“Apesar de todos os autoelogios, estamos a fazer o mínimo dos mínimos” na redução de gases com efeito estufa

28 out 2023, 22:00
Produção de energia (EPA)

ENTREVISTA || João Joanaz de Melo, um dos maiores especialistas em alterações climáticas e coordenador de um Estudo que alertou o Governo para o risco de o País não estar a convergir com as metas ambientais que assumiu, diz à CNN Portugal que, "a maior parte das recomendações ou acabaram no lixo, ou na gaveta"

“Apesar de todos os autoelogios do Governo, estamos a fazer o mínimo dos mínimos e a contribuir muito pouco para a meta de descarbonização europeia”. A crítica é feita por João Joanaz de Melo, engenheiro do ambiente e investigador em alterações climáticas. Em entrevista à CNN Portugal, o especialista que coordenou um estudo que o Governo tem na “gaveta” há três anos, acusa o executivo de António Costa de continuar a “fazer de conta” que tem “objetivos ambiciosos” para travar o aumento das emissões de carbono, quando, na verdade, os planos apresentados “não têm ambição absolutamente nenhuma”.

João Joanaz de Melo sublinha que um dos exemplos deste “artificío” do Governo é o facto de o Ministério do Ambiente continuar a insistir que Portugal deve chegar a 2030 com uma redução de 45% a 55% das emissões de gases estufa face a 2005, o pior ano do País em termos de emissões, destacando que este não é o ano de referência do resto da Europa. 

“Esta meta está absolutamente obsoleta, já que para a atingirmos basta não fazermos nada, ou fazermos muito pouco”, destaca, sublinhando que os “objetivos do resto da Europa, em relação à ação climática, são baixar as emissões para os níveis de 1990”, portanto, acrescenta, “é absolutamente inaceitável que se tente fazer de conta que há metas ambiciosas se comparadas com o ano de 2005”.

João Joanaz de Melo, doutorado em Engenharia do Ambiente e agregado em Sistemas Ambientais, ​​é Professor Associado na Universidade NOVA de Lisboa, investigador no CENSE, e desenvolve ensino, investigação e consultoria, sobre avaliação e políticas de sustentabilidade, ecodesign, eficiência energética e conservação da natureza, entre outros temas / D.R

No final de 2020, apresentou ao Governo as conclusões do estudo ‘Estratégia energética alternativa: avaliação ambiental e económica’, que é particularmente crítico do Plano Nacional Energia e Clima (PNEC), definindo-o como “muito pouco ambicioso” e alertando que as próprias medidas definidas nesse plano não permitem cumprir várias das metas definidas quer no Acordo de Paris, quer no Pacto Ecológico Europeu. Passaram quase três anos, mantém esta posição?

Relativamente às metas do PNEC, que ainda está em vigor, elas são muito pouco ambiciosas. São ridiculamente pouco ambiciosas. Porque foram desenhadas numa comparação com as emissões que Portugal registava em 2005. Ora, 2005 foi o nosso pior ano, quer em termos de eficiência energética, quer em termos de emissões de gases de efeito estufa. E, portanto, as comparações, ou a referência, tem obviamente de ser a mesma que é usada no resto da Europa.

O resto da Europa vai mais longe nos compromissos assumidos em relação às emissões?

Em relação especificamente às emissões o ano de referência é 1990, é o que consta tanto no Pacto Ecológico Europeu, como no Acordo de Paris. Usar para Portugal a comparação a 2005 não é um erro metodológico inocente, é para fazer de conta que se tem metas ambiciosas, quando, na verdade, essas metas não têm ambição absolutamente nenhuma, porque seriam conseguidas apenas com a normal evolução tecnológica do sistema energético e estão muito aquém daquilo que é necessário e possível.

À CNN Portugal, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática disse que a versão do PNEC que foi submetida à Comissão Europeia em junho de 2023, incluía a meta de baixar as emissões face a 2005 e que esse objetivo “traduz o contributo de Portugal para um objetivo europeu de redução das emissões em, pelo menos, 55% até 2030, face aos níveis de 1990”. 

Estamos a contribuir muito pouco e esse objetivo está muito aquém daquilo que é necessário. Apesar de todos os autoelogios, estamos a fazer o mínimo dos mínimos. Esta meta está absolutamente obsoleta, já que para a atingirmos basta não fazermos nada, ou fazermos muito pouco.

E entende que haja alguma base científica por trás da definição da meta de travar as emissões em Portugal face aos valores de 2005?

Não. Não há base científica nenhuma para se fazer isto. Usou-se o valor do pior ano de emissões para que parecesse que estamos a ter uma grande redução, quando na verdade não estamos a convergir para as metas que nos comprometemos a cumprir.

Mas acredita que não vamos conseguir atingir essas metas?

Neste momento, a verdade, é que não estamos a convergir para essas metas. E isto surge depois de um período, entre 2005 e 2010, em que estávamos a convergir para níveis próximos dos de 1990, graças ao aumento da produção de energias renováveis e a alguma eficiência energética moderada, mas já significativa no setor industrial.

Depois, entretanto, veio a crise. E, durante a crise, houve ainda alguma redução. Mas por piores motivos, porque havia empresas a fechar, porque havia famílias que não tinham dinheiro para pagar a eletricidade e, quando a crise acabou, a tendência passou a ser de subida das emissões. Depois veio a pandemia e caiu outra vez. Depois veio a guerra na Ucrânia e houve aqui mais umas oscilações. E neste período de instabilidade, nunca foram postas em prática medidas estruturais ao nível das emissões do Pacto Ecológico Europeu, estamos muito longe desses níveis. 

E, portanto, isto é, de facto, escandaloso. Mas a verdade é que as autoridades não têm mostrado grande interesse em discutir este assunto. 

