O que fazer se houver um ataque da Coreia do Norte? É isso que americanos e sul-coreanos estão a treinar

22 ago 2022, 05:21
Militares da Coreia do Sul

Há anos que não havia tantas tropas dos EUA e da Coreia do Sul em exercícios militares conjuntos. As manobras decorrem até 1 de setembro e envolvem meios terrestres, aéreos e navais. Pyongyang diz que são treinos para uma invasão do Norte e promete retaliar

A Coreia do Sul e os Estados Unidos iniciaram esta segunda-feira os maiores exercícios militares conjuntos dos últimos anos, num momento em que as tensões na península coreana voltam a causar grande preocupação, com as ameaças do Norte a subir de tom, acompanhando um ritmo sem precedentes de testes de mísseis de curto e de longo alcance, incluindo uma nova geração de mísseis balísticos intercontinentais. 

Os exercícios Ulchi Freedom Shield (UFS) deverão decorrer até 1 de setembro, envolvendo meios terrestres, aéreos e navais, e um grande número de soldados norte-americanos e sul-coreanos. Nem o Ministério da Defesa da Coreia do Sul e os chefes de Estado-Maior conjuntos comentaram o número de tropas de ambos os lados que irão participar no UFS, mas a imprensa de Seul tem apontado para “dezenas de milhares” de soldados, como aconteceu no passado, antes de o anterior presidente sul-coreano ter aligeirado este tipo de manobras militares bilaterais ao longo do seu mandado, que terminou em maio.

O cenário em que decorrem estes exercícios militares é simples, direto ao assunto e bastante atual: como reagir a um ataque da Coreia do Norte a Seul e a outros alvos na Coreia do Sul. 

Segundo a agência de notícias sul-coreana, ao longo dos próximos dias os militares norte-americanos e sul-coreanos trabalharão sobre um conceito de guerra generalizada, com as manobras militares divididas em duas partes: por um lado, exercícios de resposta imediata a ataques norte-coreanos, assegurando a defesa da grande área metropolitana de Seul; por outro, o desenvolvimento de operações massivas de contra-ataque, atingindo alvos na Coreia do Norte.

Durante o primeiro segmento, ao longo de quatro dias, os sul-coreanos deverão, para além das manobras militares, desenvolver exercícios de defesa liderados por funcionários governamentais, incluindo simulação de ataques conjuntos, reforços de linha da frente com armas e combustível, e remoções de armas de destruição massiva.

Drones, ataques a fábricas e outras lições da Ucrânia

Segundo o Ministério da Defesa sul-coreano, a UFS incluirá ainda exercícios para vários cenários da vida real, nomeadamente a descoberta de explosivos improvisados em centrais nucleares, um incêndio numa fábrica de semicondutores, paralisação de uma rede bancária, terrorismo em aeroportos e ataques com drones.

Os treinos para ataques com drones são uma das consequências do que tem sido observado na guerra russa na Ucrânia - e outras lições do que se passa na guerra na Europa serão incorporadas nos exercícios, como praticar respostas conjuntas militares e civis a ataques a portos, aeroportos e grandes instalações industriais - neste aspeto, as fábricas sul-coreanas de semicondutores são consideradas estratégicas, tanto como potenciais alvos como enquanto locais cuja defesa tem de ser assegurada, mantendo a sua capacidade de produção.

Durante os exercícios, os aliados planeiam conduzir 13 programas combinados de treino de campo.

O exercício inclui também a avaliação da capacidade operacional total da Coreia do Sul, um procedimento fundamental para que se possa concretizar a prevista transferência do controlo operacional em tempo de guerra de Washington para Seul, noticiou a agência Yonhap. Para além do treino conjunto de forças terrestres, aéreas e navais, a avaliação das capacidades da Coreia do Sul liderar forças conjuntas num cenário de guerra é um dos grande objetivos operacionais destes exercícios.

