Inspirado pelo sonho americano (e o dinheiro era tanto que era difícil de contar): Yevgeny Prigozhin 1961-2023?

24 ago 2023, 07:00
Da rebelião armada à queda do jato. Assim foram os últimos 60 dias de Prigozhin

Há tanto nele que é intrigante, por exemplo isto que aconteceu quarta-feira: primeiro soube-se que caiu um avião que tinha o nome dele na lista de passageiros mas ninguém disse oficialmente naquele instante "Prigozhin morreu"; horas depois as autoridades russas confirmaram que o nome dele fazia mesmo parte do manifesto de voo mas ninguém voltou a dizer oficialmente "Prigozhin morreu". Ninguém o dá como morto mas também não o dão como vivo - por enquanto é um fantasma. Porque matá-lo é um problema mesmo se ele já estiver morto (está?). Mas o legado dele vive, um legado que começou inspirado no grande inimigo americano

De origens humildes e com um passado ligado ao mundo do crime, Yevgeny Prigozhin subiu de maneira muito particular a escada do mundo pós-soviético: fez da guerra um negócio, conquistou o respeito dos nacionalistas russos, tornou-se um dos principais protagonistas da política externa russa. Mas transformou-se também num alvo a abater por fações da elite russa. 

Desde que foi criado e começou a ser utilizado como braço armado do Kremlin na Ucrânia, em 2014, a ascensão do Grupo Wagner foi também a ascensão de Yevgeny Prigozhin. Da Síria à Líbia, do Mali à Ucrânia, os “pequenos homens verdes” do grupo Wagner ganharam fama – e muito dinheiro – a fazer o trabalho sujo pelo qual a Rússia não queria ser conhecida. Daí a alcunha “pequenos homens verdes” ganha durante o início da guerra no Donbass, quando estes homens apareceram vestidos de camuflado mas sem qualquer insígnia militar que os identificasse.

Ao longo de quase oito anos, Prigozhin negou repetidamente ser o líder desta organização paramilitar. Mas a invasão da Ucrânia em 2022 mudou tudo. Os primeiros meses do conflito mostraram que as forças armadas russas não eram capazes de assegurar os seus principais objetivos na Ucrânia e Vladimir Putin decidiu utilizar todos os recursos ao seu dispor – incluindo o Wagner. 

A chegada de Prigozhin mudou a dinâmica de poder no terreno. O ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e o líder das Forças Armadas, Valery Gerasimov, eram vistos pela população russa como os principais responsáveis pelo insucesso  na Ucrânia e Prigozhin não fez questão de o ignorar.

Shoigu e Gerasimov são dos poucos membros do círculo restrito do presidente russo que não são de São Petersburgo. Shoigu, nascido na região de Tuva, na fronteira com a Mongólia, chefia a Defesa sem nunca ter servido nas Forças Armadas, sendo visto como um “apparatchik”, um político de carreira, que liderou a pasta das Emergências na década de 90. É o oposto de Valery Gerasimov, um militar de carreira que ganhou fama por colocar fim a uma rebelião na Chechénia, na caótica década de 90.

Este perigoso triângulo de poder foi-se tornando cada vez mais tenso. O grupo Wagner, que em 2014 contava apenas com cinco mil soldados, quase todos veteranos do exército russo, viu o número de combatentes ao seu dispor subir para aproximadamente 50 mil no seu auge, muitos dos quais recrutados no sistema prisional russo. Este aumento de poder não passou despercebido ao Ministério da Defesa e à liderança militar, que começou a olhar com crescente desconfiança para este grupo de mercenários – cujo estatuto legal é inexistente na Constituição, que estipula que todas as matérias de segurança e Defesa devem pertencer somente ao Estado.

Gatos gordos nos vossos escritórios luxuosos

O rancor entre a defesa privada e pública não nasceu com a guerra na Ucrânia. O primeiro momento de fricção entre os veteranos do grupo Wagner e o Ministério da Defesa aconteceu em 2018, quando cerca de 500 mercenários russos e soldados do regime de Bashar al-Assad atacaram um posto avançado das tropas especiais norte-americanas. O então secretário de Defesa norte-americano Jim Mattis contactou o Ministério da Defesa e perguntou se aqueles soldados cujas comunicações eram feitas em russo pertenciam às forças de Moscovo. O Kremlin negou e o resultado foi catastrófico. Os Estados Unidos bombardearam intensamente a localização com recurso a drones e bombardeiros, resultando em quase 300 mortos.

