Tudo começou num parágrafo e pode acabar com o sonho europeu de Costa (e a culpa é da morosidade da Justiça)

11 abr, 23:10

Charles Michel deixa o cargo de presidente do Conselho Europeu a 30 de novembro e o ex-primeiro-ministro português é um dos candidatos em cima da mesa. Todavia, três advogados falaram com a CNN Portugal, todos disseram que muito dificilmente António Costa já não estará na mira da Justiça no final do ano

A primeira peça a cair desta fila de dominó foi o parágrafo escrito pela procuradora-geral da República, Lucília Gago. A reação saiu da boca do próprio António Costa: a demissão de voz embargada. O tempo passou - mais precisamente 157 dias, o que equivale a cinco meses e quatro dias - e, esta quinta-feira, nova peça tombou: o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu esta quinta-feira fazer descer a investigação ao ex-primeiro-ministro António Costa para o DCIAP. A peça seguinte também já parece estar inclinada e com o seu destino quase traçado. Trata-se da provável intenção de candidatura do ex-governante à presidência do Conselho Europeu.

O mandato do atual presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, termina a 30 de novembro, data em que os potenciais candidatos já têm de ter entregue uma candidatura. E António Costa é visto como um dos potenciais candidatos. No entanto, agora que o processo em que surge o nome do ex-primeiro-ministro mudou de mãos, é expectável que a apreciação por parte de novos magistrados, que nunca tiveram contacto com o processo que ditou o colapso do Governo socialista de maioria absoluta, seja mais demorada. 

À CNN Portugal, três advogados deram a mesma resposta: o caso que envolve António Costa não estará resolvido até ao fim do ano, passando assim a janela de oportunidade para o renascer de Costa na Europa. O presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, João Massano, considera este um cenário "muito difícil": "Repare-se no tempo que já passou desde o famoso parágrafo até hoje e só ainda tivemos uma decisão de remeter o processo para o DCIAP".

O primeiro-ministro António Costa depois de ter anunciado a sua demissão, a 7 de novembro de 2023. (Associated Press)

"De forma nenhuma está finalizado até ao fim do ano", garante também o advogado Paulo Saragoça da Matta, acrescentando que "demorará muito mais". O penalista diz que a única hipótese para que as suspeitas que recaem sobre o ex-primeiro-ministro desaparecessem seria ocorrer "um arquivamento imediato por um lapso", no entanto, realça que "não acredita que tal acontecesse num caso desta dimensão" e que, a confirmar-se, a Procuradoria-Geral da República sairia muito mal vista de todo o processo.

"Estamos a falar de investigações complexas e que envolvem bastantes arguidos. Não creio que seja fácil acabar em tão curto prazo, a não ser que seja efetuado um arquivamento das suspeitas contra António Costa. Por exemplo, o DCIAP pegar no caso e entender que não há indícios contra o ex-primeiro-ministro e arquive o caso", diz João Massano, para quem esta será também a única hipótese de António Costa sair da mira da Justiça, explicando: "Pode acontecer que alguém pegue no processo e entenda que não há indícios contra o dr. António Costa, mas não creio que isso vá acontecer. Não creio que num ano o caso estivesse fechado."

Há base legal para o caso passar do Supremo para o DCIAP?

Lucília Gago já justificou a decisão: "É o DCIAP, no entendimento dos magistrados titulares, o competente para assumir essa investigação". Quanto ao atraso que se espera que o processo venha a ter, a procuradora-geral da República escusou comentários, porque "é uma matéria que é analisada pelos magistrados titulares do processo": "Não posso naturalmente dizer mais nada".

"As investigações criminais tomam o tempo que é necessário para elas avançarem naturalmente com a eficácia desejável, mas tomando o tempo que também é necessário para ultimar essas mesmas investigações, é tão simples quanto isso", resumiu Lucília Gago.

O advogado António Raposo Subtil recua no tempo e lembra que a "decisão de ir para o Supremo já é discutível", lembrando que António Costa não era arguido, não se sabiam que suspeitas recaíam sobre o então primeiro-ministro e que "só aparece como suspeito por uma razão, porque num dos parágrafos da Procuradoria-Geral da República é dito que ele é suspeito".

"Tem de se dizer isso de forma clara – nenhum documento, nenhuma declaração, nenhuma escuta, não há nada que pudesse relacionar o dr. António Costa com este processo ou relacionar-me a mim. É igual. Ninguém sabe se o meu nome consta lá ou o dos senhores jornalistas. O dizer-se que estava no Supremo já é de si uma tentativa de se envolver uma pessoa que nem sequer é suspeita, porque não há factos onde ele esteja relacionado", salienta Raposo Subtil.

