Processos interpostos pelo internacional norte-americano Cannon ou por Javi García, treinador-adjunto do Benfica, condicionam axadrezados. Presidente Vítor Murta fala em exclusivo ao Maisfutebol e faz o ponto da situação
Quatro jogos, dez pontos e liderança da Liga. A bandeira de xadrez está desfraldada no topo da tabela classificativa após a primeira paragem para as seleções. O Boavista é primeiro classificado, venceu o campeão Benfica logo no arranque do campeonato, tudo isto após um mercado em que ficou impedido de inscrever reforços por decisão da FIFA.
A punição surge na sequência de vários processos interpostos por ex-jogadores. Os exemplos mais visíveis são os do internacional norte-americano Reggie Cannon e o de Javi García, ex-jogador de Real Madrid, Manchester City e Benfica, entre outros, que atualmente faz parte do staff de Roger Schmidt nos encarnados – já lá iremos.
No defeso, o Boavista perdeu jogadores como Yusupha, o seu melhor marcador, Kenji Gorré, Ricardo Mangas, Cannon ou Bracali.
Sem poder reforçar a equipa, à semelhança do que aconteceu neste mercado com o Rio Ave – embora por motivos distintos –, os axadrezados fazem-se valer da prata da casa e do engenho de Petit.
Do plantel principal fazem parte 13 jovens formados no clube. Alguns, como o guarda-redes João Gonçalves, o lateral Pedro Malheiro ou o avançado Tiago Morais têm sido titulares.
Esta façanha precoce é meritória, mas «circunstancial», afirma o presidente Vítor Murta em exclusivo ao Maisfutebol.
«Não sou um lunático que ache que isto vai permanecer assim e que ficaremos no primeiro lugar. Pretendemos, isso sim, fazer um campeonato tranquilo», começa por dizer ao nosso jornal o dirigente do Boavista, defendendo que a escolha por não inscrever reforços foi consciente e tomada em conjunto com o técnico.
«Já conhecíamos estes miúdos. Não nos surpreende a qualidade que eles têm. Mesmo sem reforços, temos um onze superior ao do ano passado e temos no banco jogadores que podem contribuir para que o Boavista tenha sucesso. Além disso, acima de tudo, a nossa grande mais-valia é o treinador», salienta, reconhecendo a situação financeira delicada que atravessa há anos a SAD que tem como acionista maioritário o empresário hispano-luxemburguês Gérard López: «Não vou negar que temos alguns processos. No ano passado também tivemos impedimentos e resolvemos. Este ano foi diferente. No início da época, juntamente com o Petit, tivemos de tomar a decisão de não nos reforçarmos e fazer um esforço para manter o máximo de jogadores no plantel.»
Javi García saiu para o Benfica e fez queixa à FIFA
De onde resultam, então, os impedimentos que levaram a FIFA a punir o Boavista com a proibição de inscrição de novos jogadores?
Um dos casos que ainda não haviam sido tornados públicos até ao momento e que motiva maior interesse é o de Javi García.
A 28 de julho de 2022, o médio espanhol decidiu pôr um ponto final na carreira e antecipar em um ano a rescisão do seu contrato com o Boavista. Motivo: um convite para integrar o staff técnico de Roger Schmidt como treinador-adjunto do Benfica.
A saída não foi, porém, a custo zero. O Boavista aceitou um acordo para a rescisão imediata a pagar cerca de 50 por cento dos salários da última época do contrato: cerca de 200 mil euros com uma penalização de 20 por cento (40 mil euros) no caso de falhar alguma das três parcelas.
Dado o incumprimento, a 11 de novembro de 2022 Javi García interpôs uma queixa na Câmara de Resolução de Disputas (CRD) da FIFA, que, segundo a documentação consultada pelo Maisfutebol, lhe deu razão numa decisão publicada a 2 de março de 2023.
Por esta dívida não saldada ao ex-jogador de Real Madrid, Manchester City e Benfica, e agora técnico adjunto dos encarnados, o Boavista foi condenado a pagar 240 mil euros e ficou impedido de inscrever jogadores.
Apesar de insólito, este está longe de ser o processo recente que causa a maior dor de cabeça aos axadrezados.
Essa será a dívida ao Dallas FC pela transferência de Reggie Cannon.
A decisão da FIFA – documentação também consultada pelo Maisfutebol –, tomada a 18 de maio de 2021, condena a SAD do Bessa a pagar 1,7 milhões de euros, acrescidos de juros de mora, ao clube da Major League Soccer, além de proibir a inscrição de reforços em caso de não haver acordo.
Vítor Murta tenta esclarecer os dois casos.
