Economistas avaliam BCE: A caminho da estagflação, ataque especulativo dos mercados, causas da inflação escapam

12 set 2022, 21:58
Economistas

João Moreira Rato, Sofia Vale e Ricardo Cabral avaliam as decisões do Banco Central Europeu para combater a inflação. Leia as opiniões dos três economistas

 

A decisão do BCE em subir as taxas de juro em 0,75 pontos base é uma medida adequada ou excessiva face ao efeito combinado que terá na inflação e no crescimento económico?

João Moreira Rato

Penso que esta subida de taxas faz sentido. O BCE tem um objetivo primário que consiste na manutenção da estabilidade de preços.

Para tal estabeleceu como objetivo, alvejar uma inflação de 2% no médio prazo. Dado que a inflação na Europa está neste momento perto dos 9% e que estes níveis de inflação elevados se têm revelados mais duradouros do que se antecipava, é natural que o BCE continue a subir taxas. Isto, até, pelo menos, se começar a sentir o seu impacto na travagem da inflação. Também é natural que, devido à gravidade da situação inflacionária, se aplique um maior travão, através da subida de taxas, no inicio do processo, para tentar garantir a sua eficácia e evitar aumentos mais fortes das taxas de juro no futuro.

 

Sofia Vale

A decisão do BCE era esperada, dada a decisão recente da Reserva Federal americana em proceder da mesma forma.

Neste momento, por toda a zona euro, os níveis elevados de inflação provocam já uma quebra evidente de rendimento que afeta negativamente a procura das famílias e tenderá a contrair o crescimento económico. A redução da procura em princípio provocará a contração da inflação, juntamente com a redução do crescimento económico. Para compensar as famílias, os diferentes governos dos estados-membros anunciaram as suas medidas económicas de resposta à inflação e à crise energética, o que deverá atenuar a quebra na procura.  A medida do BCE vem agora tentar acelerar o ajustamento da inflação (e do crescimento) em baixa, mas arrisca-se a ter custos elevados ao acentuar efeitos recessivos.

A intervenção do BCE, agressiva (0.75 pontos base, uma subida inédita), por um lado, indica não confiar suficientemente no efeito de ajustamento recessivo da inflação e é justificada pela sua subida continuada nos últimos meses e pelo cenário político que se desenha para os próximos meses, por outro lado, parece ser o contraponto aos primeiros paliativos adotados pelos diferentes governos, como se o BCE receasse que estas medidas pudessem desacelerar o ajustamento da inflação.

É preciso ter presente que a guerra na Ucrânia não tem um fim à vista, que o ambiente diplomático internacional está muito tenso e que a União europeia é extremamente dependente do exterior em energia, o que faz antecipar um Inverno muito duro, marcado pela subida dos preços destas matérias-primas.

O BCE está também preocupado com a desvalorização do euro face à intervenção da Reserva Federal americana sobre a sua taxa diretora e o efeito que isto poderá ter sobre o preço dos bens importados.

O problema desta medida (aumento das taxas de juro) é que não incide sobre as causas da inflação, para além de agravar os rendimentos das famílias através dos custos com os empréstimos contraídos, normalmente elevados porque associados a compra de habitação. Aliás, as últimas notícias sobre a evolução da Euribor já deixam antever o problema. Mais, sendo muito provável que os bancos mantenham as taxas que praticam nos depósitos, enquanto aumentam as taxas que praticam nos empréstimos, isto permitirá aumentar os lucros dos bancos, sem criar qualquer retorno para as famílias. Esta situação acentuará um problema que se vem tornando evidente: a capacidade das grandes empresas de tirarem partido da situação de recessão, apresentando mesmo lucros extraordinários.

 

Ricardo Cabral

O BCE está sob um ataque especulativo dos mercados, por vários motivos, como por exemplo, a elevada taxa de inflação, o aumento das taxas de juro de referência nos EUA, a crise energética e das cadeias de produção na Europa na sequência do conflito (económico) com a Rússia, os riscos crescentes de desintegração da Área do Euro e a perceção que o BCE tem cometido erros graves na implementação da política monetária e que está inseguro sobre como reagir à atual crise.

Parece-me que o Conselho do BCE considerou que os mercados exigiam um aumento significativo das taxas de juro, sem o que o ataque ao BCE se agravaria.

Parece-me ainda que o Conselho do BCE acredita que a política monetária pouco pode fazer e será ineficaz para controlar a espiral de preços da energia e dos alimentos, porque os preços desses bens são determinados nos mercados internacionais.

A taxa de juro de referência do BCE ainda é baixa – 0,75% para os depósitos da banca comercial e 1,25% para os empréstimos do BCE à banca comercial –, mas a expectativa é que o BCE continue a aumentar as taxas de juro nos próximos meses. As taxas Euribor que servem de indexante a muitos empréstimos bancários têm vindo a aumentar muito rapidamente.

Contudo, o Conselho do BCE está a aumentar as taxas de juro num contexto em que as economias da Área do Euro, particularmente do norte da Europa, estão a sofrer um choque adverso muito significativo, devendo entrar em recessão em 2022. É possível até que a Área do Euro entre em recessão ainda em 2022.

Note-se ainda que dificilmente a alta das taxas de juro será eficaz na redução da taxa de inflação, que depende muito mais da evolução do mercado da energia e do desenvolvimento da crise geopolítica entre Ocidente e Rússia.

