Funcionários da Ethiopian Airlines fogem do país escondendo-se nos aviões em que trabalham

CNN , Gianluca Mezzofiore e Katie Polglase
12 fev 2022, 08:00
Vista de Adis Abeba, Etiópia, a 27 de novembro. Testemunhas e a comissão de direitos humanos da Etiópia acusaram as autoridades de deter pessoas na capital com base na etnia, usando os poderes mais amplos concedidos pelo estado de emergência.

Yohannes e Gebremeskel sabiam que estaria um frio extremo no compartimento de carga do avião Airbus A350 no longo voo desde a capital da Etiópia até à Bélgica.

Porém, os dois técnicos de operações terrestres da Ethiopian Airlines, ambos naturais de Tigré, afirmaram que se sentiam ameaçados pelas autoridades da Etiópia, que não lhes deram alternativa, a não ser esconderem-se no meio de caixotes de flores frescas.

Ambos os homens afirmaram que familiares deles foram detidos sob leis de estado de emergência abrangentes que têm como alvo os tigrínios - e temeram que fosse a vez deles. As leis foram impostas em novembro, quando as tropas do governo da Etiópia combatiam as forças da região do norte de Tigré num conflito amargo que já se arrasta há 14 meses. O governo nega que as leis tenham como alvo um grupo em particular e suspendeu o estado de emergência recentemente.

Deste modo, nas primeiras horas de dia 4 de dezembro, Yohannes e Gebremeskel, ambos com 25 anos, tomaram a decisão apressada de trepar a área de armazenamento de um avião de carga da Ethiopian Airlines convertido que estava num hangar do Aeroporto Internacional Bole de Adis Abeba, a aguardar o voo matinal para Bruxelas, Bélgica.

Como técnicos de operações terrestres da principal companhia aérea comercial da Etiópia nos últimos cinco anos, eles tinham acesso ao compartimento para fins de inspeções de rotina. No entanto, se o seu esconderijo fosse descoberto, enfrentariam um castigo severo, afirmaram. A CNN alterou os nomes dos dois homens a seu pedido por razões de segurança.

Mais de três horas antes da descolagem, eles esconderam-se no frio entre as bagagens da tripulação de cabine, não muito longe do transporte de carga do avião - caixotes cheios de rosas prontas a serem entregues à Europa.

"Corremos o risco. Estávamos -- não tínhamos escolha, não tínhamos escolha, não podíamos viver em Adis Abeba, estávamos a ser tratados como terroristas", explicou Yohannes, que obteve asilo na Bélgica, à CNN, numa das várias conversas por telefone.

Quatro dos seus familiares foram mortos, a sua noiva está presa na região de Afar, na Etiópia, e a sua irmã, grávida de cerca de sete meses, foi detida na casa dele e os seus móveis foram apreendidos, afirmou ele. Yohannes crê que estes assassinatos e estas detenções foram motivados pela sua etnia tigrínia e executados sob as novas leis de estado de emergência da Etiópia. "Não sei onde ela [a sua noiva] está atualmente", acrescentou. A CNN não conseguiu verificar as mortes ou detenções dos familiares de Yohannes.

Uma porta-voz do gabinete do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, fez uma declaração por e-mail à CNN, em que afirma que o estado de emergência foi levantado a 26 de janeiro de 2022.

"O Conselho de Ministros decidiu, hoje, levantar o Estado de Emergência. Indivíduos detidos durante o Estado de Emergência foram libertados em grande número nas últimas semanas pelo setor de segurança, no seguimento de investigações", afirmou a porta-voz Billene Seyoum Woldeyes. "O Estado de Emergência nunca foi promulgado para 'perseguir' qualquer grupo de pessoas com base na sua identidade", explicou.

Os dois homens não são os únicos funcionários da companhia aérea a tentar fazer uma fuga arriscada do seu país de origem nas últimas semanas. No dia 1 de dezembro, pouco antes de Yohannes e Gebremeskel fugirem para a Bélgica, dois outros técnicos da Ethiopian Airlines esconderam-se numa aeronave de passageiros com destino a Washington, DC, confirmou um porta-voz do Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA à CNN através de um comunicado por e-mail.

Yohannes e Gebremeskel decidiram fugir do Aeroporto Internacional Bole de Adis Abeba após relatos de que a segurança estava menos apertada depois da suspensão de dezenas de guardas Tigrínios.

Eles esconderam-se no teto, por cima dos assentos, de acordo com uma fonte da Ethiopian Airlines com conhecimento em primeira mão da investigação interna divulgada posteriormente.

A viagem duraria mais de 36 horas no total, uma vez que o avião voou de Adis Abeba e passou por Lagos, Nigéria, e Dublin, Irlanda, antes de finalmente aterrar no Aeroporto Internacional Washington Dulles em Washington, DC.

