Abusos sexuais: “Pagar indemnizações às vítimas e reconhecer o erro é o mínimo que a Igreja pode fazer”

13 fev 2023, 07:00
Jesuítas (Artur Widak/Getty Images)

ENTREVISTA. Ricardo Barroso é um dos psicólogos que mais investigação tem feita sobre abusos sexuais e é responsável por um programa em Portugal de prevenção da pedofilia e de apoio a pessoas atraídas sexualmente por menores. À CNN Portugal, o também antigo consultor do Ministério da Justiça e das Nações Unidas afirma que "será de uma indecência enorme" a igreja refugiar-se por trás da prescrição das denúncias, sublinha que "é preciso um reconhecimento claro do erro" e garante que o clero funcionou como uma empresa ao tentar "minimizar os danos reputacionais" ao longo dos anos

Dos vários inquéritos que foram instaurados pelo Ministério Público das denúncias remetidas pela Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica, grande parte foi arquivado. O que sentem as vítimas ao olhar para isto, dado que, como tem alertado, a denúncia exige mesmo muita coragem?

Eu imagino que seja uma enorme frustração. Eu acho que aqui uma questão que tem de ser a própria igreja a promover, que é a de admitir o erro, independentemente de o caso acabar por ser arquivado. Deve haver imensos casos que conhecem este destino porque se tratam de denúncias de atos de há muitos anos. E, depois perante cada circunstância, é preciso corrigir o erro e fazer com que ele não volte a acontecer.

Tem que ficar claro para as vítimas que os agressores vão ser responsabilizados"

Acha que há uma dificuldade acrescida por uma grande parte das denúncias já se encontrarem prescritas? 

Será de uma enorme indecência, na minha opinião, a igreja usar o argumento da prescrição. Do ponto de vista dos crimes sexuais cometidos por elementos da igreja, se este tipo de argumento for levantado, quase no sentido de se obter alguma justificação seria revoltante e, dificilmente, as vítimas veriam essa injustiça com normalidade. Portanto, eu acho que tem que haver aqui um gesto.

Ricardo Barroso, psicólogo, investigador e professor auxiliar da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro/ DR

 

Um desses gestos poderia ser o pagamento de indemnizações, como em França e nos Estados Unidos?

Pagar indemnizações às vítimas e reconhecer o erro é o mínimo que a Igreja pode fazer. É um gesto que, evidentemente não cobre o sofrimento que as pessoas têm, mas é um gesto mínimo. Até pegando na experiência de outros países - em França por exemplo a Igreja vendeu um conjunto de propriedades para conseguir pagar indemnizações, porque os valores são astronómicos. Eu creio que vai acontecer isso, também em Portugal.

Mas é suficiente?

Eu creio que tem que ficar claro para as vítimas que os agressores vão ser responsabilizados, mesmo se não enfrentarem uma pena de prisão. E eu não estou a dizer aqui no sentido de os expor no Pelourinho, mas as vítimas têm que ter noção de que a pessoa ou as pessoas que lhes fizeram aquilo vão ser responsabilizadas e de uma forma séria. Não pode ser apenas um pedido de desculpas formal e a questão financeira. Não creio que seja isso que satisfaça - se é que podemos usar este termo - as vítimas.

E neste caminho da responsabilização, há obviamente casos em que o agressor já tem uma idade muito avançada. Acha que, mesmo nesses casos, se pode chegar a uma solução justa?

Isso é uma questão importante. Há uns meses foi noticiado que um padre em Joane tinha sido acusado de abusos sexuais e foi afastado da igreja. O padre tinha cerca de 90 anos e é daqueles casos em que tudo indica que houve proteção ao longo dos anos. Mas, assumindo isto, não se vai meter um senhor de 90 anos na cadeia, eu imagino.

E acha que há sequer espaço para a reabilitação neste tipo de casos?

Eu creio que, neste tipo de casos, poderá apenas ser importante confortar as vítimas. Há aqui uma parte financeira que poderá ser o mínimo para restituir alguma dignidade, se é que lhe podemos chamar isso. E depois a própria vítima sentir que aquilo que lhe fizeram foi denunciado e teve consequências. Isso é mais importante do que sentir que o agressor foi pisado e esmagado socialmente. Porque da parte dos agressores, pode não haver muito a fazer e importa para a própria igreja estudar estas situações como do padre de Joane em que havia denúncias e um conjunto de provas pelo menos desde o 25 de Abril.

Olha para a igreja também como uma estrutura que sistematicamente permitiu o silêncio, ou crê que estes casos que duraram muito tempo a serem revelados foram, de certa forma, responsabilidade individual dos padres e dos membros da igreja? 