Finalmente, é provável que os mercados sintam a fragilidade do BCE e que considerem que o aumento da taxa de juro de referência é insuficiente, resultando num agravamento das taxas de juro das dívidas soberanas dos estados-membros e numa depreciação ainda mais significativa do euro face ao dólar.

Não é de esperar que esta política monetária tenha um efeito significativo na taxa de inflação, mas terá certamente um efeito negativo no crescimento económico.

A revisão em alta das estimativas da inflação por parte do BCE é um sinal de que a subida dos juros não está a surtir o efeito desejado?

João Moreira Rato

Na realidade as taxas ainda mal subiram. Penso que é mais um sinal de que BCE antecipa uma inflação mais duradoura do que antecipava anteriormente. O grande risco é que estas taxas de inflação elevadas se cristalizem em expectavas de inflação muito altas por parte dos agentes económicos. Estas vão se exprimir em atualizações salariais, de preços e de rendas, mais elevadas, que desencadeiem uma espiral de inflação que será mais difícil de contrariar no futuro.

 

Sofia Vale

A subida dos juros, como referi anteriormente, é uma medida que tem o efeito de contrair a procura. Ajuda a economia a desacelerar, mas é impotente perante a guerra e o efeito decisivo que esta tem na evolução dos preços das matérias-primas e, por intermédio destes, nos preços em geral.

Em minha opinião, a revisão em alta das estimativas da inflação pelo BCE reflete o cenário macroeconómico que se desenha para os próximos meses no contexto de agravamento do conflito político e escassez de matérias-primas. Refiro-me aqui à perspetiva de que a guerra irá continuar, não se sabe por quanto mais tempo, e aos desenvolvimentos recentes nas relações entre a Rússia e o Ocidente, patentes, por exemplo, na resposta de Putin às sanções previstas pela União Europeia às importações de crude russo. Se o euro desvalorizar face ao dólar (o que também depende da intervenção da Fed), estas matérias-primas serão importadas a custos mais elevados, agravando o problema.

O BCE faz assim uma revisão prudente da inflação que lhe permite também justificar a dimensão da sua intervenção, sabendo que, por muito que suba a sua taxa de juro, não conseguirá resolver o problema político.

 

Ricardo Cabral

Não me parece. As estimativas da inflação do BCE têm sido sistematicamente mais otimistas do que se veio posteriormente a verificar. O BCE deve estar apenas a atualizar as suas estimativas para as ajustar à evolução mais desfavorável (do que o esperado) da taxa de inflação observada.

 

Nas previsões do BCE, no cenário adverso, prevê-se uma recessão em 2023 com uma inflação de 6,9%. Estamos a caminhar para uma situação de estagflação?

João Moreira Rato

Claramente na Europa estamos a caminhar para um cenário de estagflação devido ao impacto que a guerra na Ucrânia vai ter na travagem da atividade económica, simultaneamente ao efeito das subidas de taxas necessárias para que o BCE cumpra o seu mandato de estabilidade de preços. Esses é o cenário mais provável para o ano que vem.

 

Sofia Vale

Os valores das taxas de juro afetam também as empresas, sobretudo as que dependem de financiamento para manter a sua atividade, podendo torná-la incomportável e levando a que declarem falência. A verificar-se este quadro, teremos aumento do desemprego, agravando a recessão. Se, por força da guerra, a inflação não se reduzir, verificar-se-á estagflação.

Do ponto de vista económico, uma intervenção de política monetária para controlo da inflação tende a causar recessão económica. É uma situação ingrata porque os mecanismos de intervenção não estão desenhados para lidar com estas situações. Por isso, muitos economistas referem o papel do Banco Central em “ancorar as expectativas da inflação”. Mas, mais uma vez, estas expectativas estão “ancoradas” nas notícias sobre a guerra.

E, para deixar uma nota de otimismo neste cenário de grande incerteza: uma inflação de 6,9% está 4,9 pontos percentuais acima dos 2% definidos como meta a atingir pelo BCE, mas está, no entanto, longe dos dois dígitos da década de 1970 e 1980. Para os economistas, isto é um sinal de que, apesar de tudo, o trabalho do BCE está a ter alguma eficácia.

 

Ricardo Cabral

De facto, esse parece ser um cenário provável. Mesmo que o BCE não aumentasse as taxas de juro parece certo que o atual choque energético terá efeitos recessivos ao forçar o encerramento de numerosas indústrias e pequenos negócios. A este choque adverso, soma-se agora o efeito recessivo do aumento das taxas de juro de referência do BCE e sobretudo o efeito da expectativa que o BCE vai ser forçado a aumentar mesmo muito a taxa de juro de referência, o que levará à retração por antecipação do consumo e do investimento privado nomeadamente do investimento no sector imobiliário.

Por conseguinte, um cenário de recessão e de inflação elevada na Área do Euro parece provável.  

A economia portuguesa acabou de registar um desempenho histórico no primeiro semestre de 2022, com o PIB a crescer 9,4% em termos reais em relação ao semestre homólogo de 2021. As exportações de bens e serviços cresceram 40,9% em termos nominais no mesmo período (22,7% em termos reais).

Nestas circunstâncias, parece pouco provável que a economia portuguesa entre em recessão ou em estagflação em 2022. Contudo, uma pequena economia aberta como a economia portuguesa será afetada pelo andamento das economias da Área do Euro em 2022 e 2023 e esse cenário parece assim possível também para Portugal a partir de 2023.

A questão fundamental é o que acontece aos preços de energia. Se estes vierem a cair em 2023, a economia portuguesa poderá escapar a um cenário de estagflação.

 

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