“André Ventura é um esperto rodeado de idiotas”. Que ilações pode Portugal tirar da extrema-direita no Brasil: a visão de Christian Lynch

5 fev, 07:00
Christian Lynch (Líbia Florentino / Cortesia: Cícero Bistrot)

Quando os receios sobre o crescimento de Jair Bolsonaro se começaram a instalar no Brasil, Christian Lynch juntou-se ao movimento Política Viva. Desde aí, enquanto especialista em Ciências Políticas, tem aprofundado a ascensão da extrema-direita em várias geografias. Incluindo em Portugal com o Chega. De passagem por Lisboa para um almoço-debate no Cícero Bistrot, confessa que vê os mesmos erros do Brasil a serem cometidos por cá. E por isso, em entrevista à CNN Portugal, o autor do livro “O Populismo Reacionário: Ascensão e Legado do Bolsonarismo" disseca este fenómeno. “André Ventura está a fazer um cocktail, está a testar várias fórmulas”

Porque são hoje os partidos populistas tão atrativos?

Um partido populista não é uma novidade. O populismo sempre existiu e faz parte da democracia. Populismo é quando se fala em nome de um povo que supostamente estaria oprimido por uma elite. Apresenta esse povo como sendo homogéneo e oprimido, propondo-se a levá-lo à redenção ou à libertação desse sistema de opressão. Nenhuma democracia chega a sê-lo sem ter um populismo. O que temos hoje aqui é um partido populista de direita e radical.

Então o que acontece?

Os partidos e movimentos populistas fazem sucesso porque há uma sensação de crise do sistema representativo. Quando o sistema representativo funciona, quando atende à maior parte do eleitorado, esses partidos não costumam ter grande destaque.

E no caso português, é o tempo de André Ventura alcançar o poder? Ou vamos ter de esperar mais uns anos para isso acontecer, como noutros países onde esse processo foi demorado?

Não se sabe se algum dia vai chegar ao poder. O que se percebe é que, no mínimo, existe um movimento de substituição de direitas. Em Portugal, como no Brasil, durante muito tempo houve um período de hegemonia ideológica da social-democracia. Isso proibiu a direita de se manifestar. Mesmo tendo a esquerda feito concessões liberais, o que acontece é que esse ciclo fechou. E compreende-se a emergência de uma nova direita populista, que mobiliza e sente que não se sentia mobilizada.

(Líbia Florentino / Cortesia: Cícero Bistrot)

E o que acontece quando ela chega ao poder?

Ou ela se adequa ao sistema e toma o lugar do anterior, o que é algo improvável. Ou toma o poder para tentar implantar o seu programa, o que exige desmontar a democracia. Vai ter de levantar o apoio das forças militares e das polícias, de um lado, e do grande capital, do outro.

É isso que André Ventura já está a fazer em Portugal, quando se associa aos protestos dos polícias ou tem, entre os seus financiadores, membros de famílias de renome em Portugal?

Sim, a dizer que o governo maltrata o exército e as polícias, que os humilha. É algo muito forte, muito pesado. E também começa a atacar as instituições judiciais, que estão encarregues de defender a democracia. São métodos de intimidação.

Aqui em Portugal, pela sua experiência neste tema, o que temos é uma versão barata de populismo? Ou antes pelo contrário?

Temos, de facto, alguém que está preparado para assumir esse poder, esse poder de transformação. No que respeita a líderes populistas, não se trata de estar preparado do ponto de vista das virtudes pessoais. Existem pessoas mais ou menos capazes deste processo de desmontagem da democracia social. Mas os incapazes, se forem inteligentes, cercam-se de pessoas mais capazes. [Jair] Bolsonaro é uma besta. É uma besta convicta, porque não permitiu ser tutelado por ninguém que fosse mais inteligente do que ele. Dizem aqui que Ventura é um sujeito espero. Dizem que é um esperto cercado de idiotas.

E um esperto cercado de idiotas tem essa capacidade de avançar sozinho?

Não. Ele tem de convencer. Um sistema parlamentar, como o português, é mais complicado. Num sistema presidencial, como o brasileiro, quem ganha a eleição domina o poder executivo. Aqui é mais complicado, porque há um Presidente que limita a atuação. E é necessário negociar no Parlamento. E fica mais difícil atacar o poder judicial.

Mas diria que André Ventura é uma cópia, a papel químico, de outros líderes populistas como Bolsonaro, Trump, Meloni ou Le Pen? Ou é uma criação própria?

