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Diretor executivo CNN Portugal

A mulher que mudou toda a política sem querer

17 jan 2022, 08:42

Nada disto era suposto acontecer, ninguém o previu nem adivinhou. Mais eis-nos no início da campanha para umas eleições que se anteciparam depois de uma cadeia de acontecimentos que começou com um bater de asas de borboleta para que todos olharam mas ninguém viu. Quando uma mulher foi às compras

Não é sina, é hábito: em 22 governos constitucionais, só seis chegaram ao fim da legislatura - 16 caíram pelo caminho. Como caiu este? Com o chumbo do Orçamento. Mas não se apresse na identidade do causador: se Costa, Jerónimo, Catarina, Rio ou Marcelo. Antes de tudo isso houve uma borboleta que, ao bater as asas, desencadeou uma sucessão de acontecimentos que acabou neste sismo político. Foram umas compras, de uma mulher com pouca importância política e de que já poucos se lembram: Margarida Martins.

É só uma tese, impossível de provar, e o governo formalmente nem caiu, há de governar mais umas semanas. Mas mesmo que Costa ganhe, já não será o primeiro primeiro-ministro a entrar e sair da chefia do governo cumprindo todas as legislaturas para que tomou posse. Nenhum até hoje o conseguiu. Costa, Passos, Sócrates, Guterres e Cavaco passaram todos por eleições antecipadas. E neste início de campanha de eleições antecipadas, é bom perceber como pequenos atos provocam grandes factos. E porque falham os analistas. Umas compras num mercado foram o bater de asas da borboleta que, usando a metáfora da Teoria do Caos, causaram um tornado na política em Portugal.

 

Prólogo: 19 de junho, 3, 10 e 17 de julho. A presidente da junta vai às compras

Margarida Martins vai às compras no mercado de Arroios desconhecendo estar a ser filmada nestas quatro ocasiões. É presidente da Junta desde 2013, pelo PS, nesta freguesia com cerca de 27 mil eleitores, mas nestes vídeos é ela a freguesa de várias bancas, onde escolhe produtos sem que se veja Margarida pagá-los.

 

1º movimento – 23 de setembro: o vídeo a três dias das autárquicas

Faltam três dias para as eleições autárquicas quando a Sábado publica uma reportagem sobre Margarida Martins, incluindo o vídeo com as imagens de junho e julho, noticiando as compras alegadamente não pagas, mas também funcionários da Junta ao dispor e uma penhora por dívidas à Segurança Social. Fernando Medina, que lidera todas as sondagens para a Câmara de Lisboa, defende Margarida Martins, mantendo a “confiança pessoal e política”.

 

2º momento – 26 de setembro: derrota de Medina, a vitória de Moedas e de… Rio

Contras as sondagens, Moedas vence as autárquicas na Capital. Mas nenhuma sondagem fez inquéritos naquela sexta e sábado em que o vídeo de Margarida Martins teve audiências frenéticas nas TV e redes sociais. É impossível medir, mas não é muito arriscado sugerir que o vídeo custou a eleição a Medina. O candidato do PS perdeu para Moedas por apenas 2.299 votos, sendo que só em Arroios o PS teve menos 1.839 votos do que quatro anos antes.

A vitória de Moedas é também a vitória de Rui Rio. O PSD ganha mais 16 câmaras, mantendo-se como o segundo partido mais votado, atrás do PS, que perde 12. Mais do que o número de câmaras, é a vitória em Lisboa que faz de Rio o vencedor da noite.

Não era o que se previa. Tanto que, no próprio PSD, Paulo Rangel tinha tudo pronto para desafiar a liderança de Rio, depois do que esperava ser um mau resultado nas autárquicas. Chegou a supor-se que desistiria. Insistiu: a 15 de outubro, duas semanas e meia após as autárquicas, Rangel anunciará oficialmente a candidatura no PSD.

