A conversa com Cavaco, a prisão de Pedroso e os "meses piores da minha existência". Ferro Rodrigues faz revelações sobre o processo Casa Pia no novo livro de memórias

19 dez 2023, 18:30
Eduardo Ferro Rodrigues (Lusa/Rodrigo Antunes)

Em "Assim vejo a minha vida", publicado em outubro deste ano, o ex-Presidente da Assembleia da República dedica um subcapítulo ao infame processo judicial, onde lança várias críticas à atuação do Ministério Público

“Foram os meses (anos…) piores da minha existência”. É desta forma que Eduardo Ferro Rodrigues, no seu recentemente lançado livro de memórias, caracteriza o período em que o seu nome foi implicado no processo Casa Pia antes de lançar uma série de críticas ao Ministério Público e à investigação às suspeitas da existência de uma rede de pedofilia a partir daquela instituição de acolhimento de menores. “A verdade não assistia a caluniadores, a pasquins ou a magistrados mais ou menos alucinados”, escreveu o antigo presidente da Assembleia da República e ex-secretário-geral do Partido Socialista.

“Assim vejo a minha vida” (Editora Objectiva), o novo livro de Eduardo Ferro Rodrigues, publicado em outubro deste ano e que esta terça-feira foi apresentado por Rui Rio na Universidade do Porto, dedica um subcapítulo ao tema e, em seis páginas, vinca que a primeira vez que teve conhecimento que o seu nome constava no processo foi por intermédio de uma colega da mulher que trabalhava no Ministério da Economia. “Lembro-me perfeitamente de me ter rido e, com franca ingenuidade, ter afirmado que, se alguém fizesse tal calúnia, apanharia um processo que não mais se iria levantar”.

Depois deste primeiro alerta, conta, aconteceu algo “infernal”. “Sou avisado de que num recurso para a Relação feito por um dos arguidos estava nas alegações do Ministério Público o nome de Paulo Pedroso e o meu e que um dos magistrados teria mesmo dito: ‘O Pedroso está lixado, e o Ferrinho também não se safa”. 

Ferro Rodrigues recorda também que soube que a “situação era muito grave por intermédio de José António Vieira da Silva, António Costa e Paulo Pedroso” quando regressava de França e descreve como um “dia negro para a democracia” o dia em que o juiz Rui Teixeira foi à Assembleia da República notificar o ex-deputado socialista Paulo Pedroso, em maio de 2003 - uma “brutal iniciativa” fundamentada por “escutas telefónicas com conversas e interpretações erradas e quase analfabetas”.

“Foi um dia marcante por péssimos motivos. Vários deputados do PS tinham sido convidados pelo FCP, juntamente com parlamentares de outros partidos, para acompanhar a final de Sevilha que daria a Taça UEFA ao Futebol Clube do Porto. Paulo Pedroso, portista desde sempre, seria um deles. Claro que não foi, e ainda tive de explicar a outros que foram o porquê da sua ausência”, escreveu Ferro Rodrigues, acrescentando que o interrogatório a Pedroso tornou “clara a intenção de prender o deputado”.

No seu livro, Ferro Rodrigues conta mesmo que chegou a partilhar as preocupações que tinha com Cavaco Silva, nessa altura há oito anos fora do Governo, no dia em que ambos marcaram presença numa homenagem ao professor Silva Lopes no ISCEF. “Tive ocasião de lhe contar o que se passara na véspera com a prisão de Paulo Pedroso, o mandado do juiz Rui Teixeira e tudo o resto. Ouviu-me com muita atenção e disse-me que também estava muito preocupado. Realmente, a intervenção do poder judicial no poder político tinha sido de modo a causar perturbação a todos, adversários e companheiros”.

O antigo Presidente da AR revela ainda um episódio aquando da sua audição como testemunha no processo durante “uma manhã inteira em que só três quartos de hora foram preenchidos com perguntas e declarações minhas”. Esse dia culminou, conta, com o procurador do caso, João Guerra, a dizer-lhe que “se contasse alguma coisa do que se tinha passado, deixaria de ser testemunha e passaria a ser arguido”.

