O escândalo e as explicações do Barcelona: perguntas e respostas sobre o Caso Negreira

18 abr 2023, 08:24
Camp Nou, Espanha (futebol) - 99.354 espectadores

Dois meses depois de tornado público o caso, Joan Laporta esteve duas horas a falar sobre o processo de pagamentos feitos durante anos pelo clube a um ex-dirigente de arbitragem

Dois meses e dois dias depois de ter vindo a público aquele que ficou conhecido como Caso Negreira, o presidente do Barcelona dispôs-se pela primeira vez a falar, numa longa conferência de imprensa. Ao longo de mais de duas horas e perante 70 jornalistas, Joan Laporta defendeu que os pagamentos do clube no valor de 7.3 milhões de euros a um antigo vice-presidente do Conselho de Arbitragem ao longo de 17 anos não são um caso de corrupção, eram feitos a troco de relatórios técnicos sobre arbitragem e falou de um «linchamento público» do Barça, disparando em várias direções, com um ataque violento ao Real Madrid pelo meio.

O caso está sob investigação judicial em Espanha e também sob alçada da UEFA. É um processo complexo, com novas revelações a surgirem regularmente na imprensa, e ainda sem desfecho à vista. Juntando os argumentos do presidente do Barcelona ao que já se sabia, perguntas e respostas para enquadrar o que está em causa.

O que é o caso Negreira?

É o processo em torno de pagamentos feitos pelo Barcelona a empresas ligadas a José Enríquez Negreira, enquanto este era vice-presidente do Conselho de Arbitragem da Federação espanhola. A justiça espanhola estima que foram 7,3 milhões de euros ao longo de 17 anos, com quatro presidentes diferentes no clube. Prolongaram-se de 2001 a 2018 e terminaram quando Negreira deixou o Comité Técnico de Arbitragem (CTA).

Como surgiu o caso?

Foi a 15 de fevereiro deste ano que surgiu a primeira notícia, na Cadena Ser, a revelar que estavam a ser investigados pagamentos do Barcelona a uma empresa de Negreira. O caso teve origem numa ação do Fisco lançada em maio de 2019 sobre a natureza dos serviços prestados a empresas de Negreira entre 2015 e 2018 em faturas que o Barça queria deduzir, sem que o clube apresentasse documentação que explicasse o tipo de serviço ou justificasse os pagamentos. A investigação do Ministério Publico, iniciada em 2022, decorre desse processo, depois de um alerta do Fisco para eventuais irregularidades com pagamentos fictícios.

Quem é Negreira?

José María Enríquez Negreira, atualmente com 77 anos, foi árbitro, com mais de uma centena de jogos apitados na Liga espanhola. Depois assumiu como vice-presidente do Conselho de Arbitragem, cargo que ocupou entre 1994 e 2018. Na reação ao caso, o CTA veio a público garantir que Negreira não tinha poder de nomeação dos árbitros, mas a acusação do Ministério Público, divulgada pela imprensa espanhola, diz que era um dos envolvidos na avaliação do desempenho dos juízes. O mesmo disse, por exemplo, Jaume Roures, o influente presidente do grupo Mediapro, garantindo que viu «muitas vezes Negreira no estádio do Barça e que o seu papel era fazer relatórios não para o Barça, mas para o Comité de Árbitros sobre a atuação do árbitro». Negreira apenas prestou declarações no processo tributário, quando disse que o Barcelona o contratou para assegurar «que tudo era neutral» nas arbitragens do clube e que fazia «assessoria verbal». Não foi ainda ouvido no processo judicial, tendo os seus advogados alegado que tinha um princípio de Alzheimer. Há duas semanas, o canal Cuatro encontrou-o, mas ele limitou-se a estas palavras, a dizer que está bem: «Estoy de cine.»

Negreira era o único destinatário dos pagamentos?