Acho que ambas as partes. Mas diria que o próprio funcionamento da Igreja promoveu atitudes semelhantes a uma empresa, no sentido em que tentou minimizar os danos reputacionais e as cúpulas. Sempre agiram neste sentido e foi nesse registo que as pessoas também funcionaram.

Portanto, houve também uma falta de abertura para possibilitar a denúncia até muito recentemente.

Isso e também há a questão da sexualidade que, na igreja, é sempre um tabu enorme. E neste jogo de evitar danos reputacionais, as coisas foram-se mantendo assim.

O relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra será apresentado esta segunda-feira, dia 13. Acha que a própria relação que o País tem com a igreja católica vai mudar com as suas conclusões?

Não sei se será por este tipo de casos que as pessoas com uma fé já muito estabelecida possam eventualmente se afastar, mas é algo que é difícil de prever. Agora, há uma questão interessante se pegarmos nos exemplos de outros países. Na Irlanda, chegaram a uma situação em que havia algum medo de que o número de casos de abusos sexuais cometidos ao longo das décadas - as alegações dizem respeito a quase 14.500 crianças - fosse ter um impacto no número de fiéis. E, o que se verificou, foi que existiu uma grande diminuição, mas que também pode ter sido influenciada por a própria igreja ter vindo a ter, nos últimos anos, uma repressão do número de fiéis. Acho que, no final, vai depender da forma como a igreja vai gerir todo este processo e se vai continuar na mesma linha de contenção de danos reputacionais.

A Igreja Católica tem nas mãos a possibilidade de fazer a diferença"

E, do ponto de vista das vítimas, tendem a afastar-se da fé?

Acredito que sim, mas cada caso será diferente. Poderá haver pessoas que eventualmente já perdoaram e outras que não têm intenções de perdoar. Há respostas diferentes, dependendo das circunstâncias. Mas, para ser sincero, a Igreja Católica tem nas mãos a possibilidade de fazer a diferença porque há muitos países onde não surgiu uma comissão deste género e que têm invalidado sistematicamente, desde o poder político às próprias igrejas e, portanto, o seguimento dado a estes casos é que vai estar na base do prestígio que a Igreja possa vir a ter no futuro.


Do trabalho que tem realizado com agressores sexuais, incluindo de menores, encontra aqui diferenças de perfil, quando assumem uma ligação à Igreja?

O problema que enfrentamos, quando estamos a falar de agressores sexuais,  eles não têm um perfil semelhante ao de um ladrão de banco, que é tipicamente um comportamento muito impulsivo. Geralmente, a agressão sexual é planeada, demora muito tempo, existindo uma preparação para o processo. Muitas vezes, há um aproveitamento de uma oportunidade para avançar e cometer o crime ou o episódio de abuso. E a igreja, pelas circunstâncias do seu funcionamento, respaldava todos estes comportamentos, fazendo com que os agressores se sentissem seguros, porque sabiam que, se alguma vez acontecesse alguma coisa, quando muito, levavam um corretivo, um sermão.

Ou seja, o histórico jogava a seu favor?

Exatamente, portanto isto aliado a uma situação de claro abuso de poder no sentido de, as igrejas terem uma posição de poder em locais mais pequenos, sendo uma referência social e comunitária, e evidentemente exercia ali algum poder sobre as pessoas.

É um fenómeno muito mais influente em locais pequenos?

E é algo genérico a muitas igrejas, não só a católica. E o que é que acontece é que, nas últimas décadas, a estratégia foi sempre a mesma, independentemente da confissão, evitava-se o assunto, tentar descredibilizar a vítima e a intimidação através do poder, com a utilização também da ignorância das pessoas, com menor cultura e instrução. Outra estratégia era também transferir o padre ou o pastor para outra igreja. É claro que ao longo dos anos, este poder foi diminuindo e as pessoas tornaram-se muito mais despertas para este tipo de abusos.

E a própria comissão em Portugal teve um papel importante neste combate que fala? Como é que avalia também a sua presença pública?

Foi importante, porque eu acho que aquilo que faz uma vítima tratar de fazer a denúncia é, por um lado, a percepção de que a sua história vai ser ouvida e que há a hipótese de que aquele peso que ela tem, eventualmente, passar.  E, por outro lado, eu diria que é o facto de sentir que há outras pessoas que estão a fazer o mesmo. E quando esta comissão anunciou que tinha validado 400 queixas, isto tinha uma intenção, que era, nesta reta final, passar a mensagem de que, quem ainda não tinha denunciado, não estava sozinho.

É sempre mais fácil avançar para uma denúncia, quando já existe essa espécie de cama de rede?

Exatamente, é totalmente diferente as pessoas sentirem que não são as únicas a denunciar. É aquilo a que chamamos a universalização da experiência em que a pessoa se apercebe que não lhe aconteceu só a si. Isto ajuda muito

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