Rúben Gouveia tem 35 anos e já passou por 19 clubes em três países. Está na terceira passagem pelo Oriental, que concilia com uma loja de roupa e tatuagens, e emocionou a família quando jogou em Angola.
"Conto direto" é a nova rubrica do Maisfutebol, que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.
Rúben Gouveia, 35 anos, médio do Oriental
«No Oriental treinamos da parte da manhã. Por norma acordo às 7 horas, depois deixo o meu filho na escola e vou para o treino. Gosto de chegar cedo, mas o treino começa pelas 9h30/10h. Depois tento ir a casa almoçar antes de ir para a minha loja, das 14h às 19h30. Mas como, para além da vertente da roupa, temos também a parte das tatuagens, por vezes isso prolonga-se até às nove ou dez da noite.
Tenho a loja há dois anos. Sempre tive uma grande pancada por roupa, e estava a chegar àquela idade e tinha de projetar o meu futuro. Surgiu este projeto, em parceria com o meu amigo André Correia e o Paulo, que é tatuador. Decidimos abrir a Seventeen Store, na Alta de Lisboa. Eu não conseguia dedicar-me apenas ao futebol, tenho de trabalhar. Só comecei a ganhar dinheiro no futebol quando fui para Angola, aos 25 ou 26 anos.
Comecei a jogar no Sport Lisboa e Olivais. Sempre fui irreverente, com alguma qualidade na altura, e um olheiro do Sporting viu-me lá e falou com os meus pais. Na semana seguinte fui assinar contrato à porta 10 A do antigo estádio. Joguei com grandes jogadores, desde logo o Ronaldo. Já se destacava. Chegámos a disputar torneios no Norte e ele marcava cinco ou seis golos. Já se notava bastante a diferença entre nós. Tínhamos uma relação normal, mas o contacto não era assim tanto, porque eu não fazia parte daquele lote de jogadores que viviam juntos por estarem deslocados de casa. Eu vivia em Chelas, na altura. Apanhava o autocarro 50 para o Campo Grande. Treinávamos de noite, por isso no final ia logo para casa.
Acabei por ser dispensado do Sporting e voltei ao Olivais. Na altura saíram vinte e tal miúdos. Muitos choraram, mas eu encarei aquilo com normalidade, sabendo que tinha de voltar à minha realidade. Faz parte.
Conclui a formação no Alverca. Foi lá que conheci o Miguel Lopes (ndr. ex-FC Porto e Sporting, agora no Kayserispor), que vai ser meu sócio no lançamento de uma marca de roupa, juntamente com o Bruno Marvão (ndr. antigo participante de um reality show da TVI). Também joguei com o irmão do Miguel, o Nuno Lopes, e com o Margaça, agora internacional cipriota.
No primeiro ano de sénior fui para o Desportivo de Beja. No ano seguinte o mister Bastos Lopes ligou-me e assinei pelo Sintrense. Tinha começado a namorar e voltei para Lisboa. Depois estive no Estrela de Vendas Novas, mas aí foi o caos, pois descemos de divisão e falharam pagamentos. Em Peniche reencontrei o mister Bastos Lopes. Era distrital, mas fomos campeões e ganhámos a taça. Fiz grandes amigos, adorei. Costumamos estar juntos uma vez por ano, e num dos últimos convívios até me ofereceram uma medalha de amizade. É dos grupos dos quais guardo mais contactos. Fiz um grande campeonato e assinei pelo Real Massamá, que estava na II.ª Divisão B.
Ao longo desses anos também trabalhava: estive duas vezes na ZARA, também numa empresa de portas de fogo... Era o que aparecia e que dava para conciliar com o futebol. A loja de rua da ZARA não abre ao domingo, e isso permitia-me ir aos jogos.
Em 2009 fui para Inglaterra, para o Halesowen Town. Tinha 23 ou 24 anos. Com essa idade nunca estás bem, queres sempre mais. Eu sempre fui assim. Fui muito bem recebido, os primeiros dois ou três jogos correram muito bem, os adeptos já tinham uma música para mim, mas depois o valor que estava acordado não foi respeitado. Ao fim de cinco meses agarrei nas minhas coisas e voltei. Ainda fui treinar ao Luton, que estava na League One, mas sinceramente tive muito azar nessa altura, pois estava com problemas físicos e mal conseguia andar.
Acabei por voltar a Portugal, fui para o Atlético de Reguengos. Adorei! Logo no final desse primeiro ano em Reguengos recebi uma chamada do mister Toni Pereira (ndr. atualmente no Cova da Piedade), mas já me tinha comprometido que ficava mais um ano. Uma semana antes de acabar essa segunda época lá recebi nova chamada dele a dizer que me queria no Torreense. Joguei com o Marçal (ndr. ex-Benfica, atualmente no Wolverhampton), com o Miguel Paixão, que é agora o braço direito do Ronaldo, e o Pedro Alves, diretor desportivo do Estoril. Fomos tomba-gigantes na Taça, eliminámos o Gil Vicente em casa e depois o Rio Ave em Vila do Conde. Fiz quatro meses que foram os melhores da minha carreira. O meu telefone não parava nessa altura.