Esta é uma das questões centrais do processo. Os pagamentos foram feitos a várias empresas, em alguns casos através de outras empresas com ligações também a Josep Contreras, antigo construtor civil e dirigente com ligações próximas ao Barcelona que faleceu em dezembro passado e cujo papel neste processo seria central, mas ainda está por apurar. Laporta defendeu nesta segunda-feira que Contreras não tinha cargos diretivos no clube, era apenas «membro de comissões sociais». Depois há o filho de Negreira, Javier Enríquez, mais tarde também com empresas em seu nome destinatárias de pagamentos do Barça. Apresenta-se como especialista em «coaching» desportivo e trabalhou com a Federação espanhola e vários árbitros. Foram os seus relatórios que Laporta referiu nesta segunda-feira.

 

O que fazia Negreira para o Barcelona?

Pois, esta é a pergunta no centro de tudo. Joan Laporta quis nesta segunda-feira mostrar que tudo isto diz respeito a um serviço «normal» de relatórios técnicos sobre arbitragem e para isso levou para a conferência de imprensa quatro dossiers, dizendo que continham «629 relatórios técnico-arbitrais, mais 43 CDs e quatro relatórios diversos». Compreendem o período entre 2014 e 2018 e o dirigente diz que falta «documentação física mais antiga, porque normalmente destrói-se ao fim de cinco anos». Portanto, Laporta apenas se referiu a documentos elaborados pelo filho de Negreira, sem se referir a que tipo de trabalho faria o pai, nomeadamente sob a sua presidência – Laporta dirigiu o Barcelona entre 2003 e 2010. «Sempre entendi que o prestador de serviços era o filho», disse: «Prestavam-se uns serviços. Estão documentados. Havia faturas, uns pagamentos via transferência bancária e registados.» Acrescentou que esses relatórios eram enviados à «secretaria técnica do clube». Mas o Barcelona nunca mostrou qualquer contrato relativo a esses serviços. A tese do Ministério Público, de acordo com a acusação, é que havia um «acordo verbal confidencial» para que Negreira procedesse de modo «a favorecer o Barcelona na tomada de decisões dos árbitros». O facto de a investigação também ter apurado que Negreira fazia levantamentos avultados em dinheiro vivo adensa as dúvidas sobre qual era de facto a finalidade dos pagamentos. Laporta comentou agora outro dos cenários que têm sido apontados, o de os pagamentos a Negreira poderem servir para criar um circuito de dinheiro que saía do Barcelona para beneficiar terceiros, defraudando assim o clube. «Nesse caso, se assim fosse, o Barça seria a vítima», afirmou.

Que investigações decorrem?

Está em curso uma investigação judicial, que o procurador-geral colocou sob alçada do departamento anti-corrupção, por se tratar de «delitos de alta transcendência». O caso está desde 15 de março nas mãos de uma juíza de instrução, que aceitou a acusação do Ministério Público. Estão em causa suspeitas dos crimes de corrupção entre particulares de âmbito desportivo, administração desleal e falsificação de documentos e os indiciados são o Barcelona, Negreira, os antigos presidentes Sandro Rosell e Josep Bartomeu e mais dois ex-dirigentes do clube. Joan Laporta e Joan Gaspart, também anterior presidente, não foram indiciados porque no seu caso os factos já prescreveram. As acusações podem implicar penas de prisão de seis meses a quatro anos para personalidades individuais. No caso do clube, podem ir de uma multa a uma suspensão ou, no limite, à dissolução. Vários meios, como o El País, notam que há já um precedente na justiça espanhola de condenação por corrupção com base na intenção, sem que seja necessário dar como provado um benefício concreto a troco de um pagamento - a sentença do chamado Caso Osasuna, em 2020.

O que fez a justiça desportiva espanhola?

A nível doméstico, não existe uma investigação conduzida pelas instâncias desportivas espanholas, porque os acontecimentos prescreveram. A Lei do Desporto, que é recente, prevê um prazo de três anos para a prescrição de infrações muito graves.

E o que fez a UEFA?

A UEFA começou por pedir informações sobre o processo à Liga espanhola. A 23 de março, anunciou a abertura de uma investigação ao Barcelona por «potencial violação do quadro jurídico» do organismo. O caso está nas mãos do Comité de Ética e Disciplina e não há um quadro regulamentar claro sobre o que poderá acontecer. Mas a UEFA pode recorrer a um leque de sanções que vão de uma simples advertência à exclusão de competições. O presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, classificou o caso como «extremamente grave» e garantiu que para o organismo «nada está prescrito». Nesta segunda-feira, Laporta disse que tem estado em contacto com a UEFA e mostrou-se convicto de que só haverá uma decisão quando o Barcelona for julgado. «E como estou convencido de que seremos ilibados, continuaremos com normalidade», disse.

