No dia em que se completa meio século da Revolução dos Cravos, Paulo de Carvalho esteve à conversa com o Maisfutebol. Da madrugada que pôs fim ao Estado Novo à «bolha» que persiste no futebol português, o artista foi, primeiro, jogador. Partilhou campo com Vítor Damas, quando era já apaixonado pelo Benfica.
Rufam os tambores e ouve-se: «Quis saber quem sou». É o verso inaugural de «E Depois do Adeus», a inconfundível «cantiga» interpretada por Paulo de Carvalho na Eurovisão, em março de 1974, e que serviu como senha na noite de 24 de abril.
No dia em que se completa meio século sobre a Revolução dos Cravos, o Maisfutebol desvenda a conversa com o artista, que, antes de o ser, deu que falar no futebol de salão e na formação do Benfica.
Das brincadeiras na década de ‘50 em Alvalade, aos cravos e aos milhões que «não marcam golos». Paulo de Carvalho, de 77 anos, rebobina no tempo como quem desvenda uma sala arrumada e fresca.
«Tudo começou na rua, na zona de Alvalade, onde morei a partir dos três anos. Havia quintas e muito espaço para brincar. Falamos de ‘54 ou ‘55, e eu tinha a sorte de ter algumas bolas de futebol, oferecidas pelo meu pai, que trabalhava em barcos», começa por contar.
Antes, já Paulo de Carvalho se havia estreado nas bancadas do Jamor, a propósito de homenagens a Virgílio, do FC Porto, e a Matateu, do Belenenses.
«Vi a estreia de três jogadores que vieram de Moçambique: Costa Pereira, Coluna e Naldo. A homenagem ao Virgílio foi durante um Benfica-FC Porto. No mesmo dia, também no Estádio Nacional, assisti à homenagem a Matateu, durante um Belenenses-Sporting. Foi no princípio de época de '54», descreve.
A experiência na rua, entre terra batida e gravilha, valeu a Paulo de Carvalho inúmeros elogios, que motivaram o então adolescente, de 11 anos, a reforçar os Neptunos da Estefânia, equipa de futebol de salão – não confundir com futsal – que contava com algumas promessas da formação do Sporting.
«Foi lá que conheci o Vítor Damas, uma amizade que perdurou», destaca. O guarda-redes foi o mote para Paulo de Carvalho acumular aventuras de leão ao peito, ora na Rua do Passadiço, junto à Avenida da Liberdade, ora num terreno acima do Estádio José de Alvalade.
Ainda assim, o artista sonhava com as cores dos «eternos rivais», objetivo que concretizou aos 13 anos, antes de se cruzar com a «Nini».
«Sou sócio vitalício do Benfica. Já na altura era o meu clube. Então os jogos de futebol de salão passaram a ser, digamos, engraçados, porque eu era o miúdo do Benfica que jogava com o pessoal do Sporting. Treinávamos na velha Estância de Madeira, o segundo campo do Benfica, depois do Campo das Amoreiras», recorda.
À data, os clubes formavam atletas a partir dos 14 anos. Porém, o metro e 79 centímetros de Paulo de Carvalho convenceu os diretores das águias a viabilizarem esta exceção.
«Surgiam as primeiras tentativas de aplicar o 4-3-3. Por isso, jogava como médio centro, a tender para o lado direito», anota.
Até aos 17 anos, Paulo de Carvalho apenas se preocupou em ter uma bola junto ao pé. Dessas aventuras recorda a camaradagem de Arcanjo e Carreiro, dupla que integrou as campanhas na Taça das Taças e na Taça UEFA, na década de ‘60, pelo «brilhante» Vitória de Setúbal. Ao leme estava Fernando Vaz.
Os sinais de Abril e uma escolha
Mais tarde, Paulo de Carvalho assumiu a veia artística, a compasso da consciencialização do Portugal de Salazar.
«Comecei a trabalhar numa seguradora e a estudar à noite. Quando surgiu o sonho da música, tive de optar. Comecei a jogar futebol como amador. A partir dos 20 anos comecei a preocupar-me com a realidade política e cultural», explica.
Ainda assim, o artista poderia ter prosseguido carreira, por exemplo, na Companhia União Fabril (CUF), onde havia «emprego facilitado», ou na Académica de Coimbra, por via dos estudos. Todavia, o sonho da música era já maior. Em Belém, no Restelo, Paulo de Carvalho viveu os últimos dias como atleta federado.
