Um estudo promissor revela que o vírus da gripe pode ser uma arma na luta contra o cancro infantil mais letal

30 jun 2022, 17:34
Marta Alonso, à esquerda, com outros membros da sua equipa na Clínica Universidade de Navarra (CUN, El País)

Os resultados obtidos por uma equipa da Clínica Universidade de Navarra revelam que a injeção do vírus DNX-2401, geneticamente manipulado, ajuda a retardar o desenvolvimento das células cancerígenas e a prolongar a longevidade dos pacientes com um tumor no cérebro altamente agressivo e difícil de tratar

O estudo, publicado esta quinta-feira na prestigiada revista The New England Journal of Medicine, descreve como o vírus da gripe foi modificado geneticamente até adquirir propriedades oncolíticas - isto é, infetar unicamente células cancerígenas - e obter o nome DNX-2401. Os resultados do estudo foram "modestos" e ainda incipientes, mas também promissores. 

Foram monitorizadas doze crianças de vários países, dos três aos 18 anos, que padeciam de um tipo de cancro no cérebro que, para além de raro, é também o mais letal: a perspetiva média de sobrevivência é de "menos de um ano". No editorial do estudo, os investigadores realçam a importância das descobertas neste contexto de "prognóstico desfavorável" em que os estudos são ainda "escassos" e os tratamentos inexistentes.

"Neste momento, não há nada a dar a estes pacientes", explica Marta Alonso, a co-autora, ao El País. "De facto, esta modesta melhoria em relação à sobrevivência, com uma média de 17,8 meses, é o melhor resultado alguma vez obtido num ensaio clínico deste tipo". Dois dos pacientes chegaram a sobreviver por mais três anos, num recorde que abre novas vias de investigação e adivinha, embora timidamente, a possibilidade do desenvolvimento de tratamentos eficazes. 

Mas de que modo é que o vírus inibe as células cancerígenas? A explicação reside nas modificações genéticas implantadas em laboratório pelos investigadores. A primeira modificação obriga o vírus a unir-se seletivamente às integrinas, proteínas que abundam na superfície das células cancerígenas. A segunda faz com que a reprodução do vírus e o surgimento de uma infeção só sejam possíveis se o gene do retinoblastoma (típico de tumores malignos e inexistente em células saudáveis) for ativado.

Foram realizadas biópsias a todos os 12 pacientes, para obter uma mais pormenorizada informação sobre o perfil genético e as vulnerabilidades cancerígenas de cada caso específico. Após esta prática diagnóstica - geralmente evitada, para evitar lesões cerebrais - o vírus foi injetado no local do tumor, numa abordagem semelhante à já utilizada nos principais tratamentos de imunoterapia oncológica.

Os efeitos secundários registados demonstram a segurança do procedimento, com sintomas que se comparam aos da toma de uma aspirina: cefaleias, náusea, vómitos e fadiga. 

Mas são os resultados obtidos que tornam este estudo "um marco importante", como faz notar Álvaro Lassaletta, chefe da unidade de tumores cerebrais do Hospital Niño Jesús, em Madrid. Para além de se ter verificado o retardar do desenvolvimento das células cancerígenas, foi também desencadeada a identificação e a eliminação deste tipo de células por parte do sistema imunitário.

"Nos últimos 50 anos, foram testados múltiplos tratamentos de quimioterapia e nenhum serviu para curar os pacientes. Este estudo demonstra que se pode fazer uma biópsia ao tronco cerebral e aplicar o tratamento. Os efeitos secundários são toleráveis. A sobrevivência também é prolongada, o que é prometedor", explica o médico madrileno. 

Este tipo de vírus, fruto da manipulação humana, já tinha sido desenvolvido há mais de 15 anos por dois médicos neurologistas espanhóis - e verificou, entretanto, resultados igualmente promissores em adultos. A aplicação desta abordagem em crianças - e neste tipo de cancro em particular, raro e muitas vezes negligenciado pela comunidade científica - só foi possível devido a um incentivo de dois milhões de euros por parte da União Europeia, que permitiram a Marta Alonso desenvolver o ensaio clínico cujos resultados agora foram publicados. 

Enquanto os resultados deste estudo se encontram em processo de análise e consideração para futuros tratamentos, outros estudos já começaram a ser desenvolvidos no hospital de Álvaro Lassaletta. A evolução clínica de seis crianças e adolescentes está a ser acompanhada pela comunidade médica, depois de lhes ter sido injetado na corrente sanguínea um vírus modificado associado a células estaminais de dadores saudáveis. "O objetivo é demonstrar que o tratamento é seguro e estudar se é possível aumentar a sobrevivência face a este tumor devastador", finaliza o médico.

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