"Mais cedo ou mais tarde vamos ter um colapso ecológico". Deixar de comer carne pode ser um primeiro passo para salvar o planeta?

21 abr, 18:00
O eurodeputado Francisco Guerreiro no hospital vegan no Líbano (DR)

Esse é o desafio colocado pelo documentário "Carne: a pegada insustentável". O eurodeputado ecologista Francisco Guerreiro acredita que a mudança no sistema produtivo agro-alimentar é urgente: "Mais cedo ou mais tarde vamos ter um colapso ecológico e as pessoas vão ter mesmo de repensar o seu modo de estar na vida"

"Fui educada com o 'não me apetece comer mais, então come só a carne', a carne é que era o importante, podia até deixar um prato cheio de legumes, mas tinha sempre de comer a carne", recorda Joana da Conceição. "As pessoas passaram muita fome até há pouco tempo, a carne era consumida pelas pessoas mais ricas e que também eram mais saudáveis", por isso, é natural que quando finalmente a carne se tornou um produto acessível todos quisessem consumi-la - até ao exagero. Mas tem mesmo de ser assim? Foi por causa do filho, que se tornou vegetariano, que Joana decidiu começar a informar-se sobre o tema e também a experimentar cozinhar pratos sem carne. Hoje, toda a família é vegetariana.

Deixar de comer carne ou mesmo deixar de consumir produtos de origem animal pode ser um primeiro passo não só para nos tornarmos mais saudáveis como para garantirmos que o nosso mundo será mais sustentável - pelo menos é isso que defende Francisco Guerreiro, eurodeputado independente do Grupo Parlamentar Europeu Verdes/Aliança Livre Europeia e responsável pelo documentário "Carne: a pegada insustentável".

Francisco Guerreiro queria usar o financiamento a que tem direito como eurodeputado para falar sobre como a produção agro-alimentar é um dos principais fatores responsáveis pelas alterações climáticas e também como a estrutura de poder que está instituída na nossa sociedade tem dificultado uma mudança nesse sistema de produção. "Podemos usar esse dinheiro para organizar conferências, publicar livros, o que quisermos. Eu achei que uma maneira interessante de abordar o tema seria fazer um documentário", explica à CNN Portugal. Para isso convidou o realizador Hugo de Almeida, com quem já tinha trabalhado num documentário sobre o Rendimento Básico Internacional

"Queríamos fazer algo diferenciador", diz. "A maior partes dos filmes sobre esta matéria são graficamente muito violentos e têm uma componente muito moralista. Nós queríamos apresentar os dados científicos, falar dos exemplos positivos que já existem na sociedade, pessoas, empresas e instituições que já estão a implementar esta transição, e deixar aos espectadores as bases para se questionarem e para tomarem as suas próprias decisões."

O filme vai estar disponível gratuitamente nas redes sociais do grupo parlamentar a partir desta segunda-feira, Dia Internacional da Terra, e também na plataforma internacional WaterBear. Além disso, o documentário está disponível para ser apresentado em escolas e outras instituições que o requisitem. "Temos feito sessões em todo o país, sempre acompanhadas de debate, e vamos continuar a fazê-lo", garante Francisco Guerreiro, que, apesar de em breve terminar o seu mandato no Parlamento Europeu, vai continuar dedicado a esta causa.

"A minha mãe foi professora de biologia, desde pequeno víamos juntos o 'BBC - Vida Selvagem' aos domingos", recorda. "Fui-me tornando ecologista, fazendo a separação de resíduos, comecei a apanhar lixo nas praias e nas serras há muitos anos. Mas nunca relacionei a minha pegada ecológica com o que punha no prato, até ao dia em que vi o documentário 'Earthlinks' [filme de 2005, realizado por Shaun Monson e com a participação de Joaquin Phoenix] que é muito violento, pela natureza violenta do sistema pecuário, e então decidi que não queria participar nesta indústria e no dia seguinte tornei-me vegetariano", conta Francisco Guerreiro. "Na altura ainda havia pouca oferta e ainda consumia alguns produtos como ovos, mas depois achei que estava a ser incoerente e rapidamente larguei os ovos, o leite, o mel e todos os outros produtos de origem animal e adotei um estilo de vida vegano. E vou influenciando, de um modo que eu acho positivo, sem nenhum tipo de moralismo, as pessoas que estão à minha volta, não só em casa - a minha mulher e as minhas filhas também são vegan, por vontade própria - e depois no meu círculo de amigos e através da política. Felizmente tenho tido resultados muito positivos. Nós devemos ser exemplos e depois quem quiser seguir o exemplo falo-á."

