opinião
Correspondente nos Estados Unidos da América

Uma guerra perigosa, sem canhões nem mísseis

15 mai 2022, 18:14

Para além da guerra da Rússia contra a democracia na Ucrânia e na Europa, há uma guerra intensa, e potencialmente mais perigosa, contra a democracia nos Estados Unidos.

A revista americana Rolling Stone revelou, recentemente, que o então presidente americano, Donald Trump, inquiriu várias vezes a sua equipa de segurança nacional sobre a possibilidade de a China fabricar furacões e os lançar em direcção os Estados Unidos.

Todos sabemos que Donald Trump é um imbecil. E ignaro. Antes de abanarmos a cabeça e soltarmos a justificada gargalhada lembremos que ele esteve à frente do governo da maior potência mundial e não desiste de regressar. Esse é o perigo.

Num livro acabado de publicar, o penúltimo ex-secretário a Defesa de Trump, Mike Esper, revela que o então presidente quis chamar o exército para disparar sobre as pernas de manifestantes que protestavam contra o racismo; disparar mísseis sobre laboratórios ilegais de droga, no México, alegando que ninguém saberia quem foi; e chamar ao activo dois generais na reserva, que o criticaram, apenas para os sujeitar a um julgamento militar.

Pior do que um cretino, é um cretino perigoso.

Sobretudo, quando é auxiliado nas suas aspirações a um regresso à Casa Branca por legisladores, governadores e outros responsáveis políticos republicanos que, servindo-se das maiorias nas legislaturas estaduais, alteram as leis eleitorais, numa tentativa de tornar realidade o governo pela minoria.

A Constituição americana, do Séc. XVIII, dá aos estados a autoridade para organizarem eleições no seu território. Também permite ao Congresso a regulamentação das eleições*.

Mas no sistema americano há duas câmaras parlamentares: a Câmara dos Representantes, onde a representação é proporcional, como na Assembleia da República, e o Senado, onde cada Estado tem dois votos. A Califórnia, com 40 milhões de habitantes, tem a mesma representação que o Wyoming, com 600 mil.

Quando os democratas na Câmara dos Representantes aprovam leis reforçando o direito universal de voto e a democracia, o Senado**, onde com algumas excepções é necessária uma maioria de 60%, rejeita as medidas. Enquanto os democratas não controlarem 60 votos no senado, uma minoria republicana representando uma minoria da população, impõe a sua vontade à maioria.

O Senado é, também, o órgão que confirma as nomeações presidenciais para o Supremo Tribunal, onde os republicanos conseguiram, antes da eleição de Biden instalar uma maioria ultraconservadora, alheia à maioria do país.

E quando chegam ao Supremo queixas sobre a aplicação das leis eleitorais, os acórdãos do tribunal mais alto nos Estados Unidos vão há uma década no sentido de enfraquecer o direito de voto.

A Constituição americana não diz explicitamente que os Estados Unidos são uma democracia e o Supremo Tribunal americano, dominado por ultraconservadores, tem progressivamente imposto interpretações “originalistas” do documento redigido no Séc. XVII. Cingindo-se à interpretação literal de um documento com mais de dois séculos, o Supremo estrangula a democracia.

O fundamentalismo do tribunal que protege as leis que depreciam o direito ao voto, constitui uma verdadeira guerra contra a democracia que gera menos atenção porque não se trava com misseis e canhões. Mas não é menos perigosa. O que passava por democracia no Séc. XVIII não chega para o Séc. XXI.

 

* A lei eleitoral actual data do Séc. XIX, actualizada, parcialmente, em 1973.

** As leis americanas carecem de aprovação nas duas câmaras, em versão exactamente igual, antes de serem promulgadas pelo Presidente.

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