Modelo de crescimento da China está esgotado. E agora?

ECO - Parceiro CNN Portugal , Nuno Carregueiro
27 set 2023, 18:53
Poluição em fábrica chinesa (Getty Images)

A aposta no consumo interno e na inovação pode ser a receita para a China lidar com o fim do modelo sustentado na dívida e no imobiliário, que está a condicionar o crescimento da economia chinesa.

No início deste ano os ventos pareciam soprar a favor da China. A segunda maior economia do mundo (18 biliões de dólares) vinha do segundo pior registo em 40 anos, com o PIB crescer 3% em 2022, mas aboliu de forma célere as rígidas regras para controlar a pandemia que isolaram um país com 1,4 mil milhões de habitantes durante mais de dois anos.

A reabertura, numa altura que o resto do mundo sofria o impacto do combate à inflação elevada, fazia antever que seria a China a impulsionar o fraco crescimento da economia global. As fábricas voltariam a funcionar a 100%, o consumo iria disparar devido ao fim das restrições e os chineses voltariam a viajar como antes da pandemia, gastando o dinheiro que pouparam quando estavam fechados em casa.

As expectativas saíram furadas e a realidade mostrou uma economia débil e bem longe do fulgor dos anos pré-pandemia. O PIB cresceu apenas 2,2% nos primeiros três meses do ano e travou a fundo no segundo trimestre (0,8%). A taxa de desemprego jovem atingiu máximos históricos acima dos 20% e o comércio externo está em quebra acentuada, numa altura em que o Ocidente também arrefece e adota mais medidas para reduzir a dependência da economia chinesa.

Uma evolução que muitos economistas atribuem ao esgotamento do modelo que colocou o PIB da China a apresentar taxas de crescimento em redor dos dois dígitos. Desde 1978, quando começaram a ser introduzidas medidas para abrir a economia ao exterior e mais de 70% da população estava em pobreza severa, o PIB da China registou um notável crescimento médio anual de 9%.

Este “milagre económico” permitiu à China ser o motor da economia mundial durante largos anos, à boleia de uma estratégia baseada no aumento do endividamento público e privado para construir fábricas, casas, estradas, aeroportos e outras infraestruturas. Os resultados foram notáveis, retirando da pobreza cerca de 800 milhões de pessoas, que se deslocaram em massa para as cidades, com o rendimento per capita a aumentar cerca de 25 vezes. Ao mesmo tempo, apesar do forte controlo do Estado, foi desenvolvido o tecido empresarial do país, que ganhou músculo para encetar uma internacionalização agressiva na Europa e outras partes do globo.

Contudo, a aposta no betão e aço foi longe demais. O setor imobiliário e da construção assumiu um peso insustentável na economia (alguns anos próximo de 30% do PIB) e o endividamento da economia está a atingir níveis preocupantes, sobretudo nas entidades públicas locais. Após um fluxo de 400 milhões de pessoas em 20 anos, dois terços dos chineses já vivem em cidades. Mas muitos milhões de apartamentos continuam vazios e são várias as cidades-fantasma no país.

A crise no imobiliário rebentou em 2021 com o colapso da gigante Evergrande, afundada em dívida e inúmeros projetos por concluir. Apesar das medidas adotadas por Pequim, o setor continua em dificuldades, com os preços das habitações a recuarem há mais de 12 meses seguidos e as vendas em queda acentuada. Atualmente é a Country Garden que está à beira do incumprimento, ilustrando como um setor que impulsionou a economia chinesa é agora uma das principais dores de cabeça.

Esta segunda-feira, a Evergrande afundou mais de 20% em bolsa depois de ter anunciado que não está em condições de emitir novas obrigações, o que coloca em causa o plano de reestruturação que a companhia está a negociar com os credores e contempla a entrega de novos títulos com maturidades longas pela troca dos que têm em carteira. Um desenvolvimento que aumenta a probabilidade de a Evergrande enfrentar um cenário de liquidação. Para agravar o pessimismo no setor, a China Oceanwide Holdings foi declarada insolvente por um tribunal da Bermuda, o que conduziu o índice que agrega as imobiliárias chinesas a afundar mais de 4%.

As estimativas apontam para que existam 90 milhões de habitações vazias na China, o que seria suficiente para albergar a população inteira de países como a Alemanha, França, ou Reino Unido.