 

3º momento – Rio anuncia chumbo ao Orçamento do Estado

No exato dia em que Paulo Rangel anuncia a sua candidatura ao PSD, Rio revela que irá votar contra a proposta do Orçamento do Estado, a 12 dias da sua votação. E diz que “há 50% de hipóteses de haver crise política”.

Esta tese do “bater das asas da borboleta” torna-se agora mais controversa: creio que Rio anunciou o chumbo ao OE por causa da disputa com Rangel, que fazia parte da linha do PSD que acusava Rio de ajudar António Costa na governação. Para não dar trunfos a Rangel e segurar-se na liderança do partido, Rio distanciou-se do PS, anunciando antecipadamente o voto contra ao OE.

Esta decisão trocou as voltas ao governo. Até esta altura, fontes bem colocadas no PS falavam tranquilamente do Orçamento, acreditando que o PCP acabaria por viabilizá-lo, mas também dizendo que havia um plano B, o de Rio viabilizar o documento em nome do interesse nacional e da estabilidade em tempo de pandemia. Esta convicção do PS nunca foi oficial, claro. Mas no dia 15 de outubro, acabou-se o plano B.

 

4º momento – 27 de outubro: OE chumbado, eleições antecipadas

Não era bluff. Basta ler os jornais de então ou ouvir os analistas, até três ou quatro dias antes, quase ninguém acreditava no voto contra do PCP. Assim acontece. Pela primeira vez em democracia, um Orçamento é chumbado.

Ninguém quis ficar como pai do chumbo, para evitar o ónus da instabilidade. Mas as autárquicas não terão sido indiferentes: a CDU perdera mais cinco câmaras, ficando com 19, o que deu força à linha interna do PCP que é contra a “geringonça”, o que fez o Comité Central decidir chumbar o OE, talvez impondo a decisão a Jerónimo de Sousa.

 

5º momento – 27 de novembro: Rio vence as diretas no PSD

É de novo contra as expectativas dos comentadores que Rio vence Rangel. Vence com base já não de saber quem será o melhor líder do PSD, mas sim o melhor candidato às legislativas. E Rio vinha galvanizado pela vitória nas autárquicas.

Marcelo, que esticou o prazo legal ao máximo, anunciará a dissolução do Parlamento apenas a 5 de dezembro, marcando eleições para 30 de janeiro. 

 

Epílogo – 30 de janeiro: eleições antecipadas

Daqui a duas semanas teremos um vencedor das eleições legislativas, embora não necessariamente logo um primeiro-ministro.

Esta tese da “borboleta Margarida” é uma leitura especulativa dos acontecimentos, que serve apenas para tentar explicar por que razão analistas e comentadores (e até sondagens) falharam tanto nas suas previsões. O consenso era de que Medina ganharia e perdeu para Moedas; a larga maioria não acreditou no chumbo do OE e ele foi chumbado; muitos deram Rangel como vencedor e ele perdeu para Rio. A Teoria do Caos, de Edward Lorenz, não postula que os acontecimentos são aleatórios, mas que pequenas variações iniciais introduzem instabilidade e retiram linearidade aos acontecimentos.

Sem as compras de Margarida Martins, Medina não teria perdido para Moedas, Rio não teria saído vencedor das autárquicas, talvez viabilizasse o Orçamento ou, mesmo que não o fizesse, poderia teria perdido para Rangel. E, hoje, a política e as lideranças partidárias seriam diferentes, teríamos outros reis mortos (Medina, Rangel... Costa?) e outros reis postos (Moedas, Rio... Pedro Nuno Santos?).

Não pretendo convencer ninguém desta tese. Pretendo sim argumentar que o futuro não é linear, que há pequenos fatores que têm grandes consequências, que não somos adivinhos e que muitas análises falham por replicarem padrões passados desvalorizando fenómenos que os alteram - e talvez por darem ouvidos de mais à bolha política que fala ao telefone e olhos de menos ao que se passa nas ruas, nos campos, nas cidades.

E nos mercados.

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