Ao chegarem aos Estados Unidos, os indivíduos foram detidos pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA antes de serem transferidos para o Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA.

A CNN também conversou com vários outros funcionários Tigrínios da Ethiopian Airlines que fugiram da Etiópia nos últimos meses por causa dos seus empregos como tripulação de voo. Contaram histórias semelhantes de detenções generalizadas de Tigrínios na Etiópia e de assédio étnico na companhia aérea.

Escondidos por cima da zona de descanso da tripulação

A CNN não conseguiu falar diretamente com os clandestinos que chegaram a Washington, DC, mas a fonte da Ethiopian Airlines afirmou que os dois homens também eram naturais de Tigré.

Um porta-voz do Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA comentou, num comunicado à CNN, que, após um exame de identificação e segurança, agentes da polícia descobriram que ambos "possuíam cartões de identificação de funcionários da Ethiopian Airlines e viajaram clandestinamente com a intenção de pedir asilo nos Estados Unidos."

"Os dois homens etíopes estão atualmente alojados num centro de detenção federal a aguardar uma audiência perante um juiz de imigração", acrescentou o comunicado. "O Serviço de Alfândega emitiu uma penalidade civil à Ethiopian Airlines pela violação de segurança e este foi informado acerca das medidas que a companhia aérea está a tomar para melhorar o plano de segurança da aeronave."

A CNN obteve fotos do interior da aeronave Boeing 777 durante uma inspeção após a fuga. Nalgumas fotos, é possível ver a zona de descanso da tripulação no centro da área de assentos do avião, onde os dois homens entraram antes de levantarem um colchão que revelou um painel de acesso para manutenção.

Uma vista de cima do esconderijo no teto do avião.
O painel de acesso de manutenção que os dois homens alargaram para passarem.

As imagens indicam que abriram um buraco maior no painel para permitir que eles chegassem ao teto do avião. Eles esconderam-se neste local, não muito acima das casas de banho da aeronave, durante mais de um dia e meio. A CNN mostrou as fotografias à Boeing e um representante desta pediu comentários à Ethiopian Airlines.

A fonte da companhia aérea revelou à CNN que creem que o facto de os passageiros clandestinos serem antigos técnicos de manutenção da companhia aérea permitiu que eles soubessem exatamente onde se esconder dentro do avião para passarem despercebidos sem danificar a estrutura da aeronave.

O facto de eles terem as ferramentas necessárias para cortar os painéis pode sugerir que a dupla tinha planeado a tentativa com antecedência, acrescentou a fonte da companhia aérea.

No total, 16 técnicos da Ethiopian Airlines pareciam ter escapado por qualquer meio possível, seja embarcando como tripulação de cabine e saindo do país, ou escondendo-se, afirmou. A CNN não conseguiu confirmar este número.

Para Yohannes e Gebremeskel, a decisão de fugir foi improvisada, afirmaram. Eles apanharam o primeiro voo programado para um país europeu que estava disponível e tiveram de deixar os seus pertences, incluindo os telemóveis que tinham nos cacifos.

Durante todo o voo de sete horas para Bruxelas, eles ficaram sentados na zona de carga do Airbus A350 sem comida e água, no frio gélido, sem o conhecimento dos outros membros da tripulação a bordo.

"Nem tinha roupa nenhuma comigo, estava a usar o uniforme para manutenção [...] ainda estou a usá-lo", afirmou Yohannes.

"Não temos muda de roupa aqui, não temos roupa interior, sapatos, nem sapatos [...] tentámos cobrir os pés e as pernas com o que tínhamos, era o turno da noite, no turno da noite, temos o casaco da tripulação da Ethiopian Airlines", comentou Gebremeskel à CNN, que também obteve asilo na Bélgica.

Não foi assim que Gebremeskel imaginou a sua primeira viagem para fora da Etiópia. Apesar de ter trabalhado durante cinco anos na Ethiopian Airlines, ele nunca tinha embarcado num voo internacional.

Funcionários de companhias aéreas alegam discriminação contra Tigrínios

Muitas pessoas deixaram a Etiópia por terra desde que o conflito começou em novembro de 2020. Em meados de dezembro de 2021, mais de 50.000 pessoas tinham fugido para o Sudão, o país vizinho, segundo dados da ONU. No auge da afluência, "em média, chegavam mais de 1000 pessoas por dia, sobrecarregando a capacidade de fornecer ajuda", segundo um relatório da ONU.

Fotografia de um campo de refugiados em Um Rakuba, Sudão, tirada em agosto. Mais de 50 000 etíopes fugiram para o Sudão desde que o conflito Tigrínio começou no final de 2020, segundo a ONU.

Entretanto, as tentativas de deixar a Etiópia por via aérea através de meios legais tornaram-se cada vez mais difíceis para os Tigrínios, de acordo com funcionários da Ethiopian Airlines com quem a CNN falou.