Posto isto, Raposo Subtil explica ainda que, no seu entendimento, existem dois fatores que impedem a transição do processo para o DCIAP: o princípio da vinculação do juiz natural e a questão de se o foro especial de primeiro-ministro se mantém. “O princípio da vinculação ao juiz natural é o mesmo que se aplica ao procurador natural e o que é o procurador natural? É aquele que ficou com o processo como resultado de uma distribuição", explica.

Paulo Saragoça da Matta vai ainda mais longe e lembra que há um outro princípio judicial que não pode ser descurado neste caso: "A competência fixa-se no momento da abertura do processo e só em casos muito especiais é alterada", ou seja, se o caso deu entrada num tribunal superior não deveria poder regressar a uma instância menor por colocar "as garantias dos visados em causa", explicando que este "é um principio transversal a todos os processos (penais, fiscais, administrativos, etc)".

"Este é um princípio muito específico que se prende com o facto de a estrutural jurisdicional ter uma organização em pirâmide. Esta pirâmide judiciária parte do principio que há uma primeira instância, segunda instância e tribunais superiores. Os tribunais superiores estão providos com os juízes com maior competência. Ao baixar de instância, o que se está a fazer é prejudicar as garantias das partes envolvidas quer dos arguidos como dos advogados", esclarece o advogado Saragoça da Matta.

João Massano realça que "na pureza dos princípios, estar no DCIAP ou no STJ deveria ser o mesmo, porque deveria chegar-se ao mesmo fim: ambos estão a analisar factos e a tentar chegar à verdade material". "Quero acreditar que não há um prejuízo das garantias, isso seria colocar em causa as capacidades de quem está no DCIAP", diz o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, concordando com a questão que "esta decisão também pode ser admissível de recurso com base no princípio do juiz natural".

António Costa na última reunião do Conselho Europeu em Bruxelas, 11 dias antes da demissão (LUSA)

António Costa continua a ter o foro especial de primeiro-ministro?

O advogado João Massano entende que "a doutrina diverge e depende de quem está a defender o quê". Ainda assim, lembra que a defesa de António Costa poderá sempre "entender que as suspeitas ocorreram enquanto primeiro-ministro e que, por isso, deveria manter o foro especial", com um senão: "Se isso fosse feito atrasaria ainda mais o processo". 

"Esta decisão também pode ser passível de recurso com base no princípio do juiz natural. No entanto, duvido que isso seja feito porque a pressa é querida pela Defesa neste processo", explica Massano, encontrando semelhanças com o caso da invasão à Academia de Alcochete em que "Bruno de Carvalho andava atrás do Ministério Público com o objetivo de prestar declarações e depois nos dias seguintes foi detido".

Para Raposo Subtil, não existem dúvidas quanto à questão do foro especial de primeiro-ministro: "Quando alguém adquire uma competência, guarda essa competência até ao fim do caso". E porquê? Imagine que António Costa afinal tinha sido primeiro-ministro durante mais três ou quatro anos, não se tinha demitido e até tinha sido constituído arguido. Já estava a ser julgado, não se tinha demitido, o mandato chegava ao fim e depois voltava aqui para o tribunal da comarca de Lisboa para o DCIAP para o juiz de primeira instância: isto não faz sentido nenhum”.

As críticas de António Raposo Subtil à gestão deste caso não ficam por aqui. O especialista em Direito entende que António Costa "tinha de ser ouvido e não se devia ter demitido, porque ao demitir-se abandonou a defesa da Constituição".

No entendimento do advogado, a demissão do primeiro-ministro foi um erro que poderá ter reflexos negativos na separação dos três poderes, porque "devia ter-se mantido em funções para dizer que a Constituição reserva um direito fundamental que é a presunção da inocência e que só com a condição de arguido é que se passa a ser parte de um processo judicial". "Não o fez e ao não o fazer está a abalar o sistema", diz Subtil, explicando que "agora já temos mais umas buscas em Cascais que vão mandar abaixo se calhar mais um ministro e amanhã vai ser umas buscas noutro sítio qualquer e, então, isto será um exacerbar discricionário dos poderes do Ministério Público relativamente aos poderes públicos, neste caso poderes executivos".

Quanto às justificações de Lucília Gago, Raposo Subtil classifica "as declarações da sr.ª Procuradora-geral da República de que os procuradores é que sabem são realmente um absurdo". "Para haver separação de poderes é preciso que quem titula o vértice da pirâmide os poderes os assuma como seus", aponta o advogado, considerando que a responsável máxima do poder judicial em Portugal "não pode descartar-se agora da responsabilidade, sabendo que está em causa um ex-primeiro-ministro e, na altura, um primeiro-ministro, para cima de um procurador que leva com um processo que não sabe que matéria tem e no qual poderá estar meses de volta".

Crime e Justiça

Mais Crime e Justiça

Patrocinados