Mas foi com a chegada dos soldados do grupo Wagner a Bakhmut, onde foram a vanguarda da batalha mais violenta do século, que os ódios se acentuaram. Então, Prigozhin criticou diretamente o ministro da Defesa, acusando-o de ser responsável pela morte dos seus homens ao não enviar as munições de artilharia necessárias e chegou mesmo a ameaçar retirar-se da frente de combate.

“O sangue ainda está fresco”, disse Prigozhin à frente de dezenas de cadáveres de militares do grupo Wagner, num vídeo publicado no seu canal de Telegram. “Eles vieram para aqui como voluntários e estão a morrer para que vocês se possam sentar como gatos gordos nos vossos escritórios luxuosos. Shoigu! Gerasimov! Onde estão as munições?”, questionou o líder dos mercenários. Nesse mesmo dia, segundo os documentos americanos, Prigozhin pediu uma reunião com Vladimir Putin e Sergei Shoigu.

A situação entre a liderança russa tornou-se ainda mais tensa quando Prigozhin ameaçou abandonar as posições conquistadas em Bakhmut a 10 de maio, um dia depois da celebração do Dia da Vitória, que marca o fim da Segunda Guerra Mundial na Rússia. O cenário captou a atenção dos meios de comunicação ocidentais, que estranharam que uma figura tão proeminente da máquina de guerra russa criticasse abertamente algumas das principais figuras políticas do executivo de Vladimir Putin.

Documentos tornados públicos pelo funcionário da força aérea norte-americana Jack Teixeira revelaram que o próprio Ministério da Defesa estava a ter alguma dificuldade em combater a crescente popularidade de Prigozhin, que, devido à conquista de Bakhmut, era agora visto como alguém que conseguia conquistas no terreno, ao contrário da liderança militar russa. Vladimir Putin parecia estar confortável com a crescente rivalidade - o presidente russo é conhecido por deixar rivalidades aparecer no seio do sistema político russo.

Mas a estratégia pode não ter corrido tão bem quanto esperado. Prigozhin tornou-se uma espécie de herói para o público mais nacionalista, que acreditava que o esforço de guerra russo devia ser mais intenso. As críticas do oligarca foram constantemente subindo de tom. Ao mesmo tempo, Sergei Shoigu – um político hábil o suficiente para ter resistido no poder durante várias décadas e governos – acabava os preparativos do seu plano de utilizar a máquina política russa para retirar o poder militar das mãos do empresário. Anunciado no dia 10 de junho, o decreto-lei dizia que os soldados de “formações voluntárias” teriam de assinar contrato diretamente com o Ministério da Defesa para serem integrados e receberem o estatuto legal que é dado aos militares.

Foi o limite para Prigozhin. “O grupo Wagner não vai assinar nenhum contrato com Shoigu. Ele não consegue gerir adequadamente qualquer formação militar”, respondeu Prigozhin ao “ultimato”, que dava até ao dia 1 de julho para que os soldados assinassem o documento. Os próprios mercenários teriam pouco interesse em assinar o contrato, que significaria automaticamente um salário menor ao que é possível obter no setor privado da Defesa.

Uma facada

“Prigozhin encarna um tipo de herói que agrada à população russa. É patriota, desafia a autoridade instalada mas sem deixar de ser um russo que cumpre os seus deveres patrióticos. Ele também controla uma parte significativa dos bloggers militares e essa proeminência faz com que a sua imprensa seja uma boa imprensa. Tudo isto faz com que possa ser um incómodo do ponto de vista político”, afirma Diana Soller, professora e investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.

A situação culminou naquele que é visto por especialistas e analistas como um golpe de traição que pode colocar em causa a liderança de Putin. “O ministro da Defesa está a tentar enganar o público e o presidente”, disse Prigozhin momentos antes de declarar guerra à liderança política da Defesa russa, retirando as suas tropas da Ucrânia em direção ao bastião logístico do conflito, a cidade de Rostov, e depois em direção a Moscovo.

Durante várias horas, tudo esteve em suspenso. Esperou-se tomadas de posição de várias personagens do regime russo para ver "para que lado pendiam". E era em Ramzam Kadyrov que estavam postos mais olhos. O líder checheno é conhecido por governar a região autónoma da Chechénia com mão de ferro e por controlar uma força militar considerável, parte da qual se encontra a operar na Ucrânia. "Uma facada nas costas", foi assim que Kadyrov descreveu a aposta de Prigozhin de marchar para Moscovo e jurou lealdade a Vladimir Putin, uma posição que tem mantido desde que ascendeu ao poder para suceder ao seu pai. 

