O Bola de Ouro em construção que começou em Portugal

31 out 2023, 00:31
Jude Bellingham (Pedro Salado/Quality Sport Images/Getty Images)

Tal como Messi, também Bellingham se estreou para o futebol profissional numa viagem ao nosso país, quando tinha apenas 16 anos. Depois disso foi sempre a subir, ele que ele é filho de um goleador com mais de 700 golos no futebol amador e que tem um segredo simples para não sentir a pressão. Agora brilha no Real Madrid e só há um destino pela frente: a excelência.

O prémio Kopa foi uma espécie de prefácio para a história que já todos imaginamos: mais ano, menos ano, Jude Bellingham será Bola de Ouro. Aos 20 anos, aliás, é difícil aceitar que o médio inglês esteja destinado a outro caminho que não este: o da excelência.

O que nos leva a mergulhar na história dele: quem é, afinal, este génio precoce?

Ora precoce é aqui, de facto, a palavra-chave. Nascido em Stourbridge, uma cidade industrial a vinte quilómetros de Birmingham, Jude Bellingham habituou-se desde muito cedo a jogar com os mais velhos. Sem receio nenhum, garante quem na altura partilhava o dia a dia.

«A memória que eu tenho é dos jogos no recreio da escola. Ele devia ter uns 11 anos, jogava com rapazes de 16 anos e partia-os em bocados», contou o antigo colega Gerardo Bajrami.

«Nessa altura, com 11, 12, 13 anos, foi quando ele teve um crescimento bem mais acelerado do que os outros miúdos. Era um excelente jogador e obrigava-me a ter todos os treinos bem preparados e organizados», referiu o antigo treinador Mike Dodds, à Sky Sports.

O professor de educação física desses tempos, de resto, acrescenta que Bellingham podia ser o melhor em qualquer modalidade que quisesse. Jogava também críquete, fazia corridas de velocidade, corta-mato e destacava-se em todos os desportos como o melhor.

No entanto, era o futebol que lhe aquecia o coração. Uma paixão herdada do pai.

«Se falarmos sobre ídolos no futebol, o meu pai foi o primeiro e o maior. Acho que é normal, eu ia vê-lo jogar todas as semanas, naqueles jogos do futebol amador. Não era a Premier League, nem nada parecido, mas ver a maneira como ele jogava e vivia aquela atmosfera é que verdadeiramente me fez apaixonar pelo futebol. Por isso ele foi o meu primeiro herói», confessou Bellingham, numa entrevista à Federação Inglesa.

«Comecei a acompanhá-lo muito cedo e comecei a prestar um pouco mais de atenção aos jogos e outras coisas: o ambiente, os golos que ele fazia, a forma como os comemorava. Rapidamente me apaixonei e quis que fosse eu a fazer aquelas coisas.»

O pai de Jude, Mark Bellingham, era um sargento da polícia de West Midlands e ao fim de semana não dispensava o futebol.

Jogou até aos 40 anos e marcou mais de 700 golos, em clubes como East Thurrock, Stourbridge, Leamington, Sutton Coldfield, Bromsgrove Rovers e Halesowen Town: emblemas que jogavam na sexta, sétima, oitava divisão do futebol inglês.

Apesar de tudo, tornou-se uma lenda do futebol não profissional em Inglaterra. Chegou a ser distinguido pelas sete centenas de golos, mas não perdeu a humildade.

«Continuo a dizer que não sou nada de especial e por isso é que estou na sétima divisão. A maior parte dos meus golos foi só encostar, por isso acho que devo mais aos meus colegas do que eles me devem propriamente a mim», referiu o pai, enquanto ainda jogava.

Para o pequeno Jude, porém, ele era o melhor do mundo.

«Quando era criança, o meu pai dava-me dicas sobre como devia fazer. Chega uma idade e isso muda, mas é fantástico termos este tipo de relacionamento entre pai e filho», frisou.

«Mesmo quando fui ficando mais velho, ele nunca deixou ser um treinador para mim.»

Com os anos, porém, tornou-se mais do que apenas treinador: tornou-se empresário. Reformou-se da polícia e passou a dedicar todo o tempo à gestão da carreira do filho.