O imobiliário está longe de ser o único problema da economia chinesa. Envelhecimento da população (natalidade desce há seis anos), baixa da produtividade, relações económicas mais frias com o Ocidente, fuga de capitais do país, desvalorização dos preços dos ativos (ações, moeda e títulos de dívida) e até uma ameaça de deflação representam obstáculos sérios à capacidade de a China continuar com um crescimento económico fulgurante e galgar terreno nos rankings da economia mundial.

Futuro sombrio

Este diagnóstico sombrio para a economia chinesa, alimentado pelo fraco crescimento em 2023, coloca em causa as metas de Pequim, que tem respondido ao abrandamento económico com medidas de estímulo avulsas e de eficácia duvidosa. Nos primeiros meses do ano, as autoridades do país fixaram um objetivo de crescimento de 5% no PIB em 2023. Uma meta que foi na altura classificada de pouco ambiciosa, mas que atualmente é vista como complicada de atingir.

Em 2020, o presidente Xi Jinping traçou o objetivo de duplicar a dimensão da economia chinesa até 2035, um trajeto que parece agora difícil de alcançar. As estimativas de que a economia chinesa iria superar a norte-americana na próxima década também parecem agora mais remotas, com alguns estudos a apontarem mesmo que este cenário nunca se irá concretizar.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) avisa que, se não forem adotadas reformas, o crescimento económico da China ficará abaixo de 4% nos próximos cinco anos. A Capital Economics vê o crescimento médio do PIB chinês recuar para 2% na próxima década e a Bloomberg Economics traça um futuro ainda mais negro, com um crescimento próximo de 1% em 2050.

 

Os sinais débeis da economia chinesa nos últimos meses aceleraram o debate sobre a possibilidade de China já ter atingido o pico do crescimento económico. O termo “peak China” surgiu em maio num artigo da The Economist, dando força a uma corrente que defende que os problemas estruturais da China vão levar o país para uma fase descendente, ficando preso a uma economia eternamente emergente e de baixos rendimentos, arriscando até repetir o longo período de estagnação que assola o Japão desde os anos 90.

China não está condenada a espiral descendente

Nem todos partilham esta visão negra para a segunda maior economia do mundo, assinalando que este abrandamento económico pode ser revertido. Os indicadores económicos publicados em agosto e setembro foram menos negativos do que nos meses anteriores, aumentando a expectativa de que possa ser o início de uma verdadeira recuperação pós-covid.

“A recuperação económica da China está em curso e continua a ser liderada pela força dos serviços”, diz ao ECO Erin Xin, Greater China Economist do HSBC, assinalando que será necessário aguardar mais tempo para que os estímulos orçamentais e monetários se reflitam na totalidade. Além disso, “tem havido uma flexibilização substancial das políticas relacionadas com o imobiliário nos últimos meses, o que deverá ajudar a trazer de volta alguma procura, ajudando a estabilizar o setor e diminuir os obstáculos ao crescimento económico”.

“Não há dúvidas de que a China enfrenta muitos desafios estruturais: queda da produtividade, redução da força de trabalho, restrições à transferência de tecnologia impostas pelos EUA e outros países, correção contínua da bolha no imobiliário, elevado desemprego jovem e uma liderança que parece mais preocupada com o controlo do partido e a segurança nacional face ao crescimento económico”, destaca Nicholas Lardy, assinalando que estes desafios impedem a China de regressar às taxas de crescimento “deslumbrantes” próximas de 10%.

Contudo, o economista do Peterson Institute of International Economics adverte que uma “leitura cuidadosa da situação atual não suporta a ideia de que a China está condenada a uma severa espiral descendente que persista durante vários anos”. Nicholas Lardy destaca que os salários per capita aumentaram 6,8% no primeiro semestre e que os rendimentos das famílias estão a aumentar, o que em conjunto com a descida da taxa de poupança, sugere que o consumo no futuro vai surpreender pela positiva. Alem disso, excluindo o efeito preços, as importações estão a aumentar, o que valida o aumento da procura interna.

Martin Wolf, chief economics comentator do Financial Times, também não embarca na onda de apostar no declínio da economia chinesa. Num artigo de opinião no jornal britânico onde assinala a importância do rumo da China na economia mundial, Wolf refere que o problema económico do país está na dependência excessiva do investimento impulsionado por crédito e da acumulação de capital, em detrimento do impulso da oferta através do consumo e da inovação. “Sim, é possível que estejamos a assistir ao fim da ascensão da China. Mas não é inevitável. O que acontecer dependerá mais das escolhas dos chineses do que dos desejos dos ocidentais”, conclui.