A sua história é uma das que são contadas no documentário, assim como, entre outras, a história de Joana, a da jovem Emília que já convenceu a avó a cozinhar-lhe pratos vegetarianos, a de Gabriel Mateus que mudou completamente o seu estilo de vida para salvar a filha doente, a de Ivone e Josephus Ingen Housz, que se mudaram para o campo e transformaram a Quinta das Águias num santuário animal, ou a de Tiago Alves, que produzia enchidos de carne e hoje é um dos grandes produtores de alheiras vegetarianas. 

"Existem muitas pessoas a evoluir e a mudar a sua vida, mas ainda não é suficiente", alerta o eurodeputado. O documentário trata o tema por três grandes ângulos: o modo como o consumo de carne afeta a saúde das pessoas; a questão ecológica (emissões de carbono e biodiversidade) e os direitos animais. "Temos de falar sobre esta urgência, não só individual mas coletiva, de transitarmos para um modelo com menos consumo de proteínas animais ou mesmo sem consumo", defende Francisco Guerreiro. "Parece-me muito redutor não olharmos para a questão agro-alimentar como o caminho mais rápido para fazermos a descarbonização, estamos sempre a apontar baterias às indústrias energéticas e aos combustíveis fósseis, mas esquecemo-nos desta indústria agro-pecuária que é altamente poluente", argumenta. "A agricultura é o maior destruidor da biodiversidade da União Europeia."

Francisco Guerreiro sabe que as mudanças individuais são importantes mas o que é necessário neste momento são mudanças políticas. No seu trabalho como eurodeputado teve oportunidade de perceber como funcionam os lóbis da indústria agro-pecuária e como os políticos continuam reféns de um sistema liberal e capitalista que se baseia na exploração dos seres humanos e na exploração dos recursos humanos, de forma desenfreada, tendo como principal objetivo o lucro. "Não é o veganismo que vai solucionar todos os problemas da sociedade", mas pode ser um impulsionador de outras mudanças, económicas e políticas, defende.

"Com este documentário queremos alertar as pessoas para que estejam preparadas. Estas mudanças são difíceis", admite - lidam com questões culturais, implicam a reestruturação do sistema produtivo agro-alimentar, a reformulação de empresas, a reconversão de trabalhadores -, "mas teremos de as fazer mais cedo ou mais tarde porque será impossível termos um planeta e uma sociedade prósperos se continuarmos com estes consumos assoberbados de proteínas animais". "Não existe solução mantendo o mesmo sistema, seja político, seja agro-alimentar, seja energético. A transição envolve debate e opções e envolve mudanças", aponta.

"A lei da restauração da natureza foi aprovada à tangente mas tem dois efeitos muito estruturais: primeiro assumir que o modelo económico que nós temos está a levar à destruição dos ecossistemas, temos de legislar para restaurar a natureza. É admitir que o que temos feito, este modelo, tem levado a este colapso. E, também, dizer que precisamos de acelerar este processo de restauração, precisamos de ir mais além." Não podemos perder mais tempo, sublinha o ativista.

E, depois, garante, "isso trará benefícios para todos: teremos mais ar limpo, mais terra arável, mais biodiversidade, menos problemas de saúde, mais riqueza também a nível económico". "Não existe é o hábito de pensar a longo prazo, pensamos sempre em ciclos de quatro ou cinco anos. Infelizmente, os ciclos ecológicos não se regem pelos nossos ciclos políticos e mais cedo ou mais tarde vamos ter um colapso ecológico e as pessoas vão ter mesmo de repensar o seu modo de estar na vida."

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