"É curioso que seja um neoliberal" a dizer aquilo: análise aos políticos que chamam "estagiários" a outros políticos

19 dez 2023, 13:58
Rui Rocha na VII Convenção Nacional da IL (LUSA)

Rui Rocha e Paulo Rangel chamaram “estagiário” a Pedro Nuno Santos: dar uma conotação negativa à palavra é um hábito transversal à sociedade e diz mais sobre a cultura laboral portuguesa do que ao próprio estagiário em si

No espaço de uma semana, os políticos Rui Rocha (líder da IL, na foto) e Paulo Rangel (PSD) chamaram “estagiário” a Pedro Nuno Santos: um numa ótica de que as suas ações no processo da TAP nem por um estagiário seriam feitas, o outro numa perspetiva de aprendiz de António Costa. Mas, apesar de este ser um hábito social - usar "estagiário" com conotação negativa -, serem dois políticos a usar um tom pejorativo e jocoso associado à palavra é "triste", "lamentável" e é também "um espelho da cultura laboral portuguesa".

“É triste que os políticos usem essa expressão num tom pejorativo, mas isso deve-se ao facto de o estágio se ter transformado, por via da precariedade, numa figura pejorativa, de alguém que não sabe, que é novo, esquecendo-nos nós de que muitas vezes é um falso estagiário”, começa por dizer Luísa Veloso, professora associada e diretora do departamento de Sociologia no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.

Já Manuel Carvalho da Silva, sociólogo e antigo secretário-geral da CGTP, foca-se nos protagonistas das declarações, dizendo que “há uma sobranceria inerente a uma perspetiva de classe” em Paulo Rangel e Rui Rocha. “Um bom estágio é um início de um bom percurso profissional”, sublinha Carvalho da Silva. O também coordenador do CoLABOR lamenta que estas declarações tragam “uma carga negativa muito acentuada” à palavra estagiário, intensificando aquilo que, na prática, é a vida de um. “Os estagiários, no formato de estágios moderno, têm sido utilizados para uma intensificação da exploração de quem trabalha.”

Para Luísa Veloso, além de “triste” é até “curioso” ter sido um político próximo de uma postura de trabalho “neoliberal” a fazê-lo, referindo-se a Rui Rocha. “Atendendo aos objetivos de flexibilização, precariedade e liberalização no acesso ao mercado de trabalho, é curioso”, justifica. Mas, independentemente da cor ou espectro político, a especialista diz que esta tendência é também "um espelho da cultura laboral portuguesa", referindo-se aos profissionais que estão ao abrigo de estágios, sejam curriculares ou profissionais, e desempenham tarefas de alta complexidade e responsabilidade sem serem devidamente ou até de todo remunerados. E dar continuidade à conotação negativa associada à palavra estágio apenas perpetua essa imagem, que, depois, pode ter repercussões na vida real.

“É sempre lamentável, porque o que acontece é que as ideologias legitimam muitas coisas e cada vez tenho mais convicção de que aquilo que propagamos do ponto de vista discursivo tem efeitos materiais específicos”, afirma Luísa Veloso, alertando para o risco também de imitação, podendo este tipo de discursos começar a ser usado por outros políticos ou simplesmente dificultar a mudança de mentalidade face ao conceito de estágio e àquela que é a vida profissional do estagiário.

“Quando usamos esses termos nesses termos, significa que estamos a alimentar uma representação que já existe e que foi criada por razões de ordem estrutural e material, e não o contrário, e que depois se transformam em normativos que são eficazes”, alerta a socióloga.

Para Luísa Veloso, esta tendência de dizer a palavra estagiário num tom pejorativo ou jocoso vem sobretudo do facto de o estágio se ter “transformado” numa “condição, numa situação profissional”, em que o estagiário, “em particular o jovem”, desempenha uma atividade profissional precária ou “altamente qualificada e sem ser devidamente remunerado”. E isso, diz, “traduz-se obviamente numa representação pejorativa do estágio”. Já foi diferente, já foi melhor: antes deste contexto de estagiário que nasceu da industrialização, existiram “aprendizes” e o seu papel sempre foi “imprescindível”.

Por definição, estagiário é o indivíduo que faz estágio ou tirocínio, que é como quem diz, o primeiro ensino ou formação, mas a tendência é para dar uma conotação negativa a esta palavra, algo que dois políticos portugueses fizeram estes dias. Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, referiu-se esta manhã a Pedro Nuno Santos como “estagiário” - “Aquilo que aconteceu na TAP, a indemnização por WhatsApp, é próprio de um estagiário”, disse -, algo que Paulo Rangel já o tinha feito, tendo também incluído José Luís Carneiro nessa descrição, dizendo que ambos são “estagiários de António Costa”. 

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