O que diz afinal o Barcelona?

O clube defendeu desde o primeiro dia que o que estava em causa era um serviço de relatórios técnicos sobre arbitragens. Mas adiou explicações, argumentando que estava à espera de um relatório de «compliance» que solicitou junto de advogados externos. Ele conclui, diz Laporta, que «não se identificaram condutas com relevância penal vinculadas com delitos de corrupção desportiva». Tal como Laporta, Josep Bartomeu defendeu que se limitou a dar sequência aos pagamentos que já eram feitos regularmente. Joan Gaspart, sob cuja presidência terão começado os pagamentos, disse que não passou por ele, mas garante que não teria havido nenhuma ilegalidade. Mas os antigos dirigentes não falam a uma só voz. Bartomeu acusou Laporta de ter aumentado as verbas pagas a Negreira durante a sua presidência. Laporta disse agora que isso aconteceu porque na altura havia mais competições para observar. Também evitou responder a várias questões com o argumento de que não pode falar por outros dirigentes e pelo que estes fizeram. Pela sua parte, diz que não viu um conflito de interesses no facto de o clube estar a pagar a um dirigente de arbitragem: «Nós herdámos esta assessoria. Quando tivemos conhecimento dela pensámos que era uma oportunidade de ter estes relatórios feitos por pessoas qualificadas.» De resto, Laporta repete aquela que tem sido a argumentação do clube: que é ofensivo insinuar que as vitórias do Barcelona ao longo destes anos estão de algum modo manchadas por questões de arbitragem e que este é um ataque deliberado ao clube. E ataca diretamente o Real Madrid, que acusa de «cinismo» e de ter sido o «clube do regime» ao longo dos tempos: «Durante sete décadas, a maioria dos presidentes do CTA foram ex-sócios, ex-jogadores ou ex-dirigentes do Real Madrid.»

Porque deixou o Barcelona de pagar a Negreira em 2018?

Essa é outra questão central, ainda sem uma resposta clara. O fim dos pagamentos coincidiu com a saída de Negreira do Conselho de Arbitragem. Bartomeu era o presidente na altura e disse que deixou de pagar porque em 2018 o clube «iniciou uma série de cortes para sanear as contas» e que aquele serviço foi cortado porque «era muito caro». Entre toda a informação revelada, há a este propósito outro dado que complica a narrativa: uma carta enviada por Negreira a Bartomeu em 2019, contestando o facto de o clube ter deixado de pagar e ameaçando revelar «todas as irregularidades» que dizia ter «conhecido e vivido em primeira mão».

 

Quais as reações no futebol espanhol?

Houve uma primeira reação de todos os clubes da Liga, à exceção do Real Madrid, a manifestar repúdio pelo caso, considerando-o «da maior gravidade». Os adeptos também se manifestaram nos estádios. Nos jogos do Barcelona com o Real Madrid para a Taça do Rei e frente ao At. Bibao, no início de março, houve reproduções de notas de 500 euros com a cara de Joan Laporta lançadas para o relvado. O Real Madrid só se pronunciou a 12 de março, já depois de conhecida a acusação, anunciando que pretendia constituir-se assistente no processo. O presidente da Liga, Javier Tebas surgiu desde o primeiro dia a defender que este era um assunto grave e defender a demissão de Laporta se este não desse explicações cabais. O clube assumiu uma guerra aberta com Tebas, que acusou inclusivamente de ter dado informações falsas à justiça – por causa de um documento que teria sido encontrado em casa de Josep Contreras, no âmbito de outra investigação, identificado como «top secret» e com supostas referências a Rosell e Bartomeu. A Federação ainda não tomou posição oficial, mas fez-se assistente no processo, tal como a Liga. Também o Governo espanhol se constituiu assistente no processo, através do Conselho Superior de Desporto.

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