As fronteiras deste enclave são das mais complexas do mundo. Parecem "bonecas russas"

CNN , Miquel Ros
23 ago 2023, 10:00
Contra-enclave de Nahwa Cortesia Miquel Ros

Nahwa é um raro exemplo de um enclave dentro de um enclave dentro de um enclave. Sim, isso mesmo

Ao atravessar a pequena aldeia de Nahwa, no Emirado Árabe Unido de Sharjah, seria difícil reparar em algo de invulgar.

A arquitetura e a paisagem locais são muito semelhantes às encontradas nas montanhas Hajar, uma cordilheira rochosa que se estende ao longo da costa oriental dos Emirados Árabes Unidos e de Omã.

Para descobrir o atributo muito especial de Nahwa, que partilha com apenas um outro local na Terra, terá de olhar atentamente para um mapa. Veja [nas duas imagens em baixo, a primeira mais distante a outra mais aproximada] como aparecem vários círculos concêntricos em forma de donut: eles representam fronteiras nacionais empilhadas umas sobre as outras.

Isso acontece porque Nahwa é um dos dois únicos contra-enclaves que existem no mundo.

O que é um contra-enclave?

Provavelmente, estará familiarizado com o que é um enclave: trata-se de uma parte do território soberano de um país que está totalmente rodeada por terras pertencentes a outro país. Exemplos famosos incluem a Cidade do Vaticano e San Marino, ambos microestados dentro de Itália. Um contra-enclave acrescenta uma camada adicional de complexidade: é um enclave dentro de um enclave.

Nahwa faz parte de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, mas está dentro do enclave omanense de Madha, cujas fronteiras são totalmente delimitadas por três dos emirados: Fujairah, Sharjah e Ras al-Khaimah. É como as matrioscas, as famosas bonecas russas, mas com países.

Madha situa-se a meio caminho entre o continente omanense, a cerca de 50 quilómetros a sul, e o resto da província de Musandam, um enclave de Omã nas margens do Estreito de Ormuz, a que pertence.

Para complicar ainda mais as coisas, além de ser um contra-enclave internacional, Nahwa é também um enclave doméstico dentro dos EAU. Isto porque faz parte do distrito de Khor Fakkan, em Sharjah, que está separado do continente do seu emirado pelo território de Fujairah e Ras-al-Khaimah.

O outro contra-enclave

Então, quando é que a geografia de Nahwa se tornou tão retorcida como o enredo de um filme de Christopher Nolan? Na origem desta complexa configuração territorial está uma decisão tomada pelos habitantes destas aldeias, algures na primeira metade do século XX.

Quando os governantes desta região começaram a consolidar fronteiras para dar origem a Estados-nação modernos e independentes, os habitantes de Madha juraram fidelidade ao sultão de Omã, enquanto os de Nawha optaram pelos governantes Al Qawasim de Sharjah.

As antigas lealdades estão também na origem do único outro contra-enclave do mundo: Baarle-Nassau / Baarle-Hertog, na fronteira entre a Holanda e a Bélgica.

Em 2021, os holandeses deslocaram-se à cidade belga de Baarle para comprar fogo de artifício para o Ano Novo, depois de o Governo holandês ter proibido a sua venda e utilização durante a pandemia de Covid. Foto Dursun Aydemir/Anadolu Agency/Getty Images

Quando, em 1843, a Bélgica e os Países Baixos chegaram a acordo sobre a demarcação da sua fronteira comum, o sector de Baarle revelou-se difícil de ratificar devido aos acordos pré-existentes, que remontavam à Idade Média.

Por conseguinte, a fronteira foi repartida entre os dois países praticamente numa base de propriedade-por-propriedade. O resultado é um intrincado traçado fronteiriço que criou vários enclaves e contra-enclaves, alguns dos quais com apenas alguns metros quadrados de dimensão. Estamos a falar de um verdadeiro arquipélago de enclaves.

A complexidade administrativa de Baarle e Nahwa, no entanto, empalidece em comparação com o que era, até muito recentemente, o caso mais dramático de contra-enclaves em qualquer parte do mundo.