Desde a apresentação do estudo, estes alertas têm sido comunicados ao Governo?

Sim, várias vezes ao longo dos anos.

Incluindo o atual ministro, Duarte Cordeiro? 

Com o atual ministro tive uma conversa de quase dois minutos sobre este assunto. Disse-me que era um assunto importante e que havíamos de conversar. Isto foi há meses. Ou seja, nunca deixou de haver contacto, o que não houve foi progresso suficiente nas políticas em si. Houve alguns avanços em alguns aspetos, por exemplo, algumas das medidas que propúnhamos já foram implementadas, como por exemplo os passes gratuitos para os jovens. Portanto, há pontualmente algumas coisas que estão a ser implementadas, mas aqui a questão fundamental é que, para atingirmos determinadas metas, tem de haver medidas à escala dessas metas. E é essa discussão que nós fazemos em detalhe nesse relatório e a maior parte dessas medidas não foram sequer consideradas, não foram sequer equacionadas.

Está a referir-se a alguma das medidas em particular deste estudo?

Há uma medida que o Governo até agora não quis discutir, que é a ideia de haver uma taxa de carbono que substituísse o ISP e que abrangesse todas as atividades. Porque se não houver um sinal de preço ao mercado todo de que poluir é caro, se esse sinal não for absolutamente claro, nunca vai haver redução significativa de emissões.

A proposta é que a taxa se reflita em 120 euros por tonelada de CO2 e atinja os 190 euros por tonelada em 2030.

Para incentivarmos alternativas menos poluentes, o dinheiro tem de vir de algum lado. E, portanto, a única forma de fazer isto é penalizar os maus comportamentos, no fundo penalizar a poluição e os impactos ambientais, e usar essa receita fiscal para incentivar comportamentos positivos e que de facto reduzam as emissões, principalmente pela via de eficiência energética. 

Quando questionado sobre a premência desta medida proposta no estudo, o Ministério do Ambiente apontou para o facto de em 2015 ter sido criada uma taxa de carbono, através de um adicionamento ISP, às atividades que não estavam ainda sujeitas à regulação das emissões. Isto, “permitiria que a generalidade das emissões nacionais esteja atualmente sujeita a um preço de carbono”.

O problema é que estamos a falar de cêntimos e as pessoas nem notam que essa contribuição existe. Seria preciso que o valor cobrado fosse três vezes maior e, por outro lado, que existisse um reinvestimento dessa taxa em meios alternativos de transporte, nomeadamente nos transportes públicos, ou em incentivos fiscais para a eficiência energética.

O estudo que foi apresentado alertava também para investimentos que têm sido feitos em nome do combate às alterações climáticas que são ineficazes. A que se refere?

Há um conjunto de medidas que foram postas em prática, em alguns casos com custos elevados, que são completamente ineficazes ou, em alguns casos, mesmo contraproducentes. Financiaram-se as grandes barragens, o Programa Nacional de Barragens, foi um verdadeiro crime de lesa-pátria, porque se destruíram os nossos melhores rios, no seu estado natural, para produzir qualquer coisa como 0,2% da energia do país a um preço duplo ou triplo da média do mercado de eletricidade. Depois, investiu-se qualquer coisa na casa dos 10 mil milhões de euros em autoestradas desnecessárias. Mais de metade dos troços de autoestrada não têm tráfego que justifique a sua existência.

Recentemente foi anunciado um novo alargamento do IC20, como olha para isto?

É um caso paradigmático ao nível do ridículo. O IC20 é uma via rápida que liga dois funis. Um funil chama-se Costa da Caparica e outro funil chama-se Ponte 25 de Abril. E, portanto, não adianta nada eu pôr um cano mais largo quando tenho um funil em cada ponta. Vai ser um despender de dinheiro totalmente inútil.

O ministro do Ambiente tem vindo a reiterar ao longo do último ano que o País deve antecipar o prazo europeu da neutralidade carbónica em cinco anos. Acredita que é uma ambição realista?

Estou a rir porque nem sequer estamos no caminho de convergência para cumprir as metas de 2030. E portanto, falar é fácil, qualquer um pode dizer o que quiser sobre as metas de 2045, porque não está a assumir responsabilidade nenhuma, não vai cá estar quando isso acontecer, não é? 

A ideia manifestada pelo ministro é chegar a 2045 com uma redução entre 85 e 90% das emissões de gases com efeitos de estufa.

Acho que essa meta, teoricamente, do ponto de vista, vamos chamar, tecnológico, essa meta até é alcançável. E obviamente, como defensor do ambiente, sou adepto que se tenha essa ambição. O que acho é que essa declaração é oca, porque não tem nada por trás a justificá-la. Não se pode dizer que isso vai acontecer, porque nem temos em cima da mesa medidas para cumprir as metas de 2030, portanto como vamos responder às metas de 2045? Isto é o país das maravilhas.

Tem vindo a público defender que as ações de ativismo climático que temos observado nas últimas semanas, nomeadamente o ataque a ministros com tinta, têm prejudicado a defesa dos objetivos climáticos. 

O que digo é que este tipo de ações embora não esvaziem totalmente a mensagem, mancham-na, porque dão um colorido de extremismo e de atitudes pouco cívicas a uma matéria que, por excelência, é de altíssima importância e que a sociedade civil em geral há muitos anos que trabalha para alterar.

Mas vê isto como consequência de outro tipo de soluções como as que tem vindo a apresentar não estarem a ser adotadas?

Lamento que quaisquer ações em defesa do clima, que não vandalizam, mas alertam para o estado preocupante do nosso meio ambiente recebem menos atenção do que estas. A maior parte das recomendações que damos ou acabam no lixo, ou na gaveta.

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