Na referida perceção alargada sobre a realidade do país, Paulo de Carvalho estava atento ao futebol, dos jogadores aos elementos da Legião Portuguesa e da Polícia Política (PIDE).
«Havia os senhores diretores. Em alguns clubes mandavam na estrutura e faziam chantagem com os jogadores. Havia até quem entrasse pelo balneário a dar tiros para o teto, para que os jogadores assumissem outra postura em campo», relata.
Entre conversas com amigos, como Artur Jorge, Paulo de Carvalho desvendava o verdadeiro «mundo da bola», dando conta da crescente preocupação quanto à organização desportiva. Eram sinais de Abril, da madrugada ansiada.
Os acasos que mudaram a história
Na madrugada de 25 de Abril, Paulo de Carvalho regressou a casa, então nas imediações da Avenida de Roma, pelas 2h, à boleia de um amigo.
Hora e meia antes de se fazerem à estrada, havia soado «Grândola Vila Morena», de Zeca Afonso, na Rádio Renascença, que, por sua vez, foi momentaneamente silenciada, minutos após a meia-noite.
Sem rádio, o cantor não deu conta da atualidade durante a viagem. Nem da própria importância na revolução em curso, uma vez que «E Depois do Adeus» havia tocado pelas 22h55 de 24 de abril nos Emissores Associados de Lisboa.
«Eu levantava-me muito cedo [risos]. De 24 para 25 estive num café. No dia seguinte, bateram à minha porta e disseram que havia um golpe de Estado. Questionei: “Para melhor ou pior?”. Ninguém sabia, de maneira que atirei, de forma até parva: “Então, deixa-me dormir” [risos]. Era uma da tarde, também saí para a rua. Foi uma surpresa», desvenda.
Àquela hora, a rua era um alvoroço. Se, por um lado, as forças de Salgueiro Maia tinham cercado o Quartel da GNR no Largo do Carmo, onde se encontrava Marcello Caetano, a verdade é que, na sede da PIDE, os oficiais dispararam sobre os populares.
Todavia, os comandantes da Legião Portuguesa e do Estado-Maior apresentaram rendição, algo que Marcelo Caetano também faria, mais tarde.
E quanto à voz como senha militar? Outra surpresa, garante Paulo de Carvalho, algo que descobriu anos mais tarde. Ora, conta o artista, o tema «E Depois do Adeus», escrito por José Miza, foi a alternativa para travar a vontade de Otelo Saraiva de Carvalho, que pretendia lançar o «Venham Mais Cinco», de Zeca Afonso.
«A minha única colaboração foi interpretar uma cantiga de amor. O João Paulo Diniz teve a ideia de escolher uma primeira senha que não levantasse suspeitas», recorda.
Nos caricatos acasos da vida, Paulo de Carvalho viu a voz eternizada por um dos mais importantes capítulos da democracia portuguesa.
O fim do Estado Novo foi consumado pelas 22h, numa noite também manchada a sangue, face às cinco vítimas mortais.
O mundo da bola depois de Abril
Apto para espalhar magia nos relvados, mas como «amador», Paulo de Carvalho continuou ligado ao futebol durante vários anos. De tal modo que foi batizado como «O Argentino» por Toni, assíduo espectador das «peladinhas». Tal alcunha simbolizava a «capacidade de leitura de jogo». O artista era, também dentro de campo, uma «Flor Sem Tempo».
Anos antes, à boleia do Benfica de Milorad Pavic, na época de 74/75, Paulo de Carvalho conheceu, por fim, o núcleo do futebol nacional.
«Pedi para treinar com aquela equipa sensacional – contavam com Bento, Zé Henrique, Vítor Batista, Nené, António Simões, Jordão, Eusébio, Artur Jorge e Humberto Coelho – e consegui ver o futebol por dentro, numa altura em que todos nos tentávamos organizar, em liberdade», recorda.
Para o cantor, a Revolução dos Cravos apenas permitiu ao futebol nacional se abrir aos milhares e milhões, e à nova geração de «senhores diretores».
