China acaba com a app anticovid que seguia os movimentos dos cidadãos

13 dez 2022, 04:57
China desativa app de controlo de deslocações

Aplicação nacional foi desativada, dando mais um sinal de que a política de covid zero ficou para trás. Mas mantêm-se em funcionamento a aplicação nacional de controlo de saúde, e centenas de apps locais de rastreio de movimentos

É mais um sinal de abandono da política de “covid zero” por parte das autoridades chinesas: às zero horas desta terça-feira, hora de Pequim (menos 8 horas em Portugal), foi desativada a aplicação nacional que há quase três anos controlava os movimentos dos chineses, sobretudo quando saiam da sua cidade ou província. A app conhecida como “código de itinerário móvel” deixou de estar funcional, e as autoridades garantem que a informação registada pelo sistema será “aos poucos” apagada.

Muitos chineses celebraram este momento em que deixaram de ter os seus passos vigiados por esta app de rastreio de deslocações, cuja utilização levantou muitas suspeitas desde o início, dado o potencial desta tecnologia para um controlo abrangente da população, bem para além das necessidades sanitárias impostas pelo combate à pandemia.

A colocação desta aplicação off-line é mais um sinal de que Pequim está mesmo a abandonar a sua controversa estratégia de "covid zero”, apesar de se esperar uma grande subida do número de novos contágios nas próximas semanas. A aplicação “Communications Itinerary Card” utilizava os sinais telefónicos para localizar qualquer pessoa e seguir o seu histórico de viagens nos últimos 14 dias. Cada cidadão tinha de introduzir o seu número de telefone na aplicação, que seguia os seus percursos e dava luz verde para viajar entre províncias ou frequentar eventos. 

Quando a pessoa em causa viajava para uma área considerada de “alto risco”, ficava com a sua aplicação no vermelho, e era mandada ficar em quarentena. Também a sua app de saúde passava para código vermelho, o que impedia o portador de fazer coisas tão básicas como andar de transportes públicos, entrar em lojas, supermercados ou farmácias, ou frequentar restaurantes e parques públicos.

Esta foi uma peça central nas medidas de combate à covid na China, e a sua desativação é vista como um momento altamente simbólico. Porém, os 1,4 mil milhões de chineses continuam a ter todos os seus movimentos seguidos por centenas de aplicações de rastreio de movimentos geridas pelas autoridades locais das respectivas províncias e/ou cidades, e continuam a ser monitorizados através da app de saúde, que continua em funcionamento.

Em simultâneo, a China reduziu muito a quantidade de locais considerados de “alto risco” de curtos covid, reabrindo muitas áreas que estavam fechadas, nalguns casos há mais de um mês. Uma das zonas que deixou de estar na lista negra é o distrito da cidade de Zhengzhou, no centro da China, onde funciona a maior fábrica de iPhones do mundo. O local onde fica a fábrica da Foxconn - onde é montada grande parte dos smartphones da Apple - foi considerado na segunda-feira como zona livre da classificação de “alto risco”, deixando de ter áreas em lockdown.

O número de áreas de alto risco caiu para cerca de 4.500 nesta segunda-feira - uma diminuição abrupta de 85%, tendo em conta que, pelos dados oficiais, havia mais de 30 mil zonas de “alto risco” a 7 de Dezembro, antes da última mudança de política de Pequim em relação à covid.

Macau também alivia, Hong Kong reabre aos viajantes

A China anunciou na semana passada um conjunto de alterações nas suas medidas anticovid, incluindo o abandono dos testes obrigatórios antes de muitas atividades públicas, e a possibilidade de as pessoas infectadas fazerem quarentena em casa, desde que não apresentem sintomas ou estes sejam ligeiros. Ontem, Macau anunciou que também no seu território passa a vigorar a regra do isolamento doméstico, em vez da transferência compulsiva para centros de quarentena.

A eliminação das restrições vem antes das férias de Ano Novo Chinês no próximo mês, quando se espera que um grande número de pessoas viaje pela China para visitar a família pela primeira vez em três anos. Ontem, o embaixador de Pequim nos Estados Unidos disse acreditar que as medidas da China contra a covid-19 serão ainda mais relaxadas num futuro próximo, e que as viagens internacionais para o país também se tornarão mais fáceis.

Na prática a China ainda continua de portas bastante fechadas para os viajantes internacionais. Mas a reabertura já começou, com Hong Kong a dar o tiro de partida: a praça financeira anunciou ontem que a partir desta quarta-feira que quem chegue à cidade com teste covid negativo não terá restrições de entrada nem de circulação: deixa de haver três dias de vigilância covid, e acabam os condicionamentos que ainda estavam em vigor para aceder a lojas, restaurantes ou outros tipos de estabelecimentos públicos.