Paulo Pedroso permaneceu em prisão preventiva entre maio e outubro de 2003, no âmbito do inquérito então em curso. Quando foi libertado, Ferro Rodrigues e António Costa discordaram da forma como devia ter sido recebido. “Apesar das recomendações em sentido contrário” do agora primeiro-ministro demissionário, “insisti que se o tinham prendido no Parlamento, era ao Parlamento que teria de regressar em liberdade”. 

Conta, no entanto o na altura Secretário-Geral do PS que não mediu “as consequências desse regresso”. “As televisões fizeram um reality show, em que acabámos por participar; a confusão nos corredores do Parlamento foi muito grande, os ataques a que fui sujeito por causa da receção ao antigo arguido foram enormes”.

A relação com Cavaco, as revelações da 'geringonça' e o fim de ciclo

No seu livro de memórias, Ferro Rodrigues reconta o percurso nos bastidores políticos que culminou no acordo de governação que juntou o PS ao Bloco e à CDU, referindo por várias vezes que Cavaco Silva, na altura o Presidente da República, explicitou preocupações e manifestou-se contra a solução.

Depois de ser eleito como presidente da Assembleia da República, em outubro de 2015, Ferro Rodrigues fez parte de uma delegação do Partido Socialista a Belém “com António Costa à frente”, e foi nesta ocasião que Cavaco “tentou impedir a alternativa governativa que se apresentava pela primeira vez”, “Uma possibilidade que no livro, descreve, foi negociada com “hesitações e oposições internas”.

A relação com Cavaco Silva, diz Ferro Rodrigues, “foi sempre muito difícil e em boa parte litigiosa” e quando chegou a altura do Natal,  já com António Costa à frente do Governo, o antigo presidente da AR conta que o clima era tão de “cortar à faca” que o ex-Presidente da República deu a “entender que chegou a pensar romper com a prática habitual” de felicitações festivas entre a Presidência da República e o Governo, “avisando para os perigos de um governo ideológico”.

Ainda sobre essa relação com o ex-Presidente da República, Ferro Rodrigues relembra o seu discurso no dia em que Marcelo tomou posse. Diz que “teve todo o cuidado de não só não cometer qualquer indelicadeza para com Cavaco Silva” e que fez “tenção de se referir a ele de modo institucionalmente elogioso”, o que foi “uma surpresa” para muitos dos presentes, “alguns dos quais” lhe “murmuraram” “que deveria ter sido difícil”. “Não foi”, afirma, mas critica Cavaco por não ter “resistido à tentação de não ir aos cumprimentos oficiais ao novo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa”. “Foi a única mancha de uma cerimónia que decorreu com toda a dignidade”.

Mas se os tempos da geringonça são descritos por Ferro Rodrigues como de bons entendimentos em que a “democracia e o país respiravam um ar mais puro”, o começo do final do acordo de incidência parlamentar entre PS, Bloco e CDU - que levou ao chumbo do Orçamento do Estado para 2022 e a subsequente queda do Governo - existia uma “clara preocupação sobre o futuro do país” entre PAR, PR e PM.

“O primeiro-ministro fazia tudo o que era possível (e mesmo algumas cedências que à partida pareciam impossíveis) para que houvesse fumo branco. É falso que tivesse qualquer estratégia de rompimento para fazer eleições antecipadas”, escreve.

Foi nesse período, a 23 de outubro de 2021, que Ferro Rodrigues organizou um almoço no Solar dos Presuntos, informando Marcelo e Costa que, caso houvesse chumbo do Orçamento, dissolução do Parlamento e eleições , “não seria candidato nem sequer a deputado”. “Não dei muitas explicações, disse apenas que não tinha condições físicas nem anímicas para continuar”, conta o ex-presidente da Assembleia da República.

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