Motoristas despedidos por cumprirem lei de cargas e descargas

16 dez 2021, 07:03
Camionagem

Gravação de trabalhador a ser dispensado fez vir ao de cima novas queixas no setor do transporte de mercadorias, após a greve de 2019 que quase fez parar o país

“Não vais carregar, pois não? Então tira a chave, dá-me o cartão e podes ir à tua vida, que eu vou-te dispensar”. A gravação circulou com rapidez entre os motoristas de mercadorias. Um condutor é dispensado por se recusar a fazer cargas e descargas. E não é caso único, garante o Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM).

“São pressionados e ameaçados para fazerem cargas e descargas. O sindicato tem registo de queixas”, assegura o dirigente sindical Anacleto Rodrigues. Se a tarefa sempre foi uma realidade entre estes profissionais, há agora um novo aspeto a ter em conta: um novo decreto-lei, que entrou em vigor em meados de setembro, impede-os de por e tirar mercadorias dos camiões.

Jorge Ferreira, 52 anos, conta que foi dispensado, ainda antes da lei estar em vigor, pelo mesmo motivo. “Fui castigado. Cheguei a estar 15 dias sentado à espera que me dessem alguma coisa para fazer”, recorda. Perante as situações de outros colegas de profissão, não tem dúvidas ao dizer que “isto está a tornar-se recorrente”.

O que diz a lei?

Depois da greve dos motoristas de pesados, que quase parou o país em 2019, começou a trabalhar-se numa das exigências antigas destes profissionais: não terem de fazer cargas e descargas. O Governo constituiu um grupo de trabalho para o efeito, do qual saíram as novas regras publicadas este ano.

“As operações de carga e descarga de mercadoria devem ser realizadas pelo expedidor ou pelo destinatário da mercadoria”, pode ler-se. Se estes últimos não puderem, e estando esses momentos integrados no contrato, a empresa transportadora deve ter um trabalhador para essas funções específicas. “A partir do momento em que a empresa assume a responsabilidade, deve ser feito por alguém que não o motorista”, insiste o motorista Jorge Ferreira.

Mas esta lei, assim como o Contrato Coletivo de Trabalho, preveem exceções. Assim, um camionista poderá fazer cargas e descargas no transporte de mercadoria de armazéns centrais (como plataformas logísticas de hipermercados) para lojas, no transporte porta a porta e em mudanças.

Depois, pelas condições de segurança relativas à própria carga, o transporte de automóveis e a granel (onde se incluem combustíveis, por exemplo) também integram a lista de exceções. Para todas estas situações, está previsto um subsídio diário de 2,5 euros.

Patrões rejeitam acusações

“És obrigado. Recebes subsídio de cargas e descargas. Ainda agora me estive a informar. Informa-te como deve ser, antes de dizeres que não [fazes o trabalho]”, ouve-se a chefia dizer no mesmo som. O trabalhador ainda cita a nova lei mas é de imediato confrontado: “Mas qual lei?”.

A situação terá acontecido na empresa Santos e Vale. À CNN Portugal, a transportadora reconhece a existência da gravação mas diz desconhecer se é protagonizada por um trabalhador seu. “Vamos proceder à averiguação, já que uma publicação nas redes sociais faz a associação à empresa”, explica João Raimundo, diretor do departamento jurídico.

Mas, a partir do áudio, foi possível identificar o trabalhador alegadamente dispensado. Sobre este funcionário, o porta-voz da Santos e Vale refere que “foi contratado para trabalho temporário” a 7 de julho. Este “contrato só terminou a 1 de dezembro”, já depois da gravação ter vindo a público, porque “a necessidade que levou à contratação deixou de existir”.

O funcionário em causa, segundo a empresa, estaria “a fazer serviço porta a porta”, que é uma das exceções previstas na lei. “Recusou-se a fazer um serviço que estava previsto nas exceções”, explica João Raimundo.

Questionada sobre as denúncias do sindicato, a Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM), que representa as empresas de transporte, diz não ter recebido queixas relativas à dispensa de trabalhadores. Ainda assim, reforça que o pagamento do subsídio de cargas e descargas não obriga, de forma automática, o motorista a essa tarefa.

“Se não pode fazer descargas, não é por se pagar esse subsídio que passa a poder fazer. A lei é muito clara. Porém, uma vez mais, diga-se, a ANTRAM não conhece essas situações”, reage o porta-voz André Matias de Almeida.

Trabalho temporário contraria acordo coletivo

 “Não tenho que mandar [carta registada para te dispensar]. Estás em trabalho temporário”. Esta é outra das frases que gerou revolta entre os profissionais de transporte de mercadoria.

Anacleto Rodrigues, que lidera o Sindicato Independente dos Motoristas de Mercadorias (SIMM), fala num novo atropelo às regras do Contrato Coletivo de Trabalho. No documento, pode ler-se que as empresas de transporte estão impedidas de “estabelecer contratos com empresas que subcontratem mão-de-obra direta, salvo com o acordo da comissão paritária”.

O problema é que esta comissão paritária, que junta representantes de patrões e trabalhadores, não foi ainda formalmente constituída, diz Anacleto Rodrigues.

“Hoje ninguém entra diretamente para as empresas. É tudo por trabalho temporário”, conta o motorista Jorge Ferreira.

Inspeção ‘encolheu’ com pandemia

A CNN Portugal questionou a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para perceber se existem queixas de trabalhadores por violação da lei de cargas e descargas. Em resposta, a entidade diz que recebeu, desde 2019, 4.067 pedidos de intervenção no setor do transporte e armazenagem, referentes a 1.554 empresas. “No entanto, estas queixas abrangem matérias diversas, não sendo possível desagregar para a temática solicitada”, justifica.

No que respeita ao controlo das operações de carga e descarga, a ACT dá conta de ações locais em Lisboa e no Porto, iniciadas em novembro passado. O organismo partilhou ainda os dados de 2020 nesta matéria: foram abertos 158 processos inspetivos, em 202 empresas, que abrangiam 4.922 trabalhadores. Foram autuadas 18 infrações.

Já no que respeita ao controlo de condições de condução e repouso em transportes rodoviários, o ano de 2020 – marcado pela pandemia – ficou muito longe dos anteriores. Em alguns casos, os indicadores chegam a representar menos de metade. Os inspetores da ACT controlaram 151209 dias de condução, fazendo 426 visitas. Foram 106 as infrações autuadas, com um valor na ordem dos 118 mil euros. Em 2019, por exemplo, esse valor tinha ultrapassado os 400 mil euros, para 329 infrações.

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