Antigos avançados têm recordes por bater. O primeiro fez um «poker» perfeito às águias, em 1971; o segundo marcou cinco aos dragões em 1943. Uma lição de pontaria antes do Clássico
230 Clássicos. Tantas histórias, tantos heróis. Uns óbvios, outros improváveis. Atores de insuspeita credibilidade, craques, figurantes com direito a 15 minutos de fama, enfim, nomes e nomes numa lista interminável de dragões e águias.A triagem aperta consideravelmente, porém, se considerarmos elegíveis apenas homens com mais de três golos durante um FC Porto-Benfica. Atacantes (ou não) com a capacidade de espalhar o terror e provocar a tempestade perfeita na baliza do arqui-rival.
O que têm, então, em comum, Julinho e Lemos? São os únicos nesta longa metragem que foram capazes de marcar cinco e quatro vezes, respetivamente, ao adversário em 90 minutos.
O leitor terá pensado em Eusébio, Fernando Gomes, Torres, Jardel, Magnusson, Falcao, mas não. Nenhum deles foi capaz de fazer isto.
António Lemos: um «poker» narrado na primeira pessoa
Julinho
Lemos
«Oh, amigo, se me lembro disso? Como é que eu me ia esquecer da minha tarde mais feliz no FC Porto»
Tem a palavra António Lemos.
«O primeiro golo é fácil. O falecido Pavão passa por dois defesas do Benfica e faz-me um passe perfeito. Só tenho de empurrar, quase à boca da baliza»
«O segundo é o mais bonito. É espetacular, mesmo. Começa tudo no Nóbrega. Ele conduz a bola e abre em profundidade. Eu recebo já muito perto da linha de fundo e arranco um pontapé fortíssimo, já sem ângulo. Que golo!»
«No terceiro a bola chega-me do Custódio Pinto. Desmarco-me bem, fico com espaço e, à saída do Zé Henrique, aplico-lhe um chapéu. Ele nada pode fazer»
«O último é mérito meu, sim, mas também demérito do Humberto Coelho. Eu já estou debilitado e com dores num joelho, depois de uma pancada, e ele pensa que já não me volto a mexer. Engana-se. O Abel [Miglietti] ganha de cabeça e eu arranco de repente. As facilidades que o Humberto me dá fazem o resto»
Mobília de quarto, guarda-chuvas, camisas e conjunto de tintas: tudo para Lemos
António Lemos marca quatro golos e vai para casa com a mala cheia. «É verdade, é»
«As empresas investiam muito nessa altura e fazia-se propaganda nos jogos. Cada golo valia um prémio e eu marquei quatro. Levei tudo: uma mobília de quarto, um guarda-chuva, camisas e um conjunto de tintas e pincéis. Foi uma risota no balneário, tive de distribuir as coisas pelos meus colegas»
Nessa temporada, o FC Porto não vai além do terceiro lugar no campeonato. Atrás de Benfica e Sporting. Os dragões estão em plena travessia do deserto: 19 anos sem chegar ao título.
«Eu estive quase a ser dispensado no início da época, para o Barreirense. Só não fui porque no plenário de diretores votaram a minha continuidade. Fiquei por um voto, segundo me contaram. Na altura era assim»
«O Tommy Docherty convidou-me para o ManUtd. Disse-lhe que era doido»
Julinho, já desaparecido, nasce em Leça da Palmeira em 1919. Começa no Boavista, passa pelo Académico do Porto e notabiliza-se no Benfica entre 1942 e 1953. É três vezes campeão nacional e ganha seis Taças de Portugal.
É, ainda, o sétimo melhor marcador de sempre na história do Sport Lisboa e Benfica: 272 golos!
Lemos, pleno de saúde e alegria, é natural de Luanda. Aos 16 anos, em 1966, chega a Portugal pela mão do FC Porto, após brilhar em torneios organizados na antiga colónia.
«Fiquei a morar no lar do clube»
Após breve cedência ao Boavista, Lemos fica no plantel do FC Porto entre 1970 e 1973. É aí que é mobilizado para a guerra colonial
«Um treinador nosso, o Tommy Docherty, convidou-me para ir com ele para o Manchester United. Em 1972. Eu disse-lhe: mister, você é doido, Portugal é uma ditadura. Não sai ninguém de cá, a não ser para a guerra. E mal sabia que era isso que me ia tocar»
Julinho e Lemos: mestres do Clássico.