Após negociação com o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, o líder do grupo Wagner decidiu recuar e evitar dar início a uma guerra civil. O futuro do líder do Grupo Wagner tinha acabado de se tornar demasiado incerto. Segundo o acordo, Prigozhin teria salvo-conduto para continuar as suas operações em Minsk - e, além disso, podia manter a sua carreira empresarial na Rússia. Mas isso durou pouco tempo.

Inspirado pelo sonho americano

Yevgeny Prigozhin nasceu na cidade de Leningrado, atual São Petersburgo, em 1961. O pai, que morreu quando Prigozhin tinha nove anos, era um engenheiro de minas e a mãe uma enfermeira. Tal como muitos russos da sua geração, tinha um avô que era veterano da Segunda Guerra Mundial e que participou nas batalhas de Rzhev, popularmente conhecidas na Rússia como “Rzhevskaya myasorubka” (O Moedor de Carne de Rzhev). Em 2020, viria a ser um dos financiadores de uma adaptação cinematográfica do romance de guerra Rzhev, que menciona os feitos do seu avô.

A infância de Prigozhin foi focada no exercício físico. A mãe casou-se com um instrutor de esqui que incutiu a Prigozhin a paixão por esta modalidade. Chegou mesmo a ser enviado para uma academia desportiva mas a vida de desportista não lhe estava destinada. Uma lesão obrigou-o a afastar-se das competições e, depois de acabar os estudos, o submundo começa a chamar por ele.

Quando atingiu a maioridade, Prigozhin e o seu grupo de amigos cometeram vários crimes, incluindo um crime violento contra uma mulher. Acabou por ser detido e sentenciado a 13 anos de prisão, segundo a publicação Meduza. Ficou encarcerado quase uma década, sendo libertado em 1990, com o regime soviético prestes a colapsar. O timing foi quase perfeito para um homem como ele.

O colapso da União Soviética, a onda de esperança numa Rússia virada para o Ocidente e o caos económico em que o país ficou mergulhado foram os ingredientes perfeitos para a receita da nova vida de Prigozhin. Inspirado pelo “sonho americano”, decidiu abrir um stand de venda de cachorros quentes, negócio esse que é um dos símbolos de Nova Iorque, portento do capitalismo. E funcionou: numa entrevista que deu (deu poucas) chegou mesmo a afirmar que o dinheiro que fazia era tanto que era difícil de contar.

Mas a ambição do recém-criado empresário era maior que um mero stand de cachorros quentes. Com o dinheiro que fez, abriu um supermercado, mas também isso foi pouco. Seguiu-se uma loja de vinhos e um restaurante “peculiar”: chamado Old Customs House (Casa dos Velhos Costumes, em português), este restaurante tornou-se “o” sítio para a nova elite da cidade. Todos lá queriam ir. Famosos, homens de negócios e políticos. Foi lá que viria a conhecer o futuro presidente da Federação Russa Vladimir Putin.

Quando Vladimir Putin subiu ao poder, os restaurantes de Prigozhin eram repetidamente escolhidos pelo presidente russo para receber as visitas de importantes diplomatas e de presidente estrangeiros. Este facto valeu-lhe a alcunha “o chef de Putin” no Moscow Times.

É neste ponto do tempo que Prigozhin deixa de ser um mero empresário. De um momento para o outro começa a ganhar contrato atrás de contrato com o governo da Federação Russa para serviços de catering através da empresa Concord. Em 2012 recebeu mais de 200 milhões de euros para fornecer as escolas de Moscovo com comida. Mas, mais uma vez, este negócio era demasiado pequeno para a ambição de Yevgeny Prigozhin.

Esta quarta-feira, um avião privado que fazia a ligação entre Moscovo e São Petersburgo despenhou-se por volta das 18:40 locais (menos duas horas em Lisboa). Segundo o Ministério das Emergências, o avião privado Embraer Legacy caiu perto da vila de Kuzhenkino, na região de Tver, com dez pessoas a bordo, incluindo três membros da tripulação. Foram recuperados dez corpos mas não há nenhuma declaração oficial a dizer "Prigozhin morreu" - há sim a confirmação de que o nome "Yevgeny Prigozhin" consta da lista de passageiros. Se está morto ninguém o deu como tal. Mas também não o dão como vivo.

Segundo o manifesto de voo, os passageiros eram Yevgeny Prigozhin, Dmitry Utkin (fundador do Grupo Wagner), Propustin Sergey, Makaryan Evgeniy, Totmin Aleksandr, Chekalov Valeriy e Matuseev Nikolay. Todos eles eram importantes conselheiros do grupo de mercenários que, menos de um mês antes, marchou em direção a Moscovo.

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