Até 2015, ano em que a Índia e o Bangladesh assinaram um tratado internacional para simplificar a sua fronteira comum, a área de Koch Bihar continha centenas de enclaves, dezenas de contra-enclaves e um caso verdadeiramente único de contra-enclave (também conhecido como enclave de terceira ordem), Dahala Khagrabari. Neste ponto fronteiriço ao estilo bonecos de Matryoshka, uma parcela de terra indiana estava localizada dentro de um contra-enclave do Bangladesh, ele próprio localizado dentro de um enclave indiano no Bangladesh.

Depois de a Índia e o Bangladesh terem trocado de territórios, restou apenas um enclave do Bangladesh, Dahagram-Angarpota, que está ligado ao continente por um estreito corredor terrestre que a Índia concordou em arrendar ao Bangladesh.

A vida em Nahwa

A bandeira dos Emirados Árabes Unidos hasteada em solo de Sharjah, em Nahwa. Cortesia de Miquel Ros

Não há necessidade aparente de um tal corredor em Nahwa, uma vez que não existem barreiras físicas ou controlos de passaportes de qualquer tipo quando se atravessa a fronteira de Omã em Madha e, depois, a dos Emirados em Nahwa. O mesmo acontece se continuarmos para oeste, pois voltamos a atravessar as fronteiras dos Emirados e de Omã antes de voltarmos a entrar no território continental dos EAU.

"Aqui somos todos como uma família", disse-me um habitante local enquanto enchia o depósito na bomba de gasolina de Madha.

Talvez o mais próximo que se chegue de uma manifestação tangível da mudança de jurisdição seja a fila nas bombas de gasolina, que se estendem ao longo da fronteira. O fluxo constante de carros vindos do lado dos Emirados para aproveitarem os melhores preços do combustível faz da bomba de gasolina de Madha um dos locais mais movimentados da cidade.

O traçado da fronteira é, sem dúvida, a caraterística mais distintiva deste lugar e um poderoso atrativo para os visitantes de todo o mundo, mas não é preciso ser uma pessoa tarada por fronteiras para desfrutar de uma viagem a Nahwa e à área circundante.

A paisagem rochosa, quase lunar, deste estreito vale montanhoso faz um contraste interessante quando se conduz a partir da costa densamente povoada e repleta de estâncias balneares, a apenas alguns quilómetros de distância.

A paisagem pode ser majestosa, mas - considere-se avisado - o estado da estrada, nem por isso. Embora esteja em boas condições até chegar a Al-Nahwa, assim que se deixa esta aldeia para trás, ele transforma-se num caminho de terra batida que atravessa um terreno bastante irregular e que, em alguns pontos, é dificilmente transitável por carros normais.

De facto, a rudeza da estrada deve-se, em parte, aos canais de drenagem dos wadi e aos riachos de montanha que atravessam a zona. Foi precisamente a presença de água que tornou possível o florescimento dos palmeirais e da agricultura no fundo do vale - e que também assegurou a habitação contínua desta área durante muitos séculos.

A antiga aldeia de Nahwa foi abandonada na década de 1990. A maioria dos cerca de 300 habitantes do contra-enclave vive atualmente em New Nahwa, uma aldeia moderna construída num terreno mais elevado, a algumas centenas de metros da estrada principal.

Uma fila de bandeiras dos Emirados não deixa dúvidas sobre a soberania do Centro de Arqueologia de Al Nahwa, uma das poucas estruturas que se encontram à beira da estrada quando se percorre os enclaves.

Esta instalação, recentemente inaugurada, tem como objetivo oferecer um vislumbre do património de Nahwa, bem como serviços aos visitantes. A partir daí, vários trilhos levam-no a pontos de interesse histórico nas colinas circundantes, tais como os restos de antigas torres de vigia e algumas gravuras rupestres antigas.

A partir deste ponto, são apenas seis quilómetros e mais um troço de terra omanense até se reencontrar a rede rodoviária dos Emirados Árabes Unidos, na zona de lazer de Wadi Shees e, um pouco mais a oeste, a autoestrada que conduz a outro entreposto multinacional, embora de tipo muito diferente, o contínuo urbano formado por Sharjah e Dubai.

Europa

Mais Europa

Patrocinados