“Na realidade não muda muito”

Sobre a decisão de desativar a app nacional de rastreio de itinerários, Kendra Schaefer, investigadora associada do National Bureau of Asian Research, uma ONG norte-americana, sublinha que esta decisão contraria aqueles que achavam que o governo nunca iria abdicar desta ferramenta de controlo sobre a população, mas acrescenta que “na realidade não muda muito em termos do poder governamental baseado nos dados”. 

Segundo a investigadora, que é sócia da Trivium China, uma consultora baseada em Pequim que monitoriza as políticas do governo chinês em relação a tecnologia de informação e dados, “a aplicação em si não importa. A sua existência é uma manifestação do facto de que existem os conjuntos de dados subjacentes, que alimentam a aplicação.” Ora, essa informação de base, que combina dados da China Telecom, China Unicom e China Mobile - os três maiores operadores de telecomunicações do país - continua a existir. “O aplicativo pode ir embora, mas esses dados ainda lá estão.” Seja para uma app nacional, seja para as centenas de apps regionais ou locais que continuam em funcionamento, esses dados ”podem ser reconstituídos em qualquer altura - com ou sem uma aplicação publicamente visível”.

De acordo com Schaefer, “na realidade, tudo o que o governo perde ao eliminar essas aplicações é um método rápido de manter certas pessoas em casa com base numa lógica de segurança pública. À medida que os controlos covid desaparecem, a lógica [de isolamento obrigatório] desaparece, e os benefícios da remoção [da app] superam as vantagens de a manter. Pequim ganha mais do que perde ao ver-se livre destas coisas. O custo de manter um sistema deste tipo deve ser gigantesco. As perturbações nas redes logísticas que [as apps] exigem têm sido enormes. A vitória política de regressar à normalidade é gigantesca.”

A mensagem política é clara - a China está a voltar à normalidade - e as companhias de telecomunicações já disseram que irão apagar os dados sobre a mobilidade dos cidadãos que alimentavam a app nacional. Mas, realça a investigadora norte-americana baseada em Pequim, “esses mesmos conjuntos de dados subjacentes já são utilizados em toneladas de aplicações, muitas delas socialmente benéficas, algumas delas orientadas para a vigilância em massa”. 

De resto, há anos que o governo chinês trabalha em ambiciosos sistemas de recolha de dados para efeitos de repressão e vigilância da população (como pode ler este trabalho sobre o Big Brother chinês), e foi por essa razão que foi capaz de avançar com os primeiros protótipos de aplicações de rastreio de contactos apenas duas semanas após o reconhecimento oficial da existência da epidemia de covid que estava a alastrar no país.

A eliminação das apps locais vai demorar mais

“Puderam fazê-lo porque o governo central passou os últimos 20 anos a pressionar os governos locais para limpar e normalizar a formatação dos seus conjuntos de dados, instituir políticas de gestão de dados, etc. Por outras palavras, os dados para formular uma solução já estavam lá”, diz a especialista em sistemas tecnológicos de recolha de big data. 

Uma vez criadas, essas aplicações de rastreio foram implementadas de forma desordenada pelas autoridades locais, sem conexão dos sistemas uns com os outros, o que obrigou Pequim a lançar a app nacional, para interligar os dados das diversas cidades e províncias, de forma a poder fazer um rastreio de movimentos nacional. Foi essa app que agora foi desativada, mas as centenas de apps originais de caráter local continuam ativas.

Esse é o passo seguinte, se a intenção é mesmo deixar para trás os mecanismos de controlo pandémico, escreve Kendra Schaefer: “Agora, só precisamos de ver as aplicações a nível local começarem a ser gradualmente eliminadas - isso pode demorar mais tempo, mas vai acontecer. E que alegria isso será.”

Receio antes da grande vaga de infeções

Para já, enquanto o levantamento dos controlos e restrições é visto como algo positivo para uma população que estava no limite da tolerância (o que levou às inesperadas manifestações do final de novembro) e para as perspectivas de crescimento da China e da economia global a longo prazo, analistas ouvidos pela Reuters avisam que os negócios chineses terão dificuldades nas próximas semanas. 

A população mostra-se cautelosa em retomar a vida normal, pois é esperada uma grande onda de infecções, que pode voltar a perturbar a atividade económica e deixar sob pressão os serviços de saúde, com o risco de fazer disparar o número de vítimas mortais da covid na China. 

Na capital chinesa, escreve a Reuters, os lugares vazios em comboios pendulares e restaurantes abandonados no centro da cidade evidenciam a hesitação de muitas pessoas em abraçar as novas liberdades que lhes são permitidas.

Outro sintoma de que o regresso à normalidade ainda será longo são as longas filas registadas esta segunda-feira à porta das chamadas “clínicas de febre” - instalações dos hospitais chineses para o controlo da covid-19. Um sinal da rápida propagação do vírus, que também motivou uma corrida às farmácias, para a compra de auto-testes e medicamentos para a febre.

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