Própria jamais. Porque faz parte de um movimento mais amplo. Todos eles trocam cromos entre si, trocam tecnologia fascistoide. Pertencem a uma internacional neofascista. Estão numa fase de laboratório. E fazem testes.

Como descreveria o populismo de André Ventura?

André Ventura está a fazer um cocktail, está a testar várias fórmulas. Mas não vi exatamente uma característica própria, sobretudo em matéria económica. Oscila entre o protecionismo e o discurso neoliberal. Em Portugal, o inimigo de Ventura está em toda a parte. Os inimigos são aqueles que não pertencem à boa família portuguesa. Mas são sobretudo os imigrantes. Porque o sonho das pessoas que apoiam o Chega é ter um Portugal rico, branco, católico. E essa presença da imigração cria uma sensação crescente de desconforto e de ameaça.

(Líbia Florentino / Cortesia: Cícero Bistrot)

A comunidade imigrante tem contributo para os lucros da Segurança Social e para o crescimento da taxa de natalidade. A imprensa, com recurso a factos e dados, tem procurado desconstruir as visões transmitidas pelo Chega em temas como este. Mas, o facto, é que são muitos aqueles que continuam a acreditar e a defender essa visão populista sobre os imigrantes. Porquê?

É o negacionismo. O comportamento eleitoral não se guia simplesmente por esse tipo de racionalidade informacional. O comportamento do eleitor também é movido por paixões e sensações. É isso que o populista oferece com explicações fáceis. Há um certo tédio. É como se um sujeito estivesse há 10 anos sem beber. E alguém lhe oferece uma bebida. Ele, que não está num momento bom da vida, decide tomar uma bebedeira naquela noite. O voto é a bebedeira que ele toma. E acaba com uma ressaca de quatro anos. As pessoas começam a ter expectativas pouco reais sobre a política:  de que a política é feita para mudar rapidamente as coisas. Aí aparece alguém que promete mudanças rápidas e fáceis. E as pessoas tendem a querer votar nesse estado. Mesmo quando essas mudanças não se concretizam.

É o que tem acontecido a André Ventura que, apesar da representação parlamentar crescente, nada consegue levar adiante em termos práticos.

É muito fácil para ele dizer que não consegue fazer nada porque o sistema não permite. E que existe uma conspiração. E que só quando tiver o poder total é que vai conseguir fazer alguma coisa.

Mas é mais perigoso, como acontece agora em Portugal, que os partidos ditos tradicionais estejam reféns de partidos como o Chega?

É um caso complicado. O Chega faria parte de uma coligação com o PSD? O próprio diz que não. A não ser que tenha lugar no Governo. Mas o que faria Ventura numa posição subordinada? Porque se ele se tornar parte de um governo [do PSD], morre, deixa de ser antissistema. O trunfo dele é ser antissistema. Ele é a ala direita do PSD. Um dos truques dos populistas é encostar a direita à esquerda. Para mostrar que a direita que existe, afinal, é esquerda. A não ser que faça parte de entrar numa coligação, como elemento minoritário, para a devorar por dentro.

(Líbia Florentino / Cortesia: Cícero Bistrot)

Para este sábado em Lisboa está prevista uma marcha da extrema-direita, que se afirma como anti-imigração. Colocou-se a discussão do permitir ou proibir. O que se devia fazer no seu entender?

Cumpra-se a lei. Se a Constituição define que não podem existir atos discriminatórios, então é preciso proibir [nota do editor: a manifestação seria de facto proibida, já depois da realização desta entrevista].

Mas isso não dá mais força a quem lá está?

Não importa. Isso nunca se sabe. Na dúvida, o melhor é cumprir a lei. Aprendi isso com [o regime de] Bolsonaro. Porque, a partir do princípio da intimidação, o que eles fazem é tensionar os limites. Dizem que proibir será pior. E você vai recuando, recuando. Dando mais espaço. Não, é preciso ter uma posição determinada, firme, em defesa das instituições. Não se pode dar espaço.

O que aprendeu com Bolsonaro que também deveríamos aprender em Portugal?

A não vender como democracia o que não o é. E a aprender o vocabulário. Porque falam em democracia, liberdade e povo. Mas, na verdade, são impostores.

Mas isso não matou um certo espírito saudosista em relação a figuras como Bolsonaro ou Trump.

Uma coisa é combater e colocar a extrema-direita num canto. Isso não significa que ela desapareça. O esforço que deve ser feito é para que ela se mantenha num canto o máximo de tempo possível.

Partidos

Mais Partidos

Patrocinados