Aposta no consumo e inovação

Numa entrevista recente à Reuters, a diretora-geral do FMI aponta o caminho que a China deve seguir para inverter a tendência de enfraquecimento da economia: impulsionar a procura interna; enfrentar os problemas do setor imobiliário e controlar as dívidas dos governos locais.

A China deve recorrer a políticas para “mudar o seu modelo de crescimento, que seja direcionado para o consumo interno”, recomendou Kristalina Georgieva, assinalando que “não será produtivo, no atual ambiente, injetar mais dinheiro na via tradicional de apostar em infraestruturas”. Na lista de recomendações do FMI à China constam ainda reformas estruturais que assegurem um “crescimento inclusivo, verde e equilibrado”.

Desde o final da primeira década deste século que a China apresenta um peso do investimento público no PIB acima dos 40%, bem acima do passado e do que se verifica atualmente nos países ocidentais. O consumo das famílias tem vindo a recuperar desde 2010, mas de forma muito ténue e ainda bem distante do peso que tem noutras economias.

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“A China tem procurado desenvolver motores de crescimento sustentável, nomeadamente nos domínios da tecnologia, inovação e desenvolvimento verde”, o que deve ajudar a transição para um “modelo económico com o crescimento liderado pelo consumo”, o que “pode ajudar a proteger contra as atuais incertezas decorrentes de tensões geopolíticas”, refere Erin Xin. O economista do HSBC destaca que “há ainda uma série de áreas onde a China pode trabalhar com outras economias para alcançar progressos nos objetivos globais e aprofundar os laços comerciais e de investimento”.

Um estudo da Boston Consulting Group (BCG) estima que cerca de 80 milhões de chineses deverão juntar-se à classe média do país até 2030. “Representando perto de 40% da população, este segmento tornar-se-á uma fonte de resiliência de longo prazo para o mercado de consumo na China”, refere a consultora.

Foi já ciente do esgotamento do modelo económico do passado e da necessidade de reforçar a classe média que, em 2021, Xi Jinping definiu a “prosperidade comum” como o desígnio principal da estratégia da China para os próximos anos. O aperto na regulação das grandes companhias, o desmantelamento de monopólios e a perseguição de diversos bilionários foi uma face visível desta estratégia, que foi refreada nos últimos meses devido ao dano evidente na atividade económica.

A escalada dos preços da energia também levou a China a afrouxar os ainda tímidos passos no combate às alterações climáticas. Ainda assim, o país está na linha da frente dos progressos nas indústrias dos veículos elétricos e energias renováveis, evidenciando a capacidade do país em dominar mercados. As maiores restrições no acesso a tecnologias por parte dos Estados Unidos e Europa representam atualmente um constrangimento, mas podem impulsionar a China para acelerar a inovação em áreas como a inteligência artificial e os semicondutores, abrindo novos caminhos de crescimento.

O motor da economia mundial

Mesmo que as tensões geopolíticas representem um retrocesso na globalização, a China tem atualmente um papel incontornável na economia mundial. Mesmo que o Ocidente adote medidas para reduzir a dependência da China numa altura em que o país estreita laços com a Rússia, o corte de relações económicas (decoupling) é algo que os responsáveis norte-americanos e europeus não estão sequer a equacionar.

Apesar do frágil crescimento e das perspetivas sombrias, o FMI estima que a China continuará a ser o país que mais contribuirá para o crescimento da economia mundial nos próximos cinco anos (22,6%, o dobro dos EUA). O México substituiu a China como principal parceiro comercial dos EUA, mas o país asiático continua a ter este estatuto para mais de 120 nações em todo o mundo.

A China mantém uma ligação empresarial muito forte com a Europa, sendo há sete anos o que mais compra e vende bens à Alemanha. Não é por acaso que as ações de muitas cotadas europeias tremem sempre que são publicados indicadores económicos negativos na China. E de setores tão diferentes como as fabricantes de artigos de luxo, automóveis e matérias-primas.

Ainda é grande a incerteza sobre se a China será capaz de implementar as reformas necessárias para impulsionar o crescimento económico, mas existem poucas dúvidas de que existe potencial. As estimativas de crescimento da classe média e dos rendimentos das famílias abrem perspetivas que podem fazer toda a diferença.

Dados citados por Martin Wolf no seu artigo mostram que o PIB per capita da China situava-se em 28% dos EUA e metade da Polónia em 2022. Se conseguir atingir o nível do país da Europa de Leste, a dimensão da economia chinesa será superior à dos EUA e União Europeia juntas. Se Xi Jinping implementar uma verdadeira agenda em busca da prosperidade comum, este cenário pode deixar de parecer uma miragem.

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