Demissão de Costa baralha futuro da investigação ao primeiro-ministro (que fica nas mãos do presidente do Supremo)

10 nov 2023, 08:00
António Costa apresenta a demissão (Lusa/ José Sena Goulão)

Enquanto estiver no cargo, a investigação fica no Supremo Tribunal de Justiça, mas quem decide o futuro da investigação a António Costa é o presidente do Supremo. Processo pode continuar a ser investigado nesta instância ou baixar à primeira instância

Na terça-feira, as buscas e detenções no âmbito do processo do lítio e hidrogénio verde, acabaram por revelar a existência de um inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça visando o primeiro-ministro, António Costa. Facto que levou ao seu pedido de demissão. E é o presidente desta instância que vai decidir o futuro desta investigação. A CNN Portugal falou com dois juízes que explicaram o que está em causa e, apesar de terem visões opostas, ambas são possíveis de acontecer.

Perante a existência de suspeitas de crime, devido ao cargo que ocupam, cabe ao Supremo Tribunal de Justiça investigar o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro. Nestes inquéritos “o juiz de instrução é o presidente do Supremo”, explica o Juiz Desembargador jubilado Eurico Reis à CNN Portugal.

Mas não é o juiz que faz a investigação: “Quem faz a investigação são os procuradores do Ministério Público que trabalham junto do Supremo Tribunal de Justiça. Não é o DCIAP. Quem define a estratégia da investigação e a recolha de indícios são estes procuradores. Quando eles precisam de realizar algum ato intrusivo, relativamente ao direito à liberdade dos suspeitos, ou outros bens essenciais, é quando precisam de autorização do juiz. Sejam buscas ou escutas, por exemplo”, explica.

Mas não só. Segundo este Desembargador, por exemplo, até busca ao gabinete de António Costa, em São Bento, apesar de o visado ser o seu chefe de gabinete – Vítor Escária – terá sido autorizada pelo presidente do Supremo, por ser a residência oficial do primeiro-ministro.

E quando António Costa deixar de ser primeiro-ministro? A demissão de António Costa pode, de facto, fazer o processo baixar à primeira instância, defende Eurico Reis: “Esta situação excecional tem que ver com o exercício do cargo, a dignidade do cargo”. Ou seja, se “um cidadão deixa de ter o cargo”, deixa de ser necessário continuar no Supremo.

Por enquanto, tudo permanece igual. Apesar de estar demissionário, António Costa “ainda é o primeiro-ministro”.

Independentemente do cenário, seja através de novas eleições, ou de outro governo sugerido pelo PS e aceite pelo Presidente da República, só quando “António Costa deixar de ser primeiro-ministro em exercício, é que o processo baixa”, clarifica.

Investigação a António Costa pode ficar no Supremo

Já outro Juiz Desembargador ouvido pela CNN Portugal, que já exerceu funções no Supremo Tribunal de Justiça, e preferiu não ser identificado, tem outra opinião. Afirma que o inquérito a António Costa pode continuar no Supremo Tribunal de Justiça e que, mesmo com a demissão, não tem de ir para a primeira instância. E porquê? “Porque não pode haver desaforamento”. E o que significa desaforamento? A deslocação de uma causa de um tribunal competente para outro.

O processo chega a esta instância superior devido às funções do visado e as suspeitas ocorrem no exercício dessas funções. A indicação que existe é que os inquéritos permaneçam onde começaram.

E no caso de haver uma acusação, para o titular de qualquer um destes cargos já referidos, o julgamento também seria realizado no Supremo Tribunal de Justiça.

Quanto à investigação em si a descrição do processo é igual. O processo é levado a cabo pelos procuradores do Ministério Público que exercem funções no Supremo Tribunal de Justiça e sempre que necessários as diligências são autorizadas pelo presidente desta instância. 

Há coisas que podem ser delegadas, mas outras não: “No caso da detenção de um primeiro-ministro, teria sempre de estar presente o presidente do Supremo”. Na verdade, o processo corre os mesmos trâmites que qualquer outro processo.

Mas uma eventual decisão de fazer baixar uma investigação a uma primeira instância, teria sempre de ser tomada pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

"Competência do tribunal fixa-se no momento em que a ação é proposta"

João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, explicou à CNN Portugal que “não obstante todas as dúvidas que têm sido levantadas, nos termos do art. 38º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, n.º 1, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), a fixação da competência ocorre no momento do início do processo”. Ou seja, onde começou é onde deve ficar.

E recorda, por exemplo, “um acórdão do STJ de 09-02-2017 [proferido no processo 32/14.1JBLSB-P.L1-A.S1], que diz que “competência do tribunal fixa-se no momento em que a ação é proposta”. Mesmo assim reconhece que poderá sempre haver uma interpretação diferente perante a lei.

Recorde-se que a investigação a António Costa tornou-se pública no comunicado divulgado pela Procuradoria-Geral da República, no âmbito das diligências no processo do lítio e hidrogénio verde. Um único parágrafo, o último do comunicado, acabou por levar o primeiro-ministro a apresentar a sua demissão:

“No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente.”

Além disto, pouco mais se sabe. O nome de António Costa terá sido utilizado pelos suspeitos da investigação ao processo do lítio e hidrogénio verde, mas ele próprio – que não era o alvo da escuta – terá sido escutado a falar com os suspeitos. Estas são as conversas que o presidente do Supremo já terá ouvido. Algumas terão sido validadas e outras destruídas.

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