«Se o Javi García poderia ter saído livre? Os valores que teríamos em falta caso ele cumprisse os três anos de contrato seriam superiores. Baixámos e acredito que foi uma boa solução para nós também. Quanto ao Cannon, a situação com o Dallas é de um valor mais elevado. Teremos de a resolver. Agora, questão diferente é que ele entretanto rescindiu unilateralmente com o Boavista [no final da última época], sem razão. Não será por acaso que nenhum clube ainda pegou nele. Se o fizer, mais tarde vai ter de indemnizar o Boavista pela atitude que tomou», argumenta o presidente.
Analisando apenas os casos decididos pelo CRD da FIFA na última época, existem outros processos que envolvem o Boavista, embora com impacto financeiro muito menor do que os casos de Cannon ou Javi García.
Os processos mais recentes são por dívidas menores a atletas que pouco jogaram no Bessa, como o peruano Gustavo Dulanto, o mexicano Jesús Gómez e o argentino Imanol Iriberri.
Maior curiosidade desperta a queixa decidida a 14 de setembro de 2022, há exatamente um ano, interposta por Chidozie, que reclamava prémios por objetivos. Nessa decisão, o CRD da FIFA determinou que o Boavista fosse condenado a pagar 86 mil euros mais juros de mora ao central nigeriano, que esta época voltou a integrar o plantel axadrezado, após um empréstimo em 2022/23 aos croatas do Hadjuk Split.
A estas decisões da FIFA juntam-se vários outros processos que correm nos tribunais civis por dívidas a fornecedores ou antigos atletas, muitos decorrentes da gestão de anteriores administrações.
Murta aponta o caminho: valorizar ativos para resolver processos
Qual é então a solução para o futuro imediato do líder da Liga?
Para Vítor Murta a resposta terá de ser em campo e só depois na mesa das negociações.
«Temos de ter uma boa prestação desportiva e depois vender para resolver os impedimentos. Acredito que os jogadores que temos potenciado podem valer muito mais nos mercados que se seguem. Uma proposta no último mercado para vender o Chidozie, o Malheiro, o Bruno Onyemaechi e outros ficava aquém daquelas que poderão aparecer nos mercados futuros. O único jogador que deixámos sair foi o Ricardo Mangas, até porque tínhamos garantias para aquela posição. Por isso, decidimos deixar o plantel como está. Estamos convictos de que o plantel e as propostas que vamos ter no futuro serão melhores do que as de agora, e que se fôssemos ao mercado neste momento teríamos de vender os nossos melhores jogadores e não conseguiríamos ir buscar outros da mesma valia ou superior», assegura o presidente boavisteiro, ciente da premência por decidir estes processos. Sobretudo porque após o impedimento de inscrição de jogadores em três mercados consecutivos pode levar os processos a outras instâncias da FIFA e à aplicação de sanções ainda mais graves.
«Nós temos de resolver estas situações, como sempre temos feito. Neste momento, foi uma questão estratégica, mas temos obrigatoriamente de levantar os impedimentos e pagar o valor devido em alguns processos. Agora, sabemos também que o caminho passa por valorizar os nossos ativos, uma série de jovens jogadores talentosos. Essa será a melhor forma de alcançar um valor que possa fazer face aos problemas que enfrentamos», frisa Vítor Murta, revelando que será «prematuro pensar em inscrever reforços já em janeiro» e que «terá de haver vendas para que esse cenário seja possível».
«Estamos a projetar o nosso futuro e, apesar das dificuldades mesmo em termos de espaço, continuamos a formar bem. É esse o caminho. Valorizar ativos e cumprir com as nossas obrigações. Temos situações que resolvemos há pouco do tempo em que fomos campeões e dos anos que se seguiram», esclarece.
Para já, Petit faz pequenos milagres com o comando da Liga na mão. A 5.ª jornada arranca já esta sexta-feira e fecha na segunda, precisamente com a receção do Boavista ao Desp. Chaves, último classificado e única equipa que ainda não pontuou.
Apesar dos constrangimentos por que passam, em quatro dias os axadrezados voltam a jogar a liderança no Bessa diante do seu público. Circunstancial? Provavelmente. Mas por estes dias os adeptos ganharam o direito terem ambições lunáticas, como numa recordação da inesquecível época 2000/01, quando a pantera furou a hegemonia dos três grandes para arrebatar primeiro campeonato do século. Apesar das dificuldades, por estes dias o clube que já desceu ao inferno e não se livra de um fardo financeiro quase insustentável, mesmo depois de regressar à elite, voltou a ter o direito de se arrogar de Boavistão.