Foi ele, por exemplo, quem negociou o contrato com o Real Madrid, numa transferência que bateu todos os recordes para um jogador inglês. Antes disso, já tinha também sido ele a negociar a mudança para o Borussia Dortmund, depois de visitar e conhecer o projeto que vários grandes clubes ofereciam ao filho: a tradição formadora fez pender a balança para o Dortmund.

Nessa altura Jude Bellingham já era um dos maiores projetos de jogador do futebol europeu. Para trás tinha ficado uma história como tantas outras: contam os vizinhos de Stourbridge que ele e o irmão, que é dois anos mais novo, passavam o dia a jogar futebol.

«Jude foi sempre um menino agradável. Ele e o irmão colocavam uns cones no chão a fazer de baliza e jogavam dia e noite. Às vezes pedia-nos que jogássemos com eles e chutássemos à baliza. Quando a bola vinha para o meu quintal, educadamente perguntava se podia entrar para a ir buscar», contou o vizinho Mark Williams ao The Independent.

Era uma época em que Jude jogava nas escolinhas do Stourbridge FC. Por pouco tempo, porém. A partir dos sete anos juntou-se ao Birmingham, onde fez toda a formação.

Sempre um passo à frente.

Com 14 anos estreou-se na equipa sub-18, com 15 anos já jogava na equipa sub-23 e pouco depois começou então a ser chamado aos treinos do plantel principal.

O treinador foi-o integrando nas rotinas do plantel profissional e em março até o convocou como 19.º jogador para um jogo do Championship: já sabia que não iria para o banco, mas a ideia era estar com a primeira equipa em estágio e ir-se habituando àquele ambiente.

Para um miúdo de 15 anos e com um salário de 170 euros por semana, era de facto qualquer coisa de especial.

Até que no início da época seguinte, com 16 anos acabados de fazer, Bellingham foi convocado para o estágio de pré-temporada. O destino? Portugal.

O Birmingham veio fazer o estágio a Tróia e Bellingham foi um dos 26 jogadores eleitos. O primeiro jogo por uma equipa principal chegou nessa altura: 11 de julho de 2019, Estádio do Bonfim, em Setúbal, jogo particular frente ao Cova da Piedade.

Era um torneio triangular no qual entrava também o V. Setúbal. O agora craque do Real Madrid entrou na segunda parte desse Birmingham-Cova da Piedade, que acabou empatado (1-1) e foi a penáltis. Curiosamente Bellingham foi um dos jogadores que foi chamado a bater a grande penalidade... e falhou. O que acabou por dar a vitória ao Cova da Piedade.

Podia ser um mau prenúncio, mas já se sabe que não foi. Até porque dois dias depois o Birmingham defrontou o V. Setúbal e Bellingham voltou a entrar como suplente utilizado. O jogo acabou novamente num empate (desta vez 2-2), foi a penáltis e os ingleses perderam novamente. Desta feita, porém, o jovem adolescente não foi chamado a bater.

O certo é que no regresso a Inglaterra, após uma semana em Portugal, Bellingham já era um jogador do plantel principal por direito próprio. Ficou com o dorsal 22 e nunca mais parou.

Curiosamente, e porque o acaso tem sentido de humor, três anos e um dia depois foi a vez do irmão Jody Bellingham cumprir o mesmo trajeto: novamente em Portugal, num estágio de pré-temporada, o mano mais novo tornou-se jogador da equipa profissional do Birmingham.

Desta vez, a 12 de julho de 2022, Jody defrontou num particular o Portimonense, no Estádio da Nora. Não foi a estreia pela equipa, já tinha feito três jogos no final da temporada anterior, mas foi a estreia a titular: todos os três jogos prévios tinham sido como suplente utilizado. A carreira do mano não teve, porém, o mesmo fulgor e hoje, com 18 anos, está no Sunderland.

O destino consegue ser divertido ou não?

Voltando a Jude Bellingham, interessa dizer que no regresso a Inglaterra tudo aconteceu muito depressa. Logo no início de agosto, estreou-se em jogos oficiais frente ao Portsmouth, para a Taça da Liga, tornando-se o mais novo jogador da história do Birmingham.

Ainda nesse mês de agosto, estreou-se no Championship, frente ao Swansea, e nunca mais deixou a equipa. No final da época tinha feito 44 jogos e quatro golos. Com 16 anos, refira-se.