Vários tentaram embarcar em aviões do Aeroporto Bole, em Adis Abeba, como passageiros legítimos, mas o acesso foi-lhes negado, devido à sua etnia Tigrínia, declararam. Um ex-funcionário comentou com a CNN que havia quatro postos de controlo no aeroporto, onde os passaportes dos passageiros eram verificados antes da partida.

"Eles verificam o local de nascimento e o nome", explicaram à CNN, enquanto recordavam três das suas próprias tentativas fracassadas de sair. Se a pessoa nasceu em Tigré ou tinha um nome Tigrínio, a saída da Etiópia era negada, afirmou o ex-funcionário.

Em consequência, vários funcionários disseram à CNN que escaparam trabalhando a bordo de voos internacionais como tripulação de voo e fugindo depois de a aeronave aterrar no estrangeiro, muitas vezes, quando o destino era a Europa ou os EUA.

A CNN obteve documentos de identificação que confirmam as identidades de todos os quatro homens que viajaram clandestinamente. As trajetórias dos dois voos - o de Bruxelas e o de Adis Abeba para o aeroporto de Dulles, passando por Dublin - também foram verificadas no FlightRadar24.

A Ethiopian Airlines não respondeu ao pedido de comentários da CNN acerca das viagens dos passageiros clandestinos ou das alegações de discriminação contra os Tigrínios.

Esta não é a primeira vez que a Ethiopian Airlines é notícia principal durante o conflito na Etiópia. Em outubro do ano passado, a CNN revelou que a companhia aérea transportava armas entre a Etiópia e a Eritreia no início do conflito em novembro de 2020, um ato que foi condenado pela comunidade internacional como uma potencial violação da lei da aviação.

A investigação da CNN desencadeou apelos de legisladores dos EUA por sanções e investigações acerca da elegibilidade da Etiópia para um programa comercial lucrativo dos EUA. A Etiópia foi expulsa do programa por violações de direitos humanos no início de 2022.

A companhia aérea negou várias vezes o transporte de armas.

"Estávamos a tremer"

Após a aeronave que transportava Yohannes e Gebremeskel aterrar em Bruxelas, os dois esperaram pela oportunidade de chegar ao edifício do terminal.

"Havia dois homens a trabalhar na aeronave. Um descarregava a carga e o outro rondava o avião com uma lanterna", afirmou Yohannes. "Portanto, quando o primeiro estava a descarregar as flores, saltámos para o chão - eu e o meu amigo - saltámos e corremos para o terminal."

Lá dentro, os funcionários deram-lhes água e comida, mas Yohannes e Gebremeskel ainda estavam em choque. "Tínhamos medo de que nos mandassem de volta [...] Os guardas trouxeram-nos chá, mas estávamos ajoelhados no chão, a tremer", acrescentou Yohannes.

Lentamente, eles sentiram-se aliviados, talvez, pela primeira vez desde que descolaram de Adis Abeba.

A decisão de fugir foi motivada, em parte, por relatos de que 38 guardas de segurança Tigrínios foram recentemente suspensos no aeroporto Bole, o que significa que a segurança estava menos apertada do que o normal, explicaram.

Porém, o NISS, o serviço de segurança e inteligência nacionais da Etiópia, ainda estava a revistar a aeronave antes da partida, explicou Gebremeskel, para evitar fugas. A porta-voz do primeiro-ministro etíope, Billene Seyoum, não comentou estas declarações.

A Ethiopian Airlines não respondeu ao pedido da CNN para comentar a situação de segurança no aeroporto Bole.

"Tínhamos algumas ferramentas, tínhamos medo que eles nos apanhassem, porque verificam - o homem do serviço de segurança e inteligência nacional verifica todos os voos antes da partida", afirmou Gebremeskel.

"Estávamos com medo, claro... Tínhamos algumas ferramentas. Talvez descubram que tentamos fugir. Felizmente, não nos encontraram. Se tivéssemos sido encontrados, o castigo seria severo."

Yohannes espera que, na Bélgica, encontre um país que "respeite as minhas exigências, o direito à vida".

Pieter-Jan De Block, advogado deles, confirmou num comunicado à CNN que os seus dois clientes "obtiveram proteção internacional na Bélgica" e que foram libertados do centro onde estavam alojados.

Para Gebremeskel, a realidade é agridoce. Com a sua família ainda longe - os seus pais estão num campo de refugiados no Sudão - e sem dinheiro ou emprego na Bélgica, a vida não é fácil. Embora, agora, ele tenha alojamento, ele passou as duas primeiras noites após receber asilo a dormir numa estação de comboios.

Ele comentou com a CNN que esperava regressar à Etiópia um dia, mas quando o país seja um sítio onde "as pessoas não sejam tratadas de maneira diferente por causa da sua etnia", essa esperança parece muito distante.

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