É possível imaginar a prática de Medicina a funcionar de forma tendencialmente graciosa? Como teria evoluído esta área de conhecimento, vital para os seres humanos, se a maioria dos médicos fosse voluntária? Estaria ela tão especializada e a permitir salvar tantas vidas?
É possível colocar o mesmo conjunto de perguntas em relação à Segurança Pública. Poderia a Segurança Pública ser producente se funcionasse, maioritariamente, de forma voluntária?
E a atividade de Bombeiro? Poderá este setor atingir a eficácia potencial quando uma parte significativa do contingente operacional assenta num sistema não-profissional, de voluntariado?
As três atividades acima enunciadas têm um importantíssimo ponto em comum: em última instância, todas visam salvaguardar vidas humanas. E em duas delas, este desígnio pode, objetivamente, colocar em risco a vida dos próprios operacionais. Pela natureza insubstituível das três atividades no quadro do normal funcionamento de uma sociedade, qualquer um dos seus intervenientes diretos deveria ser objeto de valorização salarial máxima. No mínimo, parece razoável.
No mesmo sentido, é lógico admitir que quanto mais alto for o rendimento económico associado a uma atividade profissional, maior será o investimento da sociedade em todos os domínios do setor, incluindo no seu sistema de especialização profissional, técnica e académica.
A procura de formação num determinado segmento estimula a oferta formativa e educacional nessa área. Num contexto assim, o conhecimento vai-se especializando cada vez mais. De acordo com esta ideia, a produtividade dos profissionais mais valorizados numa sociedade é impulsionada. Esta lógica aplica-se a todas as atividades profissionais.
Segundo o princípio do custo-benefício, o investimento num determinado domínio só se justifica quando o benefício que decorre da ação for superior ao custo de a fazer. A intuição é o que basta para chegar a esta conclusão.
O benefício para um indivíduo que investe tempo, energia e dinheiro em educação e formação profissional corresponde à expectativa do valor da sua remuneração no futuro. O ciclo é virtuoso. Uma coisa é certa: os países com Produtos Internos Brutos per capita mais elevados também registam níveis de escolarização e de qualificações profissionais superiores.
Como é que o ciclo virtuoso da especialização técnica se desenvolve num setor em que o voluntariado continua a ser prevalecente? O processo estará, decerto, muito longe de ocorrer plenamente. Poder-se-á sempre afirmar que a formação profissional existe; que ela é tida pelos Bombeiros; e que estes estão tecnicamente preparados. Certo. Os Bombeiros Voluntários cumprem “tudo” o que um sistema ainda consideravelmente não-profissional contempla. Mas o investimento da sociedade civil e do poder público num sistema assim será sempre reduzido face ao potencial desse setor. E em Portugal, pelo histórico do país em matéria de incêndios florestais, o potencial do setor deve ser atingido.
Se dúvidas há em relação ao último parágrafo, basta fazer um levantamento muito simples às dificuldades diárias de gestão e de tesouraria das Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários um pouco por todo o país. Para além do cada vez mais difícil recrutamento de novos voluntários, a maior parte das entidades encontra-se na complexa posição de dependência excessiva da “boa-vontade” do poder político local. Para assegurar as suas funções, estas associações carecem de apoios supletivos diversos numa base sistemática. Estão aqui incluídos os apoios financeiros. Os Recursos Humanos destas organizações arriscam as suas próprias vidas para salvar as de outros. Uma atividade assim deveria ser das mais especializadas na sociedade. Como é que as entidades com este Capital Humano dependem, em grande medida, para subsistir, de um sistema de apoios casuísticos e sujeitos a discricionariedade?
Em pleno século XXI, o enquadramento nacional da atividade de Bombeiro vai sendo cada vez mais difícil de compreender. Estes “profissionais” estão inseridos no conjunto muito restrito de atividades que colocam os seus executantes perante perda de vida iminente. O principal objetivo é salvar e socorrer outras vidas humanas. Como é que se aceita que uma atividade com esta singularidade continue a ser amplamente desenvolvida de forma graciosa? Esta questão é ainda mais pertinente num país como Portugal, que é um dos mais expostos ao risco de incêndio na Europa.
Os dados do Sistema Europeu de Informação sobre Incêndios Florestais indicam que, em 2022, Portugal foi o terceiro país da UE com maior área ardida. Isto quer dizer que o país deve, necessariamente, investir muito mais no setor do que a maioria dos restantes Estados-Membros. Entre outras medidas, este investimento passará, obrigatoriamente, pelo aumento do contingente de Bombeiros profissionais. Segundo os últimos dados da Pordata, referentes a 2021, o país tinha um total de 26.123 Bombeiros entre voluntários e profissionais. De acordo com a agência Lusa, 14.000 eram profissionais. Portugal foi o oitavo dos 27 da União Europeia neste domínio. Esta posição no ranking europeu até pode parecer interessante. No entanto, os Estados-Membros da UE têm níveis de risco de incêndio muito dispares. Considerando o risco de incêndio máximo em Portugal, o país deveria estar no grupo dos três primeiros em matéria de número de Bombeiros profissionais. Há um longo caminho a percorrer a este nível.
Os Soldados da Paz são altruístas e corajosos. Considerando o sistema de formação a que a maioria está submetida, também são extraordinariamente competentes. Contudo, nem mesmo estes predicados únicos parecem ser suficientes para contrariar a “magnitude” de algumas tragédias humanas, ambientais e económicas. E é preciso não esquecer que estas tragédias também vão, infelizmente, ano após ano, atingindo diretamente os próprios Bombeiros. Num país como Portugal, a profissionalização do setor é lógica. Mais, pela natureza altamente especializada da atividade, a remuneração destes profissionais deve situar-se acima da média nacional.