O coração destes exercícios será o centro de operações na base aérea norte-americana em Osan, nos arredores de Seul. Na sua recente visita à Coreia, durante uma curta tournée asiática, Joe Biden visitou este bunker, onde comandantes norte-americanos e sul-coreanos se sentam lado a lado e são obrigados a tomar decisões conjuntas em muito poucos segundos. O facto de a Península da Coreia ser um território relativamente pequeno, e de os mísseis norte-coreanos serem cada vez mais sofisiticados, mais rápidos, mais poderosos e com maior capacidade de evitar ser interceptados, torna ainda mais crítica a capacidade de avaliação de risco e de decisão em poucos segundos.

"Temos a capacidade de detectar o instante em que um míssil norte-coreano sai do solo", explicou à BBC o coronel Anthony Kuczynski, que dirige o centro de operações do lado americano. Depois disso, escreve a BBC nesta reportagem dentro do bunker de comando conjunto, “um algoritmo prevê para onde esse míssil pode estar a ir. ‘Então, com o meu terrível coreano, e o seu excelente inglês, podemos chegar rapidamente a uma decisão’, acrescenta [Kuczynski], apontando para o seu homólogo sul-coreano, coronel Soe”.

Regresso ao passado
"O maior significado [dos exercícios Ulchi Freedom Shield] é que normaliza os exercícios combinados entre a Coreia do Sul e os EUA, e o treino de campo, [contribuindo] para a reconstrução da aliança entre a Coreia do Sul e os EUA e da postura de defesa combinada", disse Moon Hong-sik, porta-voz do Ministério da Defesa sul-coreano.

Durante os anos de governo de Moon Jae-in, o anterior presidente sul-coreano, estes exercícios ficaram sempre para segundo plano. A prioridade de Moon era convencer, pela diplomacia, Kim Jong-un a abdicar do seu programa nuclear. Moon esteve na Coreia do Norte, e foi essencial para o muito mediático encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un.

Durante esses anos, não houve exercícios militares em larga escala entre Washington e Seul - uns foram cancelados por opção política, outros por causa do covid, e muita da cooperação passou apenas por simulações em computador, sem destacamento de forças para o terreno. 

Mas dessas conversações promovidas por Moon Jae-in não resultou nem a desnuclearização do Norte, nem uma reaproximação entre as duas Coreias, nem sequer um tratado de paz que ponha fim oficial à guerra entre os dois países.

Com outras lideranças, a Coreia do Sul e os EUA parecem dispostos a voltar aos grandes exercícios conjuntos. Até 2018, os Estados Unidos e a Coreia do Sul participavam em manobras em larga escala todas as primaveras e verões. Os exercícios de primavera destacavam-se por envolverem uma grande quantidade de ativos terrestres, aéreos e navais - chegando aos 10 mil soldados americanos e 200 mil coreanos.

Norte fala em treinos para uma invasão

Os treinos dos próximos dias não são apenas sobre como repelir um ataque norte-coreano, mas também sobre como contra-atacar o inimigo. Por essa razão, peritos de segurança dizem que a Coreia do Norte pode usar as manobras como desculpa para aumentar as tensões na península.

O crescendo tem sido evidente nos últimos dias. Apesar de o Sul e os EUA garantirem que o principal foco dos exercícios militares é defensivo, para Pyongyang trata-se de treinos para uma futura “invasão” ao Norte. Bastou a notícia da sua realização para Kim Jong-un acusar os EUA e a Coreia do Sul de deixarem a Península à "beira da guerra".

"Eles sabem que estes exercícios são defensivos, apenas os usam como desculpa", acusa o ministro da Defesa da Coreia do Sul. "Eles [no Norte] vão realizar provocações para os seus próprios objetivos militares e políticos, pelo que não podemos ouvir as suas críticas", acrescenta.