Um dia estava a almoçar com os meus empresários e começámos a falar do Fábio Paim, que tinha ido para Angola, e eu disse que não queria morrer sem ir ao país da minha mãe. Tanto a minha família materna como paterna são angolanas. Os meus empresários não sabiam disso e ligaram logo ao Bruno Vicente, que era diretor do Libolo. No dia seguinte estava a assinar contrato num hotel de Lisboa.
Só então é que passei a ter nacionalidade angolana. Tive de ir à terra da minha mãe buscar uns papéis e tratei disso. Sou campeão angolano logo no primeiro ano (2012). Fui colega do João Tomás e do Andrés Madrid, por exemplo, com quem ainda tenho contacto.
Não concretizei o sonho de conseguir que o meu pai me visse a jogar na Liga, mas viu-me a jogar na televisão, quando eu estava em Angola. Ligou-me a chorar, eufórico. Até comentou que eu parecia mais gordinho, quando eu estava seco que nem um carapau, com aquele calor.
Não fui logo convocado para a seleção. Nos primeiros dois anos ainda me sentava à frente da televisão, a ver a convocatória, mas depois comecei a desligar um bocado. Fui convocado quando já estava no Caála (2014), onde fui treinado pelo Carlos Vaz Pinto, grande amigo e grande pessoa. Ganhámos ao 1.º de Agosto com um golo meu a 25 ou 30 metros da baliza, perto do fim. O selecionador estava lá a ver, e aí é que começou a ser falada verdadeiramente a possibilidade de ser convocado.
Uns dias depois estou a dormir em casa, a aproveitar a folga, e batem-me à porta às nove da manhã. Abro a porta ainda todo ensonado e espetam-me um microfone nos queixos para falar da convocatória. Eu nem sabia. Foi um misto de sentimentos. O jornalista esteve ali dois ou três minutos de micro esticado e eu não dizia uma palavra. Foi o acumular de muito trabalho. Foi um prémio, tirou-me um peso de cima. Joguei com e contra grandes jogadores: Djalma, Bastos, Manucho… Aí é que começas a sentir que estás num patamar um bocadinho a sério. Aí já olhava para o lado e pensava: “Não sou o roupeiro, sou jogador”. Tivemos um estágio em Portugal, defrontámos Marrocos no Algarve e joguei a titular, com a família e os amigos na bancada, incluindo o Miguel Lopes. Soube a pouco, é uma verdade. Se calhar merecia ter feito mais do que sete jogos, merecia ter ido mais vezes, mas depois de ter conseguido esse objetivo já não tinha aquele peso. Fui à seleção com 29 ou 30 anos.
Depois ainda joguei no Benfica de Luanda, na sequência de uma transferência que deu confusão, e por fim a Académica do Lobito. Deixei Angola em 2017 porque o dinheiro já não saía com a frequência que devia sair. Toda a gente se queixa do mesmo. Já não era a mesma coisa. Por vezes estávamos seis meses à espera de uma transferência de um valor mínimo. Na altura já era pai, o meu filho já tinha uns três anos, e decidi vir. Estive sempre sozinho lá. Logo em 2013 a minha mulher foi lá passar vinte dias e ao primeiro dia ligou-me aos gritos, a dizer que queria ir embora.
Precipitei-me um pouco no regresso. Devia ter esperado um pouco mais, mas os meus empresários estavam com um projeto no Vilafranquense, queriam subir à II Liga. Eu estava com 32 anos, podia ter feito mais um ano ou dois fora. Depois estive quatro ou cinco meses no Casa Pia e voltei ao Oriental. Na época passada estive no União de Santarém, mas a pandemia acabou com o campeonato mais cedo, e este ano voltei para Marvila. As coisas não estão a correr assim tão bem (ndr. último lugar na Série G do Campeonato de Portugal, com apenas um ponto), mas temos de trabalhar.
Nos últimos dois anos não me lembro de não treinar com dores. Não é nenhuma lesão especifica, são mesmo dores de muitos anos nesta vida. Ainda hoje ao almoço a minha mulher dizia que eu estava cansado, que digo todos os anos que vou deixar, mas depois digo que não estou preparado. Não sei quantos anos vou jogar mais. O máximo possível, enquanto sentir-me feliz e bem dentro de campo. Talvez dois ou três anos.
Quando acabar a carreira vou tentar focar-me mais na loja, até porque vou lançar a minha marca de roupa. Não sei se ficarei ligado ao futebol. É um dia de cada vez, não sei se um treinador amigo não me liga para eu ir ajudar, se vai surgir algum convite. Na altura vou ponderar se vale a pena ou não. Se jogo desde os oito anos também não faz sentido chegar aos 38 e desligar completamente.»