«Recordo-me que ele ainda estava a terminar o ensino secundário e nós treinávamos de manhã. No final do treino costumávamos almoçar na cantina do clube e ele ia sempre com o uniforme escolar. O que era engraçado. Muitos de nós tínhamos filhos em idade escolar e que vestiam o mesmo uniforme. Às vezes até o víamos a sair da escola quando íamos buscar os nossos filhos», conta Maxime Colin, central que agora joga no Metz.

«Mas ele sempre foi muito confiante e não se deixava melindrar minimamente por isso. Lembro-me que logo num dos primeiros treinos, quando estávamos a fazer duelos de um contra um, ele deu um nó num dos nossos defesas e ficamos todos em choque. Quem é este miúdo? Foi nessas alturas, nos treinos da equipa principal, que comecei a perceber que ele era especial.»

Colin não teve de esperar para confirmar que estava certo. No verão seguinte, e apesar de ter cumprido apenas uma temporada na equipa principal do Birmingham – curiosamente uma temporada coletivamente sofrível, em que a equipa só fugiu à despromoção nas últimas jornadas –, Bellingham tinha vários tubarões atrás dele.

Acabou por escolher o Borussia Dortmund e mudou-se, aos 17 anos, para a Alemanha. Mas nem assim deixou de estudar. Inscreveu-se na Universidade de Loughborough, frequentou o ensino à distância e continuou a investir no futuro.

Estudar sempre foi, aliás, uma preocupação do craque. Tanto assim que este verão, quando chegou a Madrid, começou logo a frequentar aulas de castelhano.

Voltando atrás, porém, torna-se fácil perceber como o futebol sempre foi uma coisa importante no seio da família Bellingham. O pai foi jogador, o irmão é jogador e ele é craque. O jovem garante, no entanto, que a pedra basilar de tudo é a mãe.

Denise Bellingham trabalhava numa empresa de recursos humanos, até que em 2020 deixou o emprego para seguir com o filho para Dortmund.

Diz ele que nessa altura ainda lhe fazia a cama todos os dias de manhã.

Foi também nessa fase que a família se separou pela primeira vez. A pandemia, a obrigação de isolamento e as restrições de circulação fizeram com que Jude e a mãe ficassem em Dortmund, enquanto Jody e o pai permaneceram em Birmingham.

«O papel da minha mãe na minha vida é enorme. É o papel mais importante de todos. Mais do que os meus professores ou os meus treinadores, foi ele quem me fez manter sempre os pés no chão. É uma ligação muito forte que tenho com ela», explicou o próprio Jude.

E a verdade é que houve uma fase em que o miúdo precisou de descer à terra. Basta lembrar quando, em fevereiro de 2022, ele foi apanhado pelas câmaras a insultar o colega Nico Schulz após este falhar um passe, num jogo da Liga Europa frente ao Rangers. O que causou um grande mal-estar no balneário do Borussia Dortmund.

O capitão Emre Can veio até a público criticar Belligham, lembrando-lhe que «ainda é jovem» e acrescentando que tinha de perceber «que ainda tem muito para aprender».

O que é certo é que o inglês aprendeu. Tanto assim que se tornou um dos capitães do Borussia, mesmo antes de completar 20 anos. A capacidade de liderança, aliás, tornou-se um dos pontos fortes dele, somando a uma admirável capacidade de lidar com a pressão.

Bellingham tem, aliás, uma forma curiosa de enfrentar a pressão.

«Só sente a pressão quem está mal preparado ou não tem confiança nele. Como me preparo sempre bem e tenho confiança em mim de sobra, nunca sinto a pressão», disse um dia.

Este verão, com a mudança para Madrid, tornou-se umas das grandes figuras da atualidade. A confiança transbordante, os movimentos de rutura, a mudança de velocidade, a amplitude de movimentos e a recente capacidade goleadora, impulsionada pela subida no terreno, fazem de Bellingham um dos craques do momento.

Ele que se inspira no ídolo Zidane e até escolheu por isso o número cinco.

Esta segunda-feira ganhou o prémio Kopa, para melhor jogador jovem do futebol, e tem a Bola de Ouro no horizonte. Não deve tardar muito, mas aos vinte anos tem todo o tempo para lá chegar. Ele que, sim, parece destinado a atingir a excelência.

 

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