«Não sei se os milhões fazem golos. Os interesses das pessoas mudaram. Jogadores são jogadores, diretores são diretores. Mas, tudo depende do dinheiro. Não sou saudosista, sou pela liberdade, com responsabilidade, algo que se foi perdendo», remata.
«Na bancada e dentro do campo
Muito jogo se tem de fazer,
Esta luta também é de classes
É mais cego o que não quer ver.
O problema é sempre da força
Do desporto contra o capital,
Directores que entram no jogo
Para alcançar promoção social»
«Chuta agora, vá!», de Paulo de Carvalho
Pois bem, que toque também a «Tourada», tema interpretado por Fernando Tordo na Eurovisão de 1973.
«E entra muito dólar, muita gente,
Que dá lucro aos milhões»
Naqueles meses junto do plantel do Benfica, Paulo de Carvalho reforçou os laços com Artur Jorge, para o artista um exemplo que deveria servir de mote para furar esta «bolha».
«Faltam pessoas como Artur Jorge. Em Portugal, não direi que há medo, mas ainda é difícil falar sobre qualquer tema com completo à vontade. Precisamos de mais pessoas como ele, no fundo para concretizar a revolução cultural», atira.
Tordo, Tozé Brito e Carlos do Carmo na Luz
Sócio vitalício do Benfica, o artista guarda com carinho uma das primeiras vezes que visitou o «Inferno da Luz», pela mão do pai, no verão de ‘62, numa partida com o Santos e vencida por Pelé e companhia (2-5). Desses tempos recorda os adeptos que se «moviam pelo clube», sem permitir que a anarquia imperasse.
«O antigo Estádio da Luz era mais vibrante, mas menos cómodo e mais perigoso. Era o chega para lá e conseguiam colocar 120 mil pessoas onde caberiam 70 mil bem sentadas. Posso dizer que vi o Pelé e o Eusébio jogaram. Mais tarde, vi, por exemplo, Cruyff, Cristiano Ronaldo e Messi. É um luxo da velhice», conta, com orgulho.
E quanto a vozes de Abril no Estádio da Luz?
«O pai do Fernando Tordo tinha um camarote, porque integrava a secção de automobilismo, numa época em que os clubes eram verdadeiramente ecléticos. Também encontrei muitas vezes o Tozé Brito. O Carlos do Carmo – que era do Belenenses – veio uma vez, a nosso convite, quando celebrou 60 anos. Quase o obrigamos, para assistir a um Benfica-Belenenses, e oferecemos uma camisola com o número 60…para compensar os 4-0 que levou», recorda, entre risos, que não escondem a saudade.
Elogios para João Neves e António Silva
De regresso ao presente, e questionado pelo Maisfutebol sobre o momento do Benfica, Paulo de Carvalho aponta à prata da casa.
«João Neves e António Silva têm escola e entendem o Benfica de toda uma outra forma. De novo, não sou saudosista, mas, antigamente, havia outra forma de entender e respeitar o Benfica. O João Neves, principalmente, enche-me as medidas, porque não para quieto e parece que tem duas bombas de ar. O resto, por vezes, parece apenas um amontoado de jogadores», analisa.
Paulatinamente a tornar-se um assíduo «espectador de sofá», Paulo de Carvalho admite evitar regressar aos estádios, face a atitudes que presenciou.
«Vou contar uma história já velha
É a história do chuto na bola,
Começa na secretaria
E que acaba com muito estarola.
Vem o nove e falha um penálti
Bom pretexto no jogo da selva,
Para a malta se erguer na bancada
E se atirar com fúria para a relva.»
«Chuta agora, vá!», de Paulo de Carvalho
Por fim, o artista revela que em casa pouco ou nada se fala de futebol: «A Mafalda Sacchetti foi a única que foi comigo ao futebol. Penso que o Agir é do Sporting só para me chatear [risos]».
Em todo o caso, a essência primordial – a música – nem precisou de ser transmitida, pois corre na alma daquela família. Dos quatro filhos, apenas um não seguiu a vertente artística.
Da Eurovisão às portas da liberdade, o «E Depois do Adeus» foi a porta que Paulo de Carvalho – mesmo sem saber – ajudou a abrir, rumo à democracia. Há meio século, a história de Portugal mudava. Por coincidência – ou destino – também a de Paulo de Carvalho assumia um rumo distinto.