela Organização Internacional das Migrações em vários pontos de passagem no país mostram que as travessias estão novamente em alta – em janeiro, houve um aumento de 98% de partidas do Níger para a Líbia em comparação com dezembro, e de 34% do Níger para a Argélia.

A retaliação europeia chegou no final de janeiro, quando o alto representante diplomático da UE anunciou o previsível fim da sua missão civil no país. “As preparações estão em curso para a retirada da EUCAP Sahel Niger até junho”, disse Josep Borrell no final de um encontro dos ministros da defesa do bloco em Bruxelas. 

Mais ocupados com a guerra da Rússia na Ucrânia e a guerra de Israel em Gaza, a declaração passou despercebida na maior parte dos Estados-membros, à exceção de Itália, um dos principais pontos de entrada de migrantes na UE. “A Itália e a Alemanha estão empenhadas em manter as negociações [com o Níger], em particular Itália, que quer manter o fluxo de migrações controlado em todo o Sahel”, diz Ajala. “Neste ponto, é mais provável que a Alemanha se alinhe com a UE do que Itália. Mesmo que a UE queira suspender [as negociações e missões no terreno], Itália vai querer mantê-las.”

Não foi por acaso que, esta semana, o ministro italiano dos Negócios Estrangeiros anunciou no Senado que o governo de Giorgia Meloni está pronto para retomar a cooperação bilateral com o Níger, depois de uma delegação de diplomatas e militares italianos ter visitado Niamei no início de março. Os encontros, adiantou Antonio Tajani aos senadores, serviram para “delinear um possível reinício da cooperação bilateral” Itália-Níger. 

As ligações entre os dois países, escrevia um site de notícias italiano na quarta-feira, “estão vivas e recomendam-se”. Mas o mesmo não pode ser dito da UE e dos Estados Unidos. E o impacto do congelamento de relações “pode ser muito significativo” para todos, sublinha Ajala, sobretudo no que toca à dissuasão dos grupos terroristas no Níger e países vizinhos e o consequente impacto nos fluxos de refugiados e migrantes.

“Quando essas organizações sabem que estão a ser observadas, é menos provável que orquestrem ataques. Mas se essa dissuasão deixar de existir, se os terroristas circularem livremente, podemos assistir a mais ataques como acontecia há oito anos. Tem de haver negociações sérias por parte dos aliados ocidentais [com o Níger], porque se estes países forem invadidos por terroristas, isso também vai afetar a Europa, que está tão próxima do Sahel quanto os outros países da África Ocidental.”

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