Kim Jong-un tem prometido que a Coreia do Norte reforçará a sua capacidade nuclear face ao comportamento de "gangster" dos EUA, e cessou toda a cooperação com a Coreia do Sul. A eleição de Yoon Suk-yeol foi recebida com uma escalada dos testes de mísseis e da retórica ameaçadora em relação ao Sul. E a guerra russa na Ucrânia também acabou por ter impacto: explorando as divisões no Conselho de Segurança da ONU, a Coreia do Norte acelerou os seus testes de armas, sem sofrer novas sanções, bloqueadas nas Nações Unidas pela Rússia e pela China. Este ano Pyongyang já fez mais de 30 lançamentos de mísseis balísticos, que o regime norte-coreano está proibido de testar.

Com os testes, vieram também os discursos, com repetidos avisos de que a Coreia do Norte irá utilizar as suas armas nucleares contra a Coreia do Sul e os Estados Unidos, se se sentir ameaçada. 

O que poderá Pyongyang fazer em resposta aos atuais exercícios? Várias coisas, e até todas elas em conjunto: 1) mais lançamentos de mísseis de cruzeiro, como os dois que lançou na semana passada, no dia em que começaram os preparativos para estes exercícios militares EUA/Coreia do Sul; 2) prosseguir os testes de mísseis balísticos e mísseis balísticos intercontinentais, como tem feito a um ritmo inédito desde o início do ano - mísseis, note-se, com capacidade de transportar ogivas nucleares seja em direção à Coreia do Sul seja até aos Estados Unidos; 3) retomar os ensaios nucleares, que estão interrompidos desde 2018. 

Ensaio nuclear antes das eleições nos EUA

Que Pyongyang se prepara para voltar a testar armas atómicas não há dúvidas, a questão é se o fará neste contexto, em resposta direta às manobras militares conjuntas dos seus dois principais inimigos. 

Esta segunda-feira, o antigo diretor do Serviço Nacional de Inteligência da Coreia do Sul, Park Jie-won, garantiu que "o presidente Kim Jong-un não vai ignorar isto [os exercícios militares] como se nada tivesse acontecido". O antigo chefe dos serviços secretos sul-coreanos não arriscou dizer o que Kim irá fazer, mas apostou que Pyongyang irá retomar os ensaios nucleares antes das eleições de novembro nos EUA, quando serão escolhidos os novos membros do Senado e da Câmara dos Representantes.

"Eles vão fazê-lo para demonstrar que são uma ameaça: que os seus mísseis podem voar até aos EUA com uma ogiva  [nuclear] miniaturizada e mais leve, e para dar um golpe à administração Joe Biden antes das eleições intercalares", disse Park em entrevista a uma rádio.

A ameaça nuclear do Norte é a que mais preocupa o Sul, e há dúvidas sobre a real capacidade de dissuasão e de resposta por parte de Seul, que não possui armas atómicas. Mas os acordos de segurança e defesa com os Estados Unidos, que se mantêm em vigor e têm sido renovados desde a guerra da Coreia, nos anos 50, garante a Seul a proteção do “guarda-chuva nuclear” dos EUA - ou seja, Washington compromete-se a empenhar a sua capacidade nuclear para responder a um ataque desse tipo à Coreia do Sul (e o mesmo em relação ao Japão, o outro grande aliado dos norte-americanos na região).

Apesar disso, após os anos de tentativas infrutíferas de apaziguamento com o Norte lideradas por Moon Jae-in, a opinião pública sul-coreana parece apoiar a ideia de que o país desenvolva a sua própria capacidade nuclear. O atual presidente, Yoon Sul-yeol, apesar de se apresentar como um falcão securitário em relação ao Norte, e de apostar forte no reforço da aliança com os EUA, nunca se comprometeu com qualquer promessa de dar armas nucleares à Coreia do Sul.

A dissuasão em relação ao Norte depende, assim, da aliança com os EUA. Que têm 28.500 militares estacionados em bases na Coreia do Sul. É o entrosamento dessas forças com os militares sul-coreanos que estará em